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segunda-feira, 23 de julho de 2018


QUERENÇAS





                   Quero um amor sereno, firme, constante e sem veneno, que não se deixe levar pelo erógeno; que seja pasto da liberdade dos sentidos, seja em tudo muito bem resolvido, na convivência se destaque por tranquilo.
                   Mas antes mesmo disso quero o amor, porque vasculhando com real destemor outros sentidos verifiquei, triste, a sequidão dolor de centenas de cardíacos batimentos, todos sem cor. Todos despidos de amor.
                   Quem vive sem esse ápice dos subjetivos sentidos, de verdade não vive. Talvez, com esforço sobrevive num mundo infinitamente cheio de horrores, inclusive. Possui abundantes metas para dali a anos. Mas, sem amor, que poderá haver depois das dores? Bolores de sentimentos antecessores?
                   Quero a paz habitando meu espírito. Dias plenos, corridos de trabalho, a zoeira caótica da matéria em arrebito, mas por dentro ver do peito fluir o serenado de quem não pegou das dores o atalho. De quem foi corajoso, sem qualquer atabalho.
                   Pretendo assim que fluam os anos, deles se desdobrando decanos de sabedoria, sem desenganos. Que a felicidade se construa sem pressa, devagar, para que aos pouquinhos, em cada degrau desse perene vagar, seja capaz de feliz, em mim enxergar a Grande Obra a recriar a perfeição do mundo a me aperfeiçoar. A minha infinitude fazer o mundo mudar de atitude.
                   Desejo viver longevo, existir pleno de elevo, para ao final, no ocaso da existência, poder olhar com orgulho da vivência. Se merecedor de tanto for, ao termo segurar firme na mão que a mim tenha amor, seguir rumo ao infinito, nem bem importa a que destino por. De lá, longe do presente ponto, quero crer que os amigos verdadeiros, vez e quando, lembrarão de mim e recordarão um meu conto.

Jorge Emicles


quarta-feira, 18 de julho de 2018


A TRAGÉDIA DE PRINCESA



                   De todos os períodos da rica historiografia do Cariri cearense, o que ganhou estudos mais profundos nos parece ser o da época dos coronéis, localizado na transição entre o fim do império e enraizado na primeira república. Foi exatamente este o período em que viveu e reinou a matriarca de Lavras da Mangabeira, Fideralina Augusto Lima, mulher de ascendência nobre, que através da força do bacamarte e de inigualável prestígio político reinou entre os coronéis de toda a região.
                   É mulher cantada e decantada, de presença viva não apenas nos livros de história, como mais ainda no imaginário popular e na tradição oral da região. É cantada por poetas famosos, como é o exemplo do Cego Aderaldo. Mas certamente a quadra que melhor desenha o tamanho da figura de d. Fideralina de Lavras é a de José Pinto Paes Barreto, quando descreve os donos do poder local dizendo:

                   O Belém manda no Crato
                   Padre Cícero em Juazeiro
                   em Missão Velha Antônio Róseo
                   Barbalha é Neco Ribeiro
                   Das Lavras Fideralina
                   quer mandar no mundo inteiro.

                   Não é mesmo possível tratar da história local daquela época sem abrir capítulo destacado à essa matriarca. Não apenas por ter sido mulher com poder de mando num universo machista e violento, onde a força bruta imperava, mas também pela influência elevada que exerceu sobre os demais mandatários da região. Numa época em que era a força das armas que ascendia e mantinha o poder, Fideralina reinou sem oposições. De todas as cidades invadidas naquele período, Lavras foi a única que resistiu. Isso em 1910, como tão brilhantemente narrou João Calixto em obra específica sobre esse episódio. Igualmente é marcante a participação de Fideralina na revolução de 1914, em que saiu deposto o Presidente do Estado, Franco Rabelo e consagrado na vida política nordestina o patriarca de Juazeiro, quem nutria estreita relação de amizade com Fideralina.
                   De toda sua rica história, é sem dúvidas o episódio de Princesa, então pequena vila paraibana, aquele que talvez mais tenha marcado sua vida, através do qual a velha matriarca transformou uma imensurável tragédia na sua mais definitiva consagração política. Tratou-se exatamente do assassinato de seu neto varão mais velho, a quem ela dedicou especial esmero. Era ele personagem central no seu plano de manutenção do poder familiar, através de quem pretendia ressaltar que o poder estava mudando de nuances. Na próxima geração, ela entendia que seria a caneta, não o bacamarte quem ditaria as relações de poder no país. E ela e sua família não estavam desprevenidos. Ildefonso Augusto de Lacerda Leite foi educado com primor desde suas primeiras idades e no final do século XIX formou-se médico na então capital federal, tendo sempre se destacado pela arguta capacidade intelectual e profundo conhecimento da profissão que abraçou.
                   Chegou, nos últimos dias do ano de 1900 na pequena vila de Princesa com a nobre missão de dar combate à peste que já havia devastado pelo menos metade da população local.  Não imaginava, contudo, que ali também encontraria paradoxalmente o amor e a morte, numa sina terrível que amalgamaria suas convicções humanitárias e a construção de uma nova família, com a terrível destruição de tudo isso através dos sentimentos de ódio, rancor e ciúmes, tudo bem temperado pela vingança, pela cobiça e pela política.
                   É essa a história magistralmente narrada por Cristina Couto em seu livro, A Tragédia de Princesa – o Caso Ildefonso Augusto de Lacerda Leite.
                   Num episódio cheio de maliciosidade, juntaram-se o padre e o mandatário político local para instigar o delegado da cidade a cometer o bárbaro assassinato do médico, tudo ante o conhecimento prévio do juiz e promotor oficiantes no sítio dos acontecimentos. A perseguição estendeu-se à família de sua esposa, cuja casa chegou a ser invadida e por muito pouco não homicidaram ainda seu sogro. A sogra não resistiu a tamanho acinte, falecendo poucos dias depois de mal cardíaco. A esposa de Ildefonso, a jovem, bela e doce Dulce Campos restou viúva, órfã de mãe (razão que a obrigou a assumir a guarda de toda a irmandade) e prenhe de oito meses de uma menina, mais tarde batizada por Cecília. Uma tragédia sem igual, mesmo no ambiente de franca violência que grassou no nordeste brasileiro ao tempo dos coronéis e cangaceiros.
                   Não reconheciam, contudo, os algozes do jovem Ildefonso a robustez de sua avó materna, d. Fideralina, que incontinente remeteu a Princesa um contingente de mais de cem homens bem armados e mandados, incumbidos de dar cabo à vida de todos os autores do horrível assassinato. Segundo a lenda reproduzida por diversas gerações no seio da família Augusto, de Lavras, os cabras de Fideralina ao aproximar-se de suas vítimas para lhes ceifar a vida apresentavam o recado dirigido a cada uma delas: “Taqui, que dona Fideralina mandou”. Ao final do intento, trouxeram como prova do sucesso de sua empreitada um rosário preenchido com as orelhas das vítimas. Nele, conta-se ainda na tradição oral familiar, a velha passou a adicionar as orelhas de suas próximas vítimas. Era nesse rosário, também diz essa mesma fonte, que ela costumava rezar.
                   O que é lenda, o que é verdade desse episódio dantesco restou por mais de cem anos misturado no limbo que separa o mito da história. Cristina Couto, em seu A tragédia de Princesa busca soluções ao entrave, tendo para tanto realizado profunda pesquisa historiográfica ao cabo da qual foi capaz de descobrir fontes perdidas dessa história, versões diferentes para os acontecimentos, tendo sido principalmente capaz de vislumbrar o intricado jogo de poder que fez mover as peças desse complexo xadrez da vida real. Para bem além das pessoas, eram instituições que se engalfinhavam por detrás dos tiros e facadas que deram cabo à vida de Ildefonso Augusto de Lacerda Leite. Era a maçonaria quem se pretendia alvejar; era a ciência laica que se quis apunhalar; eram as luzes e a racionalidade do positivismo quem foi atingido. Eram a Igreja Católica e o Estado viciado da oligarquia local os mentores e executores do intento criminoso.
                   O processo criminal aberto para a apuração dos fatos serve como um belo paradigma do que era o poder judiciário daquele tempo. Ah, mas nada de novo sob o sol, pois não melhoramos quase nada desde então. O jugo dos detentores do poder garantiu a impunidade dos autores intelectuais e executores do fato. Com o tradicional escudo dos intricados discursos jurídicos, não faltaram argumentos para apoiar o desejo do promotor e juiz oficiantes no feito nas suas odiosas teses de que os mandantes nada sabiam sobre aquilo que de fato teriam mandado. Como juristas, realmente, não nos admiramos com a hipocrisia e descarada serenidade com que mascararam a injustiça que cometeram, quase conseguindo fazer da vítima a responsável principal de sua própria morte. Em nada mesmo foram esses personagens melhores que os juízes e promotores da atualidade.
                   Nenhum deles, contudo, escapou ao julgamento da história. Através da brilhante obra de Cristina Couto, então, ressurgem os fatos e personagens marcantes que compuseram a tragédia de Princesa, recolocando cada um deles no lugar da verdade, por intermédio da qual se restabelece a justiça das coisas: Ildefonso foi um humanista visionário e corajoso. As lideranças políticas e eclesiásticas de Princesa energúmenas figuras. O Poder Judiciário cúmplice da iniquidade. Dulce, a doce Dulce, a figura da resiliência, que mesmo profundamente marcada pela dor de perder seus entes mais queridos, tratou de educar os irmãos e propagar o bem durante toda sua longa vida. E Fideralina Augusto Lima a mulher mais poderosa e inquebrantável de todo o nordeste brasileiro.
Jorge Emicles

terça-feira, 17 de julho de 2018


ENVELHECER



Envelhecer,
Em ver-lhe ser,
Em vez de ser,
Em vir dizer.

Viria a ser,
Virá poder
Ao invés, dizer,
Melhor fazer.

Já foi, não é
De tudo que pôde,
Só restou a fé.

Envaidecer
Em vir a ter
Em vez, descer.

Jorge Emicles

quinta-feira, 12 de julho de 2018


INFERNO



                   Ele se imortalizou como poeta, aquele que escreveu das epopeias talvez a mais memorável. Capaz, senão de superar, igualar-se por certo à grandeza da Ilíada e da Odisseia de Homero, de quem por sinal toma emprestados vários personagens na construção de sua prima obra, A Divina Comédia.
                   Dante é o autor e ao mesmo tempo personagem principal da narrativa poética que em três livros descreve a aventurosa viagem nas três dimensões da posteridade, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno, respondendo ao questionamento mais elementar da vida consciente: o que existirá no pós-morte?
                   Como possuía conhecimentos teológicos, não se afasta em seu poema épico da tradição católica que dominou o seu tempo. Muito embora não tenha propriamente sido o criador da ideia de Paraíso, Inferno e Purgatório, lugares de expiações ou regozijos eternos, através de sua arte deu cores vivas e temerosas a tais regiões, marcando de tal forma o imaginário coletivo a ponto de qualquer descrição que se faça hoje desses sítios mitológicos serem inevitavelmente reconstruções diretas ou indiretas de sua obra.
                   Quando aporta ao Paraíso, vê irradiarem do planeta sol (é assim mesmo que ele trata o astro rei) sete raios luminosos, atribuindo a cada um deles a personalidade de um filósofo. O primeiro deles é Tomas de Aquino, a quem incumbe de apresentar os demais. O derradeiro é o Venerável Beda, monge inglês de importância maior à cultura do seu povo, da obra de quem Borges, em seus ensaios dantescos, conclui que inspirou várias passagens da Divina Comédia. Cita, a título de exemplo, a história de Fursa, asceta irlandês, que pela grandeza de sua virtude foi arrebatado ao paraíso, voltando para descrever a beleza e perfeição daquele lugar. Durante a ascensão de Fursa, este avistou quatro fogos de vívido rubro, pelos quais o mundo ainda haveria de ser consumido, sendo eles a Discórdia, a Iniquidade, a Mentira e a Cobiça. Foi tranquilizado, contudo por anjos, porque não poderia ser tocado pelos fogos, porque não o queimaria o fogo que não acendesse, numa metáfora de que o justo não poderá ser consumido pelo pecado que não der causa. Até que no futuro veio a ser queimado pelo fogo da cobiça.
                   Outra história de autoria do Venerável Beda que francamente inspira Dante é a de Drycthelm, morto após uma enfermidade que, porém, miraculosamente ressuscita à primeira noite enquanto era ainda velado pela esposa. Aterrorizado com a visão que teve, resolve mudar completamente de vida, dividindo seus bens em três partes (uma para a esposa, outra para os filhos e a terceira para a pobreza), indo viver de penitência em um mosteiro pelo restante da vida terrena. Em seu sonho mortuário, esteve no Purgatório, tendo vislumbrado os dois caminhos que dele defluem, um áspero, fumegante e quente, que leva ao Inferno, e outro angelical que vai até o Paraíso. É exatamente esse o ambiente descrito por Dante em seu poema.
                   Nada, contudo, é mais aterrador que o Inferno, com seus nove círculos de fogo perene, cada um dedicado a distintos pecados. Os círculos representam exatamente a visão do universo daquela época, pois cria-se que o mundo físico também estaria divido em círculos, estando a terra no centro deles (Jerusalém, segundo a Divina Comédia, era a porta de entrada para este outro mundo, pois foi lá que se deu a queda de Lúcifer). As três dimensões da vida eterna, portanto, reproduzem a mesma geografia que se imaginava para o mundo material. Indiretamente, talvez mesmo sem plena consciência do que fazia, Dante dá testemunho de viva filosofia hermética, conhecida da Tábua de Esmeralda, cuja origem mitológica conhecida remonta à antiguidade egípcia, para a qual, o que está em cima, é como o que está em baixo.
                   Dos personagens que Dante avista no Inferno, é marcante a figura de Ulisses, aquele mesmo Odisseu da epopeia homérica, quem queimava eternamente no círculo destinado aos falsários. Conta o personagem que nem mesmo o amor e a fidelidade de sua doce Penélope fez arrefecer seu ímpeto aventureiro (segundo a história de Homero, Penélope resiste às tentações dos pretendentes cosendo e descosendo um sudário, na firme esperança de que seu amado voltaria da guerra de Troia. Concluir o dito sudário, era a condição por ela imposta a seu pai para aceitar a corte de novos pretendentes). Ainda assim, Ulisses se joga, já velho, em novas aventuras, sendo enfim derrotado por uma tempestade marítima.
                   O ápice de tudo, contudo, é quando Dante chega ao Paraíso. É lá onde avista Beatriz, a eterna musa de sua vida real, a quem jamais tivera e, além do mais, morrera prematuramente na flor da juventude. Inusitadamente, quando a avista perde-se de Virgílio, seu guia durante toda a jornada. Borges explica que enquanto Virgílio simboliza a razão, Beatriz é símbolo da fé. Onde estiver uma não poderá estar a outra.
                   A opção do poeta é claramente pela fé, com a qual associa o sentimento maior do amor. É lá, no que não seja propriamente racional, onde haverá o amor; em que residirá a perfeição do Paraíso. No final do poema, nem aí Dante consegue ficar com sua musa. Beatriz se afasta dele deixando-o sozinho. Talvez isso simbolize que o verdadeiro amor e a perfeição completa estarão sempre naquilo que nos seja inatingível.
Jorge Emicles

domingo, 1 de julho de 2018


OLVIDO
POESIA EM PROSA


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade


                   O fogo sufocante das lembranças restela a memória das coisas findas. O que foi; quem não é; aquilo que poderia ser, ainda. As labaredas da história fazem reviver em vibrantes cenas o que já se foi, soltando com desassossego as cadenas que prendem a ação terminada. Mas, se na memória algo vive, não significa que ainda nalgum canto persiste? Sentimento sobrevive simplesmente porque existe?
                   Que fazer com o passado que não está no presente nem ao futuro poderá ser legado? Que se dalgum modo está morto, ainda não foi enterrado? Que fazer com o ocaso de um alguém em nós já sepultado?
                   Negar o pretérito que fomos, isso não pode. Se omitir da essência transforma ela em doença. Muito menos se pode repisar eternamente a dor. Afinal, tudo somos e temos provisoriamente. Eterno mesmo só o infinito sentimento do amor.
                   Não se nega o que já foi. Mas também não se prende ao que se foi. Se guarda, enriquecendo as lembranças, a dor transformando em esperança; as lágrimas transmudando em perseverança. Da mais terrível dor, fazendo brotar a beleza do mais puro amor.      Tudo isso com calma e leveza.
                   É assim que se chega à realiza.

Jorge Emicles