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segunda-feira, 31 de dezembro de 2018


SONETO DE ANO NOVO



Tudo de novo se apresenta
Fim de ano, fim de ciclo,
Mesmo em meio exociclo,
Novidade alguma se inventa.

Sete pulinhos nas ondas
Cores para o amor, prosperidade e sorte
Mas que de diferente aprontas
Para merecer melhor norte?

O tempo para a frente se arrasta,
Inda que assim não queiramos,
Da conquista do agora se afasta.

Novo não é o ano, pois a todo ciclo se repete
A novidade é para estar em nós
Quando a luz do evoluir nos desperte.

Jorge Emicles



quinta-feira, 29 de novembro de 2018


EPIFANIA KARIRI



                   Antes mesmo da invasão estrangeira, tomada a cabo através das trilhas provenientes de Juazeiro da Bahia, o verde sertão que circunda a Chapada do Araripe já era rico não somente de água e belas paisagens, mas sobretudo da valente nação dos Kariri, povo guerreiro, sagaz e altamente resiliente às auguras que lhe atormentariam com a chegada dos alienígenas de origem além mar.
                Conta uma lenda registrada na obra de João Brígido que um certo escravo fugiu dos domínios dos senhores da Casa da Torre, propriedade da família dos Caramuru e imponentes desbravadores dos sertões. O tal negro veio ter na Chapada do Araripe, tendo sido acolhido pelos Kariris. Em certa ocasião, vendo que seu povo estava sendo massacrado por uma outra tribo, no meio das recorrentes guerras entre nações indígenas, teve a ideia de ir buscar auxílio junto aos antigos senhores da Casa da Torre, guiando-os até a imponente Chapada, habitat dos Kariris. Os guerreiros brancos de fato ajudaram os índios a vencer a guerra, mas em paga lhes cobrou a dominação.
                        Assim, nasceram os primeiros povoamentos brancos da região.
                  Há relatos provenientes de mais que uma fonte de que os índios Kariris teriam sido paulatinamente massacrados; que houve um verdadeiro extermínio dos amarelos. Embora tenha de fato acontecido um irreparável derramamento de sangue, necessário ao domínio dos invasores, garantindo-lhes a definitiva posse das sesmarias que se instituíram desde então, é inegável reconhecer que muitos dos primitivos habitantes sobreviveram sim até os dias atuais.
                Um tanto deles foi, na linguagem do colonizador, amansada, passando a viver pacificamente nos povoamentos inaugurados. O Curato de São Fidelis, povoamento original que redundou no hoje município de Crato, é um dos melhores exemplos desses povoamentos. O índio civilizado, se integrou de tal forma ao modo de vida do colonizador, que pareceu ter simplesmente sumido da paisagem local.
                   O que não significa dizer que não tenha resistido.
                   O caboclo que habita não somente a vasta zona rural de toda a região, mas em igual intensidade as suas pequenas e grandes cidades, aquele a quem nos habituamos a chamar simplesmente por sertanejo; o broco homem iletrado, de fala incorreta à luz das inflexíveis regras da gramática; é ele, esse cabiró, o mais legítimo herdeiro dos antigos guerreiros Kariris, os de cara triste, como é tido o significado do nome desse povo. Sua resistência se dá através de diversas entre as ricas tradições culturais da região.
                   Nada, contudo, é marca tão bela e profunda dessa resiliente resistência cultural do índio caririense quanto as bandas cabaçais, com especial nota à bicentenária dos irmãos Aniceto.
                   Observar seus pífanos de bambu, como também o conjunto dos instrumentos, danças e valores simbolizados tão ricamente através de sua arte, é como uma sensível aula de antropologia. Em tudo o que fazem e dizem há uma referência à tradição dos índios, aprendida por intermédio da mais legítima tradição oral, da mesma forma como sempre foi na prática silvícola. Isso, desde a forma de construção dos instrumentos até o simbolismo dos passos de dança e da memória que resgatam a cada uma de suas músicas e coreografias.
                   Em todos os números, contam o que se deu com seu povo, rico de uma cultura de origem esquecida, respeitadores das forças da natureza, como homem branco algum é capaz, conhecedor de artes indecifráveis para a ciência moderna, que aos poucos foram sendo obrigados a renunciar expressamente às suas tradições e valores, não sem os introduzirem quase que silenciosamente nas suas danças, músicas e festas.
                   É a história de como os índios resistiram à dominação, mesmo vencidos pela força, que conta a banda cabaçal dos irmãos Aniceto. A luta com as abelhas, a dança da coruja, o fiel cão que caça e é morto pela onça, todas essas são mais que histórias, músicas e danças que encantam às plateias mundo afora. São a própria origem e ressureição dos antigos índios agora, por força da dominação branca, adaptados na aparência do uniforme em tecido grosso em tom forte de azul, no chapéu de massa, tradição europeia e na língua do colonizador, que através do seu jeito peculiar de expressão linguística denuncia não as incorreções em comparação à língua culta, mas na verdade uma linguagem própria, carregada da memória de como era a fala na época da colonização, mas também de várias expressões dos índios mesmos.
                   Se olharmos bem, repararemos na encantadora história dos índios, sua rica cultura e resiliência, mesmo diante da atroz violência que sofreu. É a parte do Cariri que vale a pena conhecer, a que extravasa para além de suas fronteiras.

Jorge Emicles

sexta-feira, 9 de novembro de 2018


CATARSE


                   Éramos ainda crianças que arriscavam os primeiros vislumbres da idade adulta, que teimava em não vir na brevidade reclamada pela inquietação daquela época tão cheia de hormônios e incertezas e mesmo assim já nos arvorávamos senhores dos saberes mais intricados da política e da filosofia. Contávamos exatos dezesseis anos e já nos era oferecida pela história a possibilidade de votar para o Presidente da República Federativa do Brasil. Aquela seria apenas uma das muitas novidades apresentadas pelos coloridos anos oitenta que teriam desfecho magnânimo com o retorno da plenitude democrática brasileira, representada com tanta grandiloquência por aquela eleição.
                   Tínhamos no Brasil uma nova Constituição, cujo significado simbólico e suposto poder normativo somente teríamos condições de vislumbrar anos depois, no curso da futura formação jurídica que haveríamos de ter, muito embora àquele longínquo ano tivéssemos outros propósitos de formação acadêmica. O que importava mesmo era o merecimento de com tão tenra idade já sermos senhores do soberano poder de eleger o Chefe máximo do nosso Estado. Rousseau nos parecia definitivamente com a razão, pois sua célebre frase era explicitamente reproduzida na própria Constituição. O poder dali em diante era emanação do povo, somente em seu nome podendo ser legitimamente exercido. As parcas leituras de sociologia da época nos davam a vã impressão de que a história somente anda para a frente e que, por isso, retrocessos não são possíveis em seu curso. Assim, se éramos uma democracia jamais retrocederíamos a outro estágio menos elevado.
                   Permitir que as massas cegas e surdas à razão da ciência e à irrefutabilidade do método necessariamente as conduz a decisões não apenas equivocadas, mas também extremamente perigosas. Nosso primeiro voto foi regalado ao velho caudilho, que de lenço vermelho sob os ombros vociferava com destemor os abusos do decaído regime autoritário como também os riscos da candidatura que representava seus ainda vívidos interesses. O mesmo capital espúrio e dominante que apoiou a ditatura agora financiava a candidatura do caçador de marajás, que pela sua tez jovial, expressão valente e corpo atlético não permitia qualquer comparação ao ancién régime brasileiro.
                   Tais atitudes não valeram tanto, afinal. Sagrou-se vencedor o pensamento neoliberal do Estado mínimo, do desprestígio aos valores nacionais e do desrespeito às lutas sociais históricas. Era de se perdoar aquela massa de analfabetos, que iludida pelo encanto da sereia do marketing eleitoral votou no produto de embalagem mais collorida, sem reparar bem no projeto de nação que precisava ser erguida a partir daquela eleição. A democracia brasileira deveria ser jovem demais para negar o poder a aventureiros demagógicos. Ficou vívida a certeza de que dali a trinta anos coisas como aquela não seriam mais possíveis. Era preciso insistir na fórmula da democracia.
                   Um governo sem apoio parlamentar, sem raízes em movimentos sociais e sem conexão com a história nacional poderia dar em que, afinal? Em nada diferente do que deu aquele filho da primeira eleição direta para Presidente do Brasil em quase trinta anos. Uma palavra específica, importada da língua inglesa, começou a fazer sentido entre nós tupiniquins. Foi da ruína daquele governo que o impeachment passou a ser compreendido como a salvação nacional. Tudo deu na construção de um novo governo de centro direita, que fundou o marco da estabilidade econômica, na eleição e reeleição de um projeto de nação liberal e sem compromisso com a dignidade humana, a igualdade plena e efetivação de importantes direitos fundamentais.
                   Os cara pintadas até saíram às ruas, mostrando a face de uma juventude cheia de sonhos e esperanças em uma nação mais unívoca em um destino comum de direitos e oportunidades. Mas aquela era apenas uma parcela de uma juventude muita mais complexa e diferente, cujo desfecho para a história não foi tão feliz quanto prometia. Aliás, os desfechos raras vezes são nas mesmas cores da quimera.
                   Foi no sufocamento do modelo econômico de potencialização da mais valia em detrimento da realização da dignidade da massa da população favelada, explorada e torturada pelas mais diferentes formas que ascendeu enfim ao poder o operário, demonstrando que as letras bem desenhadas da academia muito antes de transformar uma sociedade, tendem a manterem inalteradas as estratificações do poder, pois também a intelectualidade faz parte da divisão das castas.
                   A promessa foi a da erradicação da fome, da ascensão social e fim de privilégios. O resultado foi a irresponsabilidade fiscal, a quebra da economia e repetidos escândalos de corrupção. Tudo bem maquiado por programas caros e antagônicos aos verdadeiros propósitos de isonomia nacional.
                   Esse tema é bem presente ainda na história nacional. A nós parece não ser possível ainda fazer uma análise clara e imparcial desse momento histórico. As cores vibrantes das últimas três eleições nacionais terão ainda suas marcar profundamente fincadas em qualquer análise séria sobre o tema. Mesmo assim, enquanto cronistas, nos embrenhamos nele, pois que é do cotidiano de que tratam os cronistas. São riscos inevitáveis aos historiadores do momento presente, que ainda no calor dos acontecimentos tentam dar algum tipo de significado a eles.
                   Plenamente cientes desse risco dizemos que aquele projeto incialmente apresentado por quatro eleições seguidas de um país igualitário e solidário, que garantisse os plenos instrumentos de desenvolvimento humano de seus cidadãos foi transmudado com a chegada ao poder. Dizendo ainda mais, aduziríamos que é condição da chegada ao poder a corrupção dos seus pretendentes. O sistema não permitirá jamais a vitória de pessoas honestas, sóbrias e firmes de propósitos éticos e puros. Juntamente com o poder, o operário tratou de construir mecanismos que garantissem a sua manutenção, de preferência perpétua. Um richer de mil anos não seria uma coisa impensável àqueles egocêntricos noviços na estrutura do poder estatal.
                   A corrupção que se instalou não foi simplesmente fruto da ganância do enriquecimento pessoal de alguns. Se tratou mesmo de um projeto de perpetuação no poder, cujo propósito último era a continuação do mesmo grupo por seguidas gerações. Contudo, nada que não tenha já sido feito por castas de empoderados anteriormente. Os canais utilizados não eram qualquer novidade aos conhecedores dos meandros dos palácios brasilienses. Para os que pretendem vislumbrar a verdadeira dimensão dos acontecimentos históricos que tiveram vez na primeira década do século vinte e um no Brasil, é preciso reconhecer que a corrupção se trata de estratégia recorrente para a consolidação e manutenção do poder. Para ficarmos exclusivamente no caso brasileiro, bastaria lembrar as peripécias da República Velha, que recorrentemente fraudava eleições e onde grassavam diferentes práticas corruptivas; o governo de Getúlio Vargas, que abusou da manipulação, das mentiras e da perseguição para se manter no poder por quinze anos consecutivos; e da própria ditadura militar, reconhecidamente a maior colaboradora do endividamento externo que conduziu o país à crise financeira das décadas de oitenta e noventa do século pretérito.
                   O operário não inventou a corrupção, mas seu governo a praticou de maneira despudorada. Não é verdade que nunca antes se tenha usurpado em tamanha dimensão as riquezas nacionais. Já houveram elites políticas mais eficientes nesse critério. O que a imprensa desvela é a percepção das práticas corruptivas, não seus índices efetivos. Ainda assim, o maior erro daqueles três governos e meio foi haver se permitido às mesmas práticas dos que os antecederam. O operário bem sabia que a história não lhe permitiria cometer erro crasso assim, pois o seu papel seria o de modificar os paradigmas, não o de mantê-los.
                   O segundo pior erro foi o de não ter propiciado os verdadeiros instrumentos de emancipação à população inicialmente beneficiada pelos programas sociais. Na mesma medida em que é imperioso alimentar o faminto, não se pode viciá-lo pelos favores governamentais. Essa prática igualmente é uma forma de corromper o espírito do assistido, pois lhe enfraquece as condições de reagir diante das inevitáveis vicissitudes da vida. Criar oportunidades é tão importante quanto prestar auxílio direto. Mas não ao custo de formar novos injustiçados sociais. Esse é o problema de todas as políticas públicas de assistência, atreladas aos direitos fundamentais chamados de segunda geração. Não se sabe ao certo se são bons ou ruins aos cidadãos, porque ao mesmo tempo em que auxiliam, corrompem. Esse fenômeno é objeto de diversos estudos, na Europa inclusive. Longe está de ser criação nossa.
                   Pelo menos na história recente da nação certamente, enquanto povo, não tivemos decepção maior. Cansados do modelo em que a elite política domina e corrompe, alçamos ao poder um novo pensamento, galgado na ética e na efetivação dos direitos fundamentais, que ao termo e ao cabo demonstrou-se tão corrupto e maldoso quanto o anterior. Era urgente o soerguimento do novo. Assim pelo menos nos gritava a imprensa em todos os níveis, reverberada que foi pelas mídias sociais, cujos instrumentos de controle dos logaritmos se mostram bem mais eficientes que qualquer outra forma de censura.
                   Contudo, nada haveria mais velho que aquele novo. A violência histórica e crescente deveria ser enfrentada com a violência estatal e endurecimento das leis penais, como se o Brasil já não viesse fazendo isso pelo menos desde a década de noventa do século passado e como se não fossem plenamente visíveis os resultados dessas políticas. A história demonstra. Isso não é nenhuma tese de doutoramento acadêmico. É fato. O encrudelecimento da violência estatal no combate aos pequenos delitos, a desumanização das prisões, a criação da lei dos crimes hediondos, que proibia a progressão da pena em determinados crimes, redundou na criação do PCC – Primeiro Comando da Capital – dentro das prisões paulistas, na expansão dessa e de outas organizações criminosas de igual origem por todos os estados da federação e na perda total do controle do sistema prisional pelo próprio Estado. Aumentar a violência estatal é aumentar a organização do crime.
                   Ampliar o bolo da economia através da aplicação dos valores do liberalismo somente conduz ao aumento das já gritantes diferenças sociais entre ricos e pobres. Quando as partes são desiguais não existe liberdade possível. Nesse ambiente a chamada pacta sun servanda (a liberdade de contratar dos antigos romanos) é um instrumento de opressão, jamais de isonomia. A xenofobia assim como todas as expressões das fobias sociais, às mulheres, negros, índios, homossexuais etc., todas elas conduzem ao encrudelecimento dos conflitos sociais e deles ao aumento da violência.
                   A verdadeira liberdade que sempre foi reclamada em todos os tempos, durante todos os governos, dessa ninguém se propõe a projetar e efetivar. Não se liberta senão pela educação, no que pese que poucas sejam as formas de educação libertadora. Professores, não aparelhos televisivos são necessários. Porém não quaisquer professores. São de professores livres, conscientes de seu papel na sociedade e que defendam pontos de vista humanistas; são esses os únicos capazes de libertar um povo. Quando dizem escola sem partido, estão na sutileza do não dito propugnando um partido único a disseminar seus valores em todo o sistema educacional. Nada é mais opressor que esse ideário, pois quando o professor não puder ter partido será o partido do opressor que exercerá sem quaisquer temores ou resistências o domínio total e absoluto. Lembremos que todo o sistema educacional possui sim uma política pedagógica, instituída por lei. A lei do partido que estiver no poder. Como então uma escola não ter partido?
                   Mas em que isso será novidade? Já esquecemos os métodos dos nazistas e fascista na Alemanha e na Itália? Não vale mais a opressão do partido único da União Soviética? Todos proibiram a liberdade acadêmica do professor. Todos encrudesceram a legislação penal. Todos ampliaram os instrumentos de opressão bélica do Estado. Será mesmo que desconhecemos em que tudo isso desaguará?
                   Trinta anos já se passaram desde aquela primeira eleição da redemocratização. Por trinta longos e penosos anos o ingênuo povo pôde amadurecer seu discernimento, a ponto de ser capaz de extirpar de pronto qualquer tentativa aventureira de se alçar ao poder. O povo, soberano absoluto da nação, tem o dever de discernimento fazendo chegar ao poder projetos, não fenômenos. É esta a grande falácia da democracia. Aristóteles já denunciava que ela se corrompe, abrindo seus flancos ao melodioso discurso da demagogia. E é assim mesmo, pelo exercício do voto que o povo serenamente entrega sua soberania ao melhor dos sofistas. Sem resistências se deixa dominar, porque no fundo mesmo a verdade é que lhe falta vontade de vir a ser propriamente livre. Ninguém deveria ser livre para se escravizar, nem para renunciar a seu dever de ação diante do mundo. O livre arbítrio talvez mesmo não seja uma liberdade tão ampla assim. Quiçá os cabalistas estejam certos a esse propósito.
                   Se mais trinta anos de exercício democrático vierem a ser oportunizados ao povo, lá naquele longínquo e incerto futuro é certeza que outra vez entregará suas esperanças e as possibilidades de porvir venturoso a um próximo aventureiro que prometa a repetida fórmula da violência para controlar a violência; da opressão como meio de rechaçar os excessos; do silêncio forçado como a cura do malogro.
                   A maturidade torna tão óbvia esse vislumbre da próxima era da história. Tudo é um eterno retorno, quase uma metempsicose. A história se repete e se repetirá ainda por milênios. Nada há de novo sob o sol, já ensinava Salomão muito antes da história existir.

Jorge Emicles

quarta-feira, 10 de outubro de 2018


O INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI





                   É marca recorrente da história do Brasil que o desenvolvimento venha do litoral para o interior. Os sertões, como são mais constantemente referenciadas as terras de dentro desse país continental. O Cariri naturalmente não foge desse processo.
                   De povoamento retardado, segundo as mais reconhecidas fontes, fomos colonizados por desbravadores vindos da Bahia, os descendentes do velho Caramuru, o português radicado entre os Tupinambás e de importância peculiar à colonização brasileira.
                   Desde os primeiros tempos, contudo, o Cariri demonstrou vocação própria com relação à cultura, educação e enfrentamento das mais relevantes questões políticas nacionais. A região é celeiro de antigas tradições culturais, muitas provenientes da Europa medieval e ainda hoje preservadas através da tradição oral de dezenas de mestres da cultura. É sede das primeiras instituições de ensino dos sertões, num importante movimento de interiorização da educação formal. Aqui, é importante o destaque do centenário Seminário do Crato. Igualmente teve vez em importantes movimentos políticos nacionais, como a marcante participação de José Martiniano na Revolução Pernambucana de 1817 e de seu irmão, Tristão Gonçalves, na Confederação do Equador. Tudo sem falar no movimento de rebelião e queda do Presidente do Estado, Franco Rabelo, liderado pelo patriarca de Juazeiro. Isso, apenas para ficarmos em exemplos tópicos, porque a riqueza da cultura local caberia sem dúvidas em dezenas de volumosos tomos.
                   Foram exatamente as características únicas que marcaram a construção do Cariri que conduziram um grupo de pioneiros, notáveis estudiosos da história e da diversidade cultural local, a se organizarem nos moldes de uma academia de ciências. Foi no longínquo outubro de 1953 que a melhor intelectualidade do Cariri fundou seu instituto de ciências, o Instituto Cultural do Cariri.
                   Irineu Pinheiro era um médico com espírito de pesquisador em história. Não possui nenhum livro sobre as ciências médicas, mas é impossível compreender a história local sem a consulta à sua rica obra sobre o Cariri. Médico e amigo pessoal do Padre Cícero, foi também testemunha ocular de um dos mais impressionantes episódios da história local, o da queda de Franco Rabelo pelas mãos dos asseclas de Padre Cícero. Foi este médico o primeiro presidente do Instituto Cultural do Cariri, o ICC. Figueiredo Filho era boticário, e a partir de sua tradicional farmácia estudava e buscava compreender o mundo à sua volta, sempre a partir do Cariri. Era outro historiador por vocação, sendo clássica e inevitável para os estudiosos sérios a visita à sua História do Cariri, dentre outras importantes produções. É ele o segundo presidente do ICC. Já o terceiro presidente do Instituto se tratou de figura bem mais polêmica e ainda mais aguerrida. Sempre, contudo, um profundo estudioso da história local. Trata-se do padre Antônio Gomes de Araújo, cujo texto mais polêmico e até hoje referenciado nas modernas pesquisas a respeito da historiografia local foi publicado na Revista Itaytera, publicação oficial do ICC. A referência é ao artigo intitulado Apostolado do Embuste, através do qual pretende desmascarar o famoso milagre da conversão da hóstia em sangue, atribuído ao padre Cícero e analisado em ampla historiografia.
                   Opiniões e polêmicas a parte, o fato é que o Instituto Cultural do Cariri chega à sua terceira geração de acadêmicos, todas elas comprometidas com o desenvolvimento da ciência e progresso da região. Tanto os críticos quanto os admiradores dos trabalhos do ICC não poderão negar a importância dos trabalhos por ele capitaneados para a preservação das fontes históricas e compreensão dos diversos períodos históricos do Cariri cearense. Nenhum pesquisador sério da história local poderá recusar o ICC e sua contínua produção como a mais rica fonte sobre o Cariri. A biblioteca do Instituto ainda hoje guarda relíquias inigualáveis.
                   Só isso já bastaria para justificar os festejos dos sessenta e cinco anos do Instituto.
                   Mas a moderna geração de acadêmicos que atualmente se encontra à frente dos destinos do longevo ICC, ao mesmo tempo em que busca preservar esse insubstituível legado, procura olhar para a frente. Os tempos são outros e as demandas da atualidade impõem um movimento de maior integração das atividades do Instituto com toda a produção acadêmica hoje ainda mais rica do Cariri. É tempo de estabelecer parcerias mais profícuas com as instituições de ensino do Cariri, como as universidades públicas e privadas que pululam nas suas principais cidades; mas também de atuar com maior desenvoltura em todos os municípios da região.
                   O tempo é o de olhar para além dos limites geográficos e culturais do Crato.

Jorge Emicles

terça-feira, 2 de outubro de 2018


ESTADO DEMAGÓGICO DE DIREITO




                   Por todos os cantos da nação reverbera em um brado uníssono o sedutor canto da mãe democracia, convidando os súditos de todas as matizes ao exercício cívico do sufrágio. Venham, doces filhos da liberdade, brada-nos a voz suave da democracia, venham emprenhar com as suas soberanas vontades os destinos dessa rica pátria, de promissor e invencível futuro.
                   Por mais que seja o Brasil uma pátria dividida entre ricos e pobres; intelectuais e analfabetos funcionais; progressistas e conservadores; homofóbicos e heterossexuais; feministas e machistas; pretos, brancos, amarelos e mestiços; nortistas-nordestinos e centro-sulista e sulistas; ainda assim nos cantam na propaganda eleitoral, seja a dos candidatos e partidos políticos, seja a da própria Justiça Eleitoral, como uma nação unívoca, cuja libertação de todos os seus males acontecerá no âmago reservado da cabina indevassável, lugar em que depositarão os cidadãos seus votos. Afinal, ensina-nos a massificante propaganda oficial, somos uma pujante democracia. É das urnas que deverão sair as soluções para os nossos mais tenazes problemas!
                   Mas esquecem de explicar em que propriamente consiste essa tal democracia.
                   Pois tentemos humildemente lançar um pouco de luz sobre esse sistema tão intricado e de ampla difusão no ocidente.
                   Dêmokratia, do grego, significa literalmente poder do povo. Em Aristóteles, temos que democracia é “o Estado que os homens livres governam”. E diz bem o velho amigo do conhecimento, pois o poder pressupõe antes a liberdade, uma vez que sem esse substantivo não haverá meios para o exercício do poder.
                   Um velho professor de direito eleitoral, um daqueles sábios esquecidos pelos modernos estudiosos da matéria, ensina que a democracia somente poderá ser exercida em um estado de absoluta igualdade. Onde os homens por qualquer razão não forem iguais, ali não haverá uma democracia de verdade, mas uma corrupção dela. Esse velho professor a quem nos referimos ressaltava mais as dezenas de formas através das quais essa igualdade (que é o mesmo que dizer, parafraseando Aristóteles, liberdade) é corrompida: pelo abuso do poder em geral, seja ele o econômico, político, de propaganda, cultural, etc.
                   Portanto, não é apenas comprando o voto dos cidadãos que se corrompe a igualdade do sufrágio, pondo a perder todos os alicerceares da democracia, mas também por todas as demais formas que comprometam a isonomia entre os cidadãos, seja pelo abuso do poder político, fazendo a máquina do Estado trabalhar a favor de alguma candidatura; seja o abuso do poder de marketing, com a utilização de propaganda falaciosa; seja mesmo pelo abuso do poder cultural, criando vantagens a partir da apropriação de determinado conhecimento. Em uma palavra, é bem sutil e variável a quebra da igualdade entre os competidores no complexo jogo democrático.
                   E se os cidadãos que participam do processo de sufrágio não são verdadeiramente livres, não existirá democracia, mas uma corrupção ou simples aparência dela. Entre desiguais não existirá liberdade, afinal.
                   Desde o final da Segunda Grande Guerra, espraiou-se no ocidente o mito da democracia como sendo a salvação de todos os males da humanidade. É famosa e até hoje repetida a frase do inglês Churchill que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Mas a democracia possui seus riscos e sua corrupção pode causar perigosos danos a qualquer nação. Rever os fatos da história nos revela essa triste verdade.
                   A Alemanha do entre guerras fundou-se como uma República democrática. Foi através do sufrágio popular que buscou sair da pior crise econômica de sua história. Devassada pelos nefastos efeitos da Primeira Grande Guerra, foi através do voto que fez chegar ao poder a maior esperança de soerguimento de sua economia e orgulho nacionais. Foi pela porta da frente do regime democrático, portanto, que Adolf Hitler se transformou no Primeiro Ministro alemão, somente mais tarde vindo a dar cabo ao golpe de Estado que o tornaria soberano absoluto dos alemães. No mesmo período histórico os Italianos fizeram algo bem parecido. Foi a convite do rei constitucional que Mussolini entrou triunfante na cidade de Roma para assumir o cargo de Primeiro Ministro, só mais adiante vindo a se consolidar como ditador. Mais recentemente, na América Latina, Hugo Chavez chegou ao poder na Venezuela através do voto direto, se consagrando como um dos mais populares presidentes daquela nação. Com o titubeio da economia, reformou a constituição, adiou eleições em que perigava ser derrotado, prendeu as mais destacas lideranças da oposição para se livrar dos adversários e só saiu do poder depois da sua morte. Não, contudo, sem deixar sucessor ainda mais sedento de poder, que em nome da sua manutenção lançou o país na pior crise econômica, social e política de sua história.
                   Ainda mais gritante é o exemplo dos Estados Unidos da América do Norte, que fez chegar ao poder o famigerado Donald Trump, que se galgou candidato contra a vontade das mais influentes lideranças de seu partido (que restaram sem poder de ação diante da devassadora máquina de propaganda de que lançou mão –  lembra-se do abuso de poder de marketing?) e ainda por cima se sagrou vencedor em uma eleição na qual teve quase de três milhões de votos a menos que sua adversária, a democrata Hilary Clinton. Tudo, rigorosamente dentro das tradicionais regras da chamada maior democracia do mundo.
                   Muito embora de fato não se conheça regime melhor que o democrático, onde as liberdades possam ser concretamente respeitadas, os exemplos citados deixam à evidência que a democracia por si somente não é capaz de livrar-se das tendências de abusadores. Nefastos personagens que pela força do convencimento recebem o poder de mãos beijadas, aplaudidos pelo povo, a quem mais adiante irá oprimir e recusar a soberania. Se não chegamos ao ponto de negar a valia da democracia, advertimos a respeito de duas evidências históricas: a democracia tende naturalmente a se corromper; e é pelo sufrágio que se entregou o poder aos maiores tiranos da história.
                   Atenção especial ao atual momento da história nacional.
                   Ainda na antiga e clássica filosofia podemos identificar as razões que conduzem ao descalabro das democracias. Segundo Aristóteles a principal causa que as conduz ao degredo é o excesso de desigualdade. Se por um lado, não é possível construir uma sociedade absolutamente paritária, onde todos possuam a mesma fortuna e o mesmo grau de conhecimento, é inevitável que a democracia não consiga sobreviver onde os graus dessa desigualdade sejam exorbitantes. No caso brasileiro, compare-se o valor da menor remuneração permitida pelo ordenamento constitucional (o salário mínimo) com a maior admitida aos agentes públicos (Ministro do STF) e se aferirá o vício do excesso de desigualdade a corromper naturalmente a nossa pseudo democracia. Isso sem levar em conta que a menor remuneração existente é de fato bem inferior ao valor tolerado em lei, assim como a maior é bem superior à ditada na regra constitucional (segundo levantamento da imprensa, mais de setenta por cento dos juízes recebem acima do teto expresso na Constituição). Se falássemos da astronômica diferença entre os mais pobres e mais ricos, mais cultos e analfabetos, teríamos ainda mais clara essa perigosa evidência, uma das principais causas da corrupção da democracia no Brasil.
                   O excesso de desigualdade faz surgir, ainda segundo Aristóteles, o maior de todos os riscos à democracia. Segundo ensina, “a principal causa das mudanças é, nos estados democráticos, o atrevimento dos demagogos”, pois é exatamente o discurso fácil da demagogia que ilude o eleitorado, convencendo-o da existência de soluções simplistas para problemas complexos. Violência se combate com violência. A pobreza se enfrenta somente com políticas sociais. O Estado é quem deve produzir riquezas e gerar empregos. Contudo, estudos sérios denunciam as meias verdades contidas em cada uma dessas assertivas. Endurecer a lei penal apenas piorará o problema da superlotação do sistema prisional, que na medida em que agrava o desrespeito aos direitos mínimos de existência dos presos, alimenta a indústria do crime organizado, cuja matéria-prima é exatamente a massa de encarcerados, que se profissionaliza no crime e jamais é ressocializada. As políticas de fomento social combatem a miséria, mas não resolvem suas causas, que somente serão superadas por um sistema sério e eficaz de educação. Um Estado do modelo brasileiro jamais poderá produzir riquezas, mas apenas confisca-las por intermédio de tributos e consumi-las na prestação de serviços e na manutenção de sua cara máquina burocrática. Tudo isso sem falar nos custos incalculáveis da corrupção, inerente ao próprio Estado e não filha desse ou daquele partido político.
                   Todos esses são argumentos construídos na antiguidade clássica. Não formam uma teoria de momento que busca se adequar como uma luva à realidade nacional moderna. São retirados da obra de Aristóteles, reconhecido filósofo, que no século IV a.C. legou toda a humanidade com a reconhecida obra A Política, de onde retiramos os principais elementos teóricos utilizados nesse despretensioso artigo. Sua adequação à realidade nacional não deve ser mera coincidência, no entanto. Aliás, não acreditamos que coincidências existam, muito notadamente nos domínios da história.
                   Analisar as campanhas presidenciais postas nas ruas no ano presente, especialmente aquelas com maior chance de vitória, conforme os levantamentos estatísticos da quase unanimidade das pesquisas divulgadas, põe em evidência não somente a profunda desigualdade existente, mas principal e perigosamente, o nível de demagogia a que são capazes aqueles que encabeçam as respectivas candidaturas. Diante desse estado de coisas, a mais demagógica de todas as assertivas está em pretender que a solução para a crise estará no puro e simples exercício do sufrágio. Sendo assim, nenhum dos personagens do jogo democrático é mais demagógico que a própria Justiça Eleitoral.
                   Dizer isso não é advogar por uma ditadura, porque aí menor ainda será o grau de liberdade; maior o de desigualdade. Mas é advertir que o sistema democrático falhou por ter permitido a existência de candidaturas tão perigosas e inúteis à manutenção da própria democracia. Também é chamar a atenção para a necessidade de instituição de políticas de Estado, daquelas que estão acima dos partidos e mandatários de ocasião. E a principal delas necessariamente deverá ser a de educação. É preciso que se exerça o sufrágio, mas antes é necessário que o cidadão seja educado para o seu exercício. Logo, a primeira prioridade do Estado tem de estar na educação. Somente isso libertará o povo das amarras da desigualdade e da ignorância. Tudo o mais é discurso demagógico, apenas. Para concluir assim, bastaria ler Platão, pois é essa a principal suma de toda a sua rica obra.
                   Se é verdadeira a liberdade de que nós, cidadãos, dispomos no regime democrático, então o sistema terá que construir uma resposta adequada ao estado de coisas em que nenhuma das candidaturas postas e com real chance de vitória minimamente atenda às necessidades do sistema e aos anseios da população. Do contrário, a democracia não será o “governo dos homens livres”. Nesse contexto não é consciente votar no menos mal, para garantir a vitória de quem por motivos ideológicos ou pessoais odiamos. A democracia não é o sistema dos ódios, mas o da consciência. Se nenhum dos candidatos postos representa o ideário de Estado que buscamos, é plenamente legítimo o voto nulo, pois isso significa um protesto e uma denúncia contra o descalabro das coisas postas.
                   Faz muito mal (certamente não por inocência) a Justiça Eleitoral ao determinar que os votos nulos e brancos serão totalmente desconsiderados na totalização dos percentuais de votos, porque isso retira a possibilidade prática do voto de protesto. Tal regra, advertimos, não está inscrita em nenhuma lei da nação, mas em um mero regulamento editado unilateralmente pela própria Justiça Eleitoral. E desde quando, mesmo, é possível a edição de regulamentos autônomos, sem amparo expresso em lei, no direito brasileiro? Este é outro fator que faz desacreditar a democracia à brasileira.
                   A tese é a de que será possível construir uma revolução silenciosa, fazendo o sistema corrompido e irrecuperável da democracia brasileira ruir de dentro para fora, sem armas ou qualquer outro tipo de violência, simplesmente pela utilização do voto de protesto. Quando, por exemplo, mais de noventa por cento dos votos forem nulos nenhum governo será legítimo e naturalmente não conseguirá sobreviver. O sistema brasileiro, tal qual está construído jamais permitirá que um político honesto e bem intencionado chegue ao poder central. Portanto, o único caminho pacífico para a sua destruição é pelo voto de protesto. Votar no menos mal é outra maneira de legitimar o sistema posto, porque assim jamais haverá o bom de verdade.
                   A propósito dessa tese, recomendamos a leitura de uma obra lúcida e moderna, exatamente sobre a crise das democracias contemporâneas. Novamente não é uma obra de ocasião, que sequer mirou para o caso brasileiro. É uma crítica bem genérica à democracia como sistema. Referimo-nos ao livro Ensaio Sobre a Lucidez, do português, prêmio Nobel de literatura, José Saramago.
                   Fica a dica.
Jorge Emicles

quarta-feira, 26 de setembro de 2018


TOTA



                   Quantas seriam as maneiras possíveis de se fazer caridade? O ideal básico, construído das experiências cristãs é, sem dúvidas, dar alimentos, agasalhos e um teto aos miseráveis. A figura lembrada no imaginário global talvez seja a da benfazeja madre Tereza de Calcutá. No Brasil, falariam por certo da humilde irmã Dulce. Sem dúvidas, pessoas que legaram toda a vida à causa dos pobres. Não se poderá mesmo duvidar do quase infindável número de pessoas que foram socorridas por essas almas caridosas no momento mais tormentoso de suas vidas. É inegável que praticaram grandes e importantes atos de caridade, o que os destaca como santos e mártires católicos.
                   No nordeste brasileiro, no tórrido chão do sertão, naquelas regiões quase esquecidas pelo poder público e tantas vezes ignoradas pela máquina eclesiástica da igreja católica a figura mais notória sem dúvidas será a do missionário padre Ibiapina, que abandonou as míopes letras da magistratura e da advocacia pela peregrinação errante, terras secas adentro, a fundar tanto quanto pode as inumeráveis casas de caridade. Eram organizações dotadas de uma hierarquia leiga, formada por irmãs não ordenadas, a quem incumbia o padre de organizar os serviços educacionais e caritativos da instituição, que eram o de dar alimento e educação básica à população carente da localidade. O Crato ganhou uma das mais afamadas Casas de Caridade do padre Ibiapina.
                   Mesmo convidado o padre pela diocese do Ceará a abandonar as terras alencarinas, seguiu funcionando por muitos anos a Casa de Caridade do Crato, mantendo vivos os princípios e propósitos de seu benemérito fundador, que jamais em vida voltou a visitar nenhuma das Casas de Caridade fundadas na diocese do Ceará.
                   Ali, pelos idos dos anos setenta do século passado chega uma jovem freira, de idade curta, mas de experiência avançada nas artes da educação, a quem se entregou a administração da Casa de Caridade do Crato. Jamais foi seu propósito, mas parece que quis o destino que sua vocação seria o exercício da caridade através da educação. Eis que a sorte da vida lhe legou uma turma de crianças que por falta de vagas estavam preteridas de outras escolas da cidade. Ela, determinada freira, não poderia deixar aquelas crianças sem as lições básicas da educação a que estava já tão habituada como ex-diretora do centenário Colégio Santa Tereza, em Crato. Recebeu as crianças com destemor, mesmo sem a anuência do bispo. Ao termo de seis meses, aquele minguado punhado de crianças já era em número de cinquenta. Com menos de um ano era imperioso fundar nas dependências da Casa de Caridade de Crato uma nova escola, porque era cada vez mais numerosa a procura da nova clientela. Foi inevitável aquilo tudo, dado o magnético carisma da jovem madre Feitosa, primeira e até hoje única diretora do Colégio Pequeno Príncipe, atualmente um dos mais renomados do Cariri.
                   Mesmo dividindo as dependências da antiga construção tomada a efeito pelo padre Ibiapina com a nova escola, continuaram por longos anos sendo assistidos os miseráveis que procuravam madre Feitosa. Nunca lhes faltou o de comer, como também jamais lhes foi negado abrigo, afeto e orações. A expressão madre vem do latim mater e significa mãe. Pois poucas mulheres mereceriam esse substantivo mais que aquela freira, que mesmo sem jamais parir foi mãe de dezenas, quiçá centenas de almas desvalidas, a grande maioria delas pobres que encontrou no transcurso de sua missão à frente da Casa de Caridade. Tota, era como aqueles seus filhos postiços tratavam a caridosa mãe com a qual Deus lhes havia acudido na sofrida vida.
                   Porém, ela não foi somente a mãe dos pobres, pois entre os melhores validos também encontrou o sofrimento e a penúria do desamor, do abandono e de diversas outras formas de desespero. Ela não olhou a quem, tendo servido indistintamente a todos que lhe pediram socorro. Compreendeu como poucos que talvez a mais hábil das caridades que se pode fazer a outro é a de lhe alimentar o espírito pelos frutos do conhecimento e pelos caminhos iluminados da educação. Pois também se conta às centenas o número de pobres que tiveram a possibilidade de estudar no colégio da madre Feitosa. Sem custos, mas com os mesmos direitos dos que tinham a possibilidade de pagar. Talvez tenha sido esse o maior mérito do Colégio Pequeno Príncipe nos seus primeiros anos de existência.
                   Orginalmente eram os mesmos os corredores do colégio e da Casa de Caridade, de paredes largas, ares meio sombrios e muitas histórias de sofrimento impregnadas na energia daquela antiga construção. Era a mesma a capela em que as turmas de crianças eram educadas no catecismo e que, décadas antes, fora aprisionada e interrogada a beata Maria de Araújo no famoso processo eclesiástico que apurou o milagre de Juazeiro. Foi ali mesmo que a beata disse ao inquisidor, humilde, mas com firmeza, que o padre Alexandrino, presidente do processo, não estava em estado de graça, o que a impedia de operar o milagre em sua presença. A primeira geração de alunos do Colégio Pequeno Príncipe viveu ali, impregnada da história mais viva e contundente do Cariri cearense. Testemunhando sem saber os mais decisivos conflitos acontecidos que tinha havido entre a hierarquia eclesiástica de Roma e os santos consagrados pelo povo. Primeiro o padre Ibiapina, depois o padre Cícero, seu legítimo sucessor.
                   Madre Feitosa sempre foi alheia a tudo isso. Soube respeitar a visão dos historiadores, dos teólogos e da tradição popular. O que de fato sempre importou a ela foi a realização da caridade. Todos os pobres que a procuravam estariam alimentados e acolhidos? Todas as crianças que recebia diariamente estavam felizes e devidamente instruídas? Que bons conselhos poderia dar a uns e outros? Como poucos, soube a freira se apropriar do sentido de amor encontrado na clássica obra que deu nome a seu colégio. Eres responsável por aquele a quem cativa. Tudo deveria ser simples assim, sem debates ideológicos ou julgamentos históricos. O que o Cristo prega é o amor. Pois é dever de cada cristão praticá-lo com intensidade e destemor. Foi o que ela fez e continua fazendo mesmo superadas mais de nove décadas de vida terrena.
                   E assim, ao longo de décadas de simplicidade abnegada legou pelo seu exemplo a seguidas gerações as lições do Cristo, que é amor, acolhimento, respeito e dedicação.
                   Merecido o reconhecimento popular dela como uma santa encarnada.

Jorge Emicles

sábado, 8 de setembro de 2018


LEI DO MOVIMENTO




                   Há quatro anos passados o processo eleitoral brasileiro já foi de extrema complexidade. Já ali não faltaram emoções profundas. Uma eleição que se apresentava previsível ganhou corres limítrofes a partir da morte de um dos candidatos, vítima de desastre aéreo. Claro, não faltaram teorias da conspiração induzindo a existência de interesses ocultos que teriam comandado o atentado que resultou no dito acidente.
                   O resultado foi uma eleição cuja legitimidade restou profundamente questionada por vários setores da sociedade, seja pela pequena diferença de votos entre os candidatos que disputaram o segundo turno da eleição, seja mesmo pelas mentiras e calúnias que arrastaram para o lamaçal da ignomínia toda e qualquer pretensão ética do processo de sufrágio.
                   A derrocada econômica do país e a crise política que conduziram ao impeachment da Presidente da República nos parecem meras consequências dos fatos levados a cabo ainda durante a campanha presidencial de 2014.
                   O fato, contudo, é que as coisas poderiam e ficaram bem piores que alhures. Não bastasse o candidato favorito das intenções de votos encontrar-se preso e juridicamente impedido de registrar sua candidatura, o que em si mesmo põe em xeque a legitimidade de todo o pleito; não fosse suficiente o patente desinteresse de grande parcela da sociedade com as eleições, convicta que está da absoluta inutilidade do sufrágio que conduz sempre à vitória dos mesmos interesses dos mesmos grupos hegemônicos de sempre (desde a Revolução Francesa, quiçá desde sempre, que o povo é mera bucha de canhão, instrumento da tomada de poder de castas outras da sociedade); não houvesse a radicalização de posições em todos os rincões da sociedade, fazendo da política uma guerra fraticida entre o povo com ele mesmo, criando a ilusão de que o inimigo esteja à direita ou à esquerda (de onde ou de quem não dizem), lembrando vívidas e cheias de razão as antigas palavras de Foucault, de que a política é uma guerra sim, mas feita com armas diferentes; todas essas coisas formam apenas o tempero para o grosso caldo social que vem entornando a presente realidade política.
                   Toda essa panaceia ainda era pouco para o Brasil. Afinal, quando a coisa vai mal, é sinal que tende a piorar mais e mais. Não ao acaso, portanto, nos afrontou o atentado sofrido pelo candidato que atualmente (com a retirada da campanha do outro) figurava como o novel preferido das intenções de voto. Uma facada traiçoeira, rápida como o bote de um gato matreiro, fez desfalecer o candidato Jair Bolsonaro em pleno ato de campanha. A vítima fora atingida literalmente quando estava nos braços do povo, o que em si mesmo tem um poder simbólico profundo para a midiática sociedade contemporânea. Essa imagem ainda será repetida à exaustão até o dia do pleito, não dividamos.
                   As informações da imprensa dão conta de que houve real risco de morte; que se o socorro não houvesse sido pronto o falecimento do candidato seria uma possibilidade plausível diante dos fatos dados. Embora sempre haja os que venham falar de armação, os fatos apurados e o depoimento da equipe médica não induzem a essa conclusão.
                   Então é preciso perguntar: a quem interessa um atentado fracassado ao candidato da intolerância contra as minorias sociais brasileiras? As pesquisas dirão, mas o sentimento que grassa sobre todas as campanhas presidenciais é de que somente o próprio Bolsonaro sairá com vantagens do episódio.
                   O algoz do candidato diz ter agido em nome de Deus (que até parece estar cada vez mais disposto a formar um exército de fanáticos mundo afora, capaz de dizimar todos os que não comunguem de sua Onipotência – mas, ora, não seria mais fácil a Deus fazer como fez aos egípcios do tempo de Moisés, insuflando-os de pragas cuja mais terrível foi a morte de todos os primogênitos daquela terra, a começar pelo do Faraó?). Fato mesmo é que teorias da conspiração pulularão em número cada vez maior. Há ainda dúvidas sobre se o autor do ataque agiu sozinho ou com o apoio de outros; a respeito de quem financiou um desempregado a permanecer dez dias em uma cidade que não era a sua, e porque razões o teria feito; se ele teria ou não de alguma maneira sido insuflado por algum discurso político e radical...
                   De tudo isso, o que é indiscutível é que a lei do movimento fez girar a roda da vida. O candidato que mais pregou o discurso da violência e o uso dela para combater esse mesmo mal que em diversos níveis gravita em toda a nação, foi exatamente ele a vítima direta de um ato assaz e reprovável de uma das piores formas de coação conhecida. Por muito pouco, afinal, ele não foi o destinatário de uma sentença unilateral e irrecorrível de morte, ditada por um radical e despreparado indivíduo, que movido pela mesma arrogância que por certo insuflou um tanto dos discursos do candidato em suas bravatas ilusórias e autoritárias, quase fez a foice do ceifador agir contra sua própria energia vital.
                   Previsão do tempo? A tempestade está apenas no início. O prognóstico de um furacão de nível máximo é quase certo.

Jorge Emicles