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domingo, 24 de dezembro de 2023

 


  

O NORO

 

 

                   Zé Perrelo era cabra dos matos, nascido no tórrido chão do sertão do Ceará, na fazendo onde eram moradores os seus pais e, antes deles, seus avós. Teve a típica formação dos sertanejos, solto nas veredas da caatinga, desde cedo acostumado à lida do gado e da roça. Nas horas de folga, caçava passarinho e veado nas matas, tomava banho no açude da fazendo, frequentava as noites de samba que quando em vez aconteciam nas casas da redondeza.

                   Nesse típico exemplo de vida sertaneja cresceu menino, se pôs jovem, enamorou-se de Rosa, filha do vizinho Agostinho e ali mesmo, na dura realidade das longas secas intercaladas por raros anos de chuvada e fartura, na mesma fazendo onde nascera e crescera, também formou sua própria família. Rosa, sua mulher, era até estudada para seu nível de formação, tanto que passara alguns anos estudando na cidade, que na verdade era um pequeno povoado distante algumas léguas da fazenda. Lá, no distrito conhecido por Ferreiro, em memória esquecida da profissão de um antigo morador, era a única referência que tinha de urbe. Na verdade, era um pequeno aglomerado de casas, capaz de formar apenas duas pequenas e estreitas ruas, com uma pracinha e uma igreja, quase capela, ao centro. Cidade grande mesmo, cheia de arranha céus e veículos engarrafados não sabia como seria e, se visse, morreria de pânico.

                   Já era pai dos três meninos que lhe dera Rosa quando o governo trouxe a energia elétrica para a fazenda. E daí, junto a um tanto de benefícios, veio não somente a geladeira e os bicos de luz para clarear as noites, mas também a televisão, sintonizada através de uma enorme antena parabólica instalada no pobre telhado de sua residência. Sempre achou discrepante aquela imagem vista de longe: uma casa de taipa sem pintura, marrom da cor do barro batido para encher as fendas da madeira entrelaçada na estrutura interna da construção; a cara da pobreza e abandono do sertanejo e, paradoxalmente, aquela estrutura prateada e de geografia circular perfeita no teto da morada.

                   Não combinava nada, afinal, o colorido da modernidade com a secura cinzenta da vida no sertão que, no máximo, permitia se enverdejar nos raros anos de chuva. Lhe parecia antinatural a realidade apresentada na tela do aparelho, cheia de cidades superpovoadas, com vizinhos que dividiam a mesma parede, o mesmo chão e o mesmo teto dos minúsculos apartamentos dos enormes arranha céus; diferente da vida em espaços largos do sertão, onde no correr do dia se encontrava com pouquíssimos viventes, em geral, conhecidos de quem se sabia a ascendência e a descendência. Especialmente lhe causava estranheza o estilo de vida daquelas pessoas urbanizadas, indiferentes uns aos outros e de hábitos bem questionáveis. Era àquela cultura propagada com furor e alegria através do aparelho de televisão a quem atribuía seu desgosto.

                   Foi o filho caçula de Zé Perrelo o mais influenciado pelo universo paralelo apresentado pela televisão. Entendia o matuto que tudo era fruto da má influência das novelas e filmes apresentados através da telinha, ensinando costumes e valores bem diferentes dos que aprendeu dos pais e ensinou aos filhos. O fato é que, enquanto os dois filhos mais velhos logo jovens se iniciaram nas artes dos amantes, namorando as moças das redondezas, o mais novo sempre se mostrou muito ensimesmado, cheio de timidez, avesse às danças e aos demais eventos sociais da comunidade. Sempre preferiu ficar em casa, assistindo à programação que não cessava nunca até alta madrugada, quando já todos da casa grassavam em sono profundo. Por isso, achava Zé, Vicente, o Lôrim, como o chamavam os de casa, nunca se interessou por namoro.

                   Já contava com vinte e cinco anos o rapaz quando Zé estranhou uma amizade excessiva de Lôrim com o filho de Joaquim, um vizinho próximo. Fato é que os dois rapazes sempre estavam juntos, se encontravam diariamente, saíam para tomar banho no açude sempre em par, preferiam evitar outras companhias. Não se tocavam em público, mas houve certa ocasião em que Zé os flagrou no meio do mato, fazendo não sabe bem o quê. A cara de desconfiança dos dois não deixou muitas dúvidas sobre que artes andariam a fazer os jovens.

                   Transtornado com a descoberta, foi ter com Rosa, que, ao final, disse já saber de tudo e que ele não se metesse a besta porque hoje as pessoas eram livres, poderiam ser e se relacionar como bem entendessem. Até o papa já dissera que não havia nada de pecado nessas coisas e se nem Deus se opunha e esse estilo de vida, não haveria de ser o ignoto Zé quem se atreveria a dizer nada. Tratasse de se conformar com os gostos do filho e ai dele se dissesse um “a” que fosse contra o filho. Isso não o tornava nem melhor nem pior que os outros. Tudo isso estava na televisão. Todos são iguais, não importa a cor, o gênero ou as preferências. Era crime ter preconceito contra o filho e ela mesma o denunciaria por qualquer mau trato. Vergonha mesmo, alertou por fim Rosa, era os filhos terem seu pai preso.

                   As palavras da mulher foram tão contundentes que, por mais que não aceitasse o estilo de vida do filho, não teve jeito a dar. Se fosse o seu pai, sabia, encheria de sarrafo o lombo do menino até ele se arrepender. Mas, com a mulher que tinha, bem sabia que não poderia jamais fazer algo desse tipo. Depois, por mais que reprovasse aqueles gostos, não conseguia deslembrar que Vicente sempre foi o seu mais querido e apegado filho. Nada daquilo, no fundo, lhe atenuava o amor que sentia ao descendente.

                   Por tudo isso, trancou dentro de si a agonia que toda aquela situação lhe causava. E, nesse silêncio, amaldiçoou o quanto pode a chegada da televisão em sua pobre morada. Mesmo assim, não perdeu o hábito de assistir ao jornal nacional, já sempre trôpego de sono, todas as noites.

                   Aos poucos foi se acostumando com a presença de Vicente e seu amigo íntimo em todas as ocasiões da família. Nos aniversários, na semana santa, nos finais de semana, não importava. Sempre estavam lá os dois juntos, com as noras e, com o tempo, os netos, filhos dos seus outros dois filhos. Era impossível não se habituar àquele casal. Com o tempo, o próprio Zé já tratava com naturalidade o parceiro do filho. Lhe incomodava mesmo, no entanto, eram os olhares e risinhos cheios de sarcasmo dos vizinhos, escarnecendo às escondidas com o drama do pobre sertanejo.

                   Das brincadeiras que lhe faziam, a que mais incomodava era quando perguntavam o que, afinal, o filho do Joaquim era seu e de seu filho, porque até parecia gente da família, dono de uma intimidade que só mesmo os de casa tinham. Foi em uma dessas vezes, numa véspera de Natal, que Antônio de Deda, outro vizinho, entabulou a pergunta de quem seriam os seus convidados para a ceia de Natal, ao que Zé Perrelo respondeu que lá estariam seus três filhos, as esposas e Luiz, o filho de Joaquim. Não podendo perder a deixa, de pronto Antônio indaga: mas e, afinal, compadre, que diacho esse Luiz é seu, afinal toda reunião de família ele tá sempre, não é mesmo?

                   Engolindo a vergonha, Zé Perrelo decidiu acabar de vez com a chacota. De pronto disse então: é meu “noro”, hora. E tu num já sabe! Deixa os meninos em paz!

 

 

Jorge Emicles