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domingo, 28 de janeiro de 2018

ALFORRIA



                   A intempérie se abate, às vezes, como uma tempestade ranhosa, pujante e destruidora.
                   Não é mesmo fácil sobreviver à vida, pois viver é um desafio de morte!
                 Mas as dificuldades ensinam o caminho da sabedoria, pois embora não haja um livro da vida o viver em si mesmo já significa uma importante técnica de sobrevivência. Sobreviva a si mesmo; enfrente com coragem seus sentimentos; descortine os monstros que te habitam; descubra o amor pujante escondido no canto mais obscuro do teu ser, naquele lugar onde tudo é dor e amargura; perceba a alegria impregnada no desejo de seguir lutando; compreenda a necessidade das agruras, e, de repente, te descobrirás sábio.
              Aprenda o poder do perdão; pratique a benevolência desinteressada e silenciosa; ame desmedidamente, a começar pela verdade; não crie amarras sentimentais a prender as pessoas, e como que por acaso, te descobrirás liberto dos sofrimentos e emoções negativas.
                  É como disse Sidarta, o desapego é o único caminho para a felicidade completa. É o exclusivo método para a liberdade e plenitude do ser. Não temas, então, conceder a alforria, pois, ao final de tudo o verdadeiro liberto sempre será tu mesmo.


Jorge Emicles

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

VAI PASSAR - CONTO
(DO LIVRO CONVERSAS COM A MORTE)


I.
                            Um turbilhão incontrolável de imagens, sons, e, sobretudo, sentimentos povoou sua mente sem qualquer prévio aviso. Era tudo tão intenso e vivo, que a própria realidade não se apresentaria tão veemente. Naquele instante, porém, não haveria mesmo como distinguir a vigília do onírico. Estava naquele estágio onde o realismo era tal que dor, sofrimento ou alegria se apresentavam em vivacidade tamanha que tudo efetivamente era; onde não caberia existir a imaginação, nem mesmo o delírio. Verdade que não é muito comum termos consciência deste estado, mas acontece com freqüência maior que somos capazes de aperceber de estarmos nele, onde nada existe separadamente, sendo tudo um conjunto uniforme e inseparável. Como se todas as coisas, todos os lugares e todas as pessoas formassem um único bloco, uma só e insuperável realidade, em que absolutamente nada estivesse fora dela. Talvez seja assim que Deus perceba o cotidiano de nós, suas sofridas criaturas humanas. O tempo e o espaço seriam dimensões pequenas demais para Sua imensurável consciência, por isto não deve mesmo perceber o perpassar das eras, o evoluir das gerações, os clamores, as ofensas e orações repetidos incessantemente por já tantos milênios. Tudo deve Lhe chegar como um som uníssono, repetido na constância de um mantra. Lhe parecerá, talvez, que seja uma somente a mãe que lamuria a perda do filho; o órfão que lastima a fome; o idealista que morre para mudar o mundo; o amante desprezado; o pai drogado que maltrata a família; a amante que sacrifica seus sonhos em nome de um amor que perecerá pela sua própria vontade de ser eterno. Lhe parecerá que há somente um doente, em perene sofrimento, rogando no âmago de sua dor por uma solução extrema, porém rápida a sua peleja: a morte ranha ou a vida plena.
                            Se é tal qual ela agora que Deus percebe a realidade universal não se sabe, nem se poderia pretender que soubesse qualquer humano desta espécie, por mais assenhoreado que fosse das coisas Superiores. Muito menos àquela pobre menina se poderia pretender tanto, pois que além de jovem, cuida de problemas mais mundanos e se preocupa com as dores dos homens, de sua realidade mais material, de seus sofrimentos mais atrozes, daqueles que Deus, por ser Supremo, não tem como perceber. Coisas afinal de contas pequenas demais para consciência tão Alta. O que sabe é que todos os fatos que se deram com ela; todos os sentimentos que viveu; todas as pessoas que conheceu encontram-se todas juntas, embaralhadas e fora de foco, como teriam de estar sem a dimensão do tempo e do espaço que nos traduz o que conhecemos por realidade. Naquele estado não lhe pareceu sequer estranho o fenômeno, pois tudo se apresentava como lhe percebia deveria se dar. Ali as coisas eram, sem qualquer racionalização ou ordem esperada. Na história dessa menina não há uma seqüencia lógica ou cronológica dos fatos porque foram assim exatamente que se deram. Na essência, passaram-se mesmo foi simultaneamente, como se fossem a transmissão de diversos canais de televisão funcionando todos ao mesmo tempo, cujas frenquencias estranhamente se embaralhavam. Como não há inteligência para contar juntas todas as coisas de uma história, assim é que a capacidade deste simplório narrador conseguiu traduzi-los em palavras.

II.
                            Um turbilhão imenso de água é a imagem na qual se concentra primeiro. Para algum urbano morador de qualquer metrópole, parecerá inimaginável que exista tamanha quantidade de água acumulada. Talvez somente nos oceanos. Mas em regra, as águas oceânicas, tirante as ocasiões de revoltas tempestades, que afinal de contas são mais raras que se propaga, costumam se apresentar calmas e convidativas para a exploração. Aquelas águas que via a menina, não. Eram caudalosas e corriam numa constância única, quase sem sofrer as influências de outros fatores físicos, como os que o vento e a lua fazem com o mar. Na verdade, observando com acuidade, se verifica que são dois os turbilhões, vindos de diferentes direções e naturalmente se misturando para seguir um curso único. Para a menina, que lha apresentamos como Elza, essa é uma das mais antigas lembranças que tem da infância, quando era trazida até a orla de sua cidade natal, para apreciar o caloroso encontro das águas de dois gigantes, o rio Tapajós, que ali morria, com o rio Amazonas, que agora alimentado da imensurável vazão do outro grande rio, seguia sua trilha até o mar, do qual somente muito mais tarde teria a oportunidade de admirar, quando já nem menina era. Por enquanto não. Seu mar da meninice cabocla era aquela orla de fofo areal, onde corria e se banhava nua, como as índias ancestrais de sua mãe certamente fizeram ainda quando por ali o que existia era uma tribo de belos e valentes guerreiros; de formosas e prendadas índias; de gente feliz e satisfeita, como não se consegue encontrar nem nas grandes, nem nas pequenas cidades dos brancos.
                            Para a menina Elza, contudo, nada disso existia. O que havia era somente o prazer puritano de mergulhar em pelos nas águas do Tapajós e depois deixar-se secar pelo vento, com a naturalidade que se esperaria de qualquer índia nascida e criada na Pérola do Tapajós, descendente dos remanescentes indígenas que antes da invasão dos padres habitaram aquelas paragens. A tez da menina sempre fora de índia. Do pai puxara um pouco da brancura da pele, mas os cabelos negros, o porte pequeno dos indígenas amazônicos, o corte de cabelo típico, que sempre conservou e do qual sempre teve orgulho, além das grandes bijouterias que desde sempre habituara a manter como enfeites corporais, como eram os brincos, colares, pulseiras e tantos mais, não deixavam qualquer dúvida de sua natureza de índia, que não conseguiria mesmo adaptar-se a outra forma de viver senão prenhe dos valores do seu povo. Imediatamente, da orla do Tapajós deslocou-se mentalmente apenas um quarteirão, e já estava na velha escola Frei Ambrósio, onde aprendeu suas primeiras letras, mas sobretudo onde conheceu os ardores da paixão e as conseqüências dele advindas. Mas não é disso que se lembra agora, mas sim das carreiras que deu nos velhos corredores daquela escola, que lhe disseram era a mais antiga da cidade. Numa foto mental, ela se viu pequenininha trajando o conhecido uniforme da escola. No mesmo instante, corria pelas ruas de uniforme e com uma velha mochila postada às costas, dirigindo-se para casa, morta de fome após a aula e ansiosa para descobrir que delícia sua mãe teria preparado para o almoço da família. Nunca fora rica a menina Elza, porém teve a mais feliz das infâncias.

III.
                            De repente aparece no quadro mental Gabriel. Como sempre, estava garboso e irresistível, mas de uma maneira muito especial daquela vez. Seus cabelos estavam mais negros e finos, sua pele mais bronzeada ainda que quando o conheceu. Na realidade dos fatos, Gabriel lha fora apresentado num tempo em que a menina não mais corria sem pecados nas ruas de Santarém, no qual as maiores preocupações que tinha era o cardápio do almoço; as brincadeiras na rua onde morava; os segredos inocentes que trocava com as amiguinhas da vizinhança. No onírico estado em que se encontrava, porém, não haveria como separar as lembranças no tempo. Gabriel, as brincadeiras da infância e mesmo as pelejas que vieram depois dele eram tudo um amontoado só de coisas, que instigavam seu coração e povoavam sua mente exatamente com a mesma indelével intensidade. Como se (e de fato era assim) tudo estivesse ocorrendo ao mesmo tempo. A visão mental do mancebo, contudo, lha irradiava paz de maneira que mesmo diante do imenso sofrimento a dor se desacelerava, tornando-se quase, por um instante que fosse, quase que suportável.
                            Primeiro Gabriel lha apareceu muito jovem, ainda com rosto de menino, tal qual da primeira vez o vira. Ela uma indiazinha se metendo a mulher, que fazia pouco experimentara seu primeiro soutean, já atenta ao turbilhão hormonal do amor que se avizinhava e findou por apresentar-se no corpo bem formado daquele gajo, que sem pedir licença foi chegando, lha beijando e tocando o corpo nas partes que conseguiu, e mais ainda teria feito logo no primeiro encontro, não fosse a heróica resistência da menina, inocente, mas já prevenida pela mãe dos perigosos tormentos da paixão. Os conselhos maternos não valeram tanto assim, porque logo ao terceiro encontro a jovem cedeu, e com prazer natural e ao mesmo tempo sobre humano se deu ao seu macho, sem nenhum pingo de remorso, medo ou dúvida. Se entregou com a rara certeza de que ali estava para todo o sempre o amor mais caro e único de sua vida. Com o mesmo destemor continuaram se vendo por um bom par de anos. Mas, de repente, a imagem do homem envelhece um pouco. Não muito, fique claro, porque temporalmente falando, haveriam de ter-se passado não mais que cinco, talvez seis anos. Embora moço, contudo, o que viu Elza, que pode-se dizer era ainda uma menina, foi um rosto inerte, desacordado e já com as cores da morte. Tal qual o viu deitado naquela pista, rodeado de mórbidos e desconhecidos curiosos, que aqui e ali soltavam comentários desrespeitosos. Ao lado do corpo, a motocicleta que fora tolhida violentamente por um auto, o qual logo em seguida fugira e de cujo motorista jamais se teve qualquer notícia, senão a conversa passada à boca miúda de que na certa se trataria de um tal filho de gente influente na cidade, eternamente protegido pelo manto poderoso da impunidade. E apesar de tantos momentos felizes, foi a última imagem de Gabriel, a que mais atormentava Elza mesmo já passados um bom bocado de anos.

IV.
                            Misturada à tez mórbida daquele último encontro, ainda apareceu-lhe vigorante, às vezes com cara de raiva, produto dos momentos de briga, outras com ternura e inesgotável carinho. Gabriel recebeu a virgindade de Elza como muito poucos jovens são capazes de compreender a dimensão daquela entrega e, diferente de seus pares que colecionavam e competiam pelos hímens destruídos, devorando as puras moças na mesma velocidade que seus pais devoravam a floresta, este preferiu aquietar-se, receber e retribuir o amor da outra. Ficaram descobrindo as aventuras do amor por dois deliciosos anos mais ou menos, até que a desprecavida moça engravidou. Aí, os pais dela obrigaram praticamente ao casamento. Mas casaram com gosto. Ela principalmente, com a certeza inarredável de que somente aquele homem lha interessaria.
                            Foi difícil suportar ao mesmo tempo os incômodos da gravidez, a deformação gradual do seu corpo, o conseqüente desinteresse do seu homem, a novel rotina de iniciar trabalho e conciliar as obrigações domésticas, a tristeza inexplicável que vem depois do parto, as saídas misteriosas do marido em horas impróprias, quando o que mais ela queria era o afago e sexo dele. Porém Maria, sua filhinha, findou por fazê-la entender que o novo, mesmo inevitável, também pode trazer boas coisas, afinal, apesar de tudo diferente, o casal se amava mais que brigava, sobrando ainda alguns momentos em que buscavam rememorar as já antigas primeiras intimidades. Este amor se remoçou ainda mais com a mágica presença da menininha esperta, que crescia em tamanho e se apresentava a cada dia mais sabida. Com todos os obstáculos de uma vida a dois; com todas as brigas que quando em vez lhes ocorria, ainda assim eram felizes. Adoravam os domingos, quando iam à casa dos pais dela, lá ficando todo o dia. As mulheres iam para a cozinha preparar o almoço, ao mesmo tempo em que falavam sobre tudo. Dos assuntos mais recorrentes era sobre sexo e o desempenho dos seus maridos. Ultimamente a mãe de Elza andava se queixando do pobre Carlos, alegando que andava envelhecido e um tanto preguiçoso. Afirmava que o velho até a procurava uma ou duas vezes por semana, mas logo ejaculava, esquecendo do prazer da companheira. Elza, garbosa, dizia sem pudores à própria mãe, de como era intenso o seu marido. Mesmo sem conhecer outros homens, achava-o insuperável. Não contava, porém, que era menos procurada depois que pariu Maria, que sentia desconforto na cicatriz da cesariana e na barriga um pouco protuberante que jamais tivera e que tudo aquilo lha fazia se achar desinteressante. Não, para a mãe estranhamente somente contava dos momentos de volúpia, jamais das dores.
                            Também havia os domingos em que iam somente os três, aquela pequena família, à orla, tomar banho na concorrida praia. Nestas ocasiões sempre Gabriel se embriagava, o que embora inconfessadamente, agradava a Elza, porque nestas vezes, sempre que chegavam em casa se amavam com intensidade maior. Parecia que o álcool aflorava o amor dele por ela, que nos últimos anos andava um tanto retraído. Nada, contudo, que merecesse um reclamo que fosse da pobre Elza. Ela, afinal, viveu com enorme prazer todos os dias que teve com seu amor. Poucas vezes se maldisse. Nenhuma verbalizou arrependimento. Foi boa e fiel a ele e com prazer dele recebeu todos os acalantos que lha quis dar. Nada fez para merecer ter recebido a fatídica notícia de que Gabriel acabara de se acidentar, sair correndo ao local, perto da sua casa, e em lá chegando se deparar com a horrenda cena de tê-lo exposto aos nefastos olhares dos curiosos, inerte e sem vida, aguardando passivamente um inútil socorro. Até a última hora se enganou dizendo que ele apenas desmaiara. Não suportou ouvir, não sabe nem de quem, a terrível verdade. Esteve em estado de torpor durante todo o velório e enterro. A despedida de verdade que teve do seu amor foi no sétimo dia de sua morte, quando sozinha e em segredo voltou ao local do acidente e indiferente à curiosidade dos passantes, acendeu uma vela e ali ficou por longo tempo vendo o fogo consumir a cera enquanto mentalmente dizia, cheia de lágrimas, o tamanho da saudade que sentia, como fora feliz naquele amor, que jamais admitiria outro homem em sua vida e que tudo dali por diante seria um vazio eterno e sem sentido. Acreditava piamente que jamais as coisas poderiam tornar-se pior que já estavam. Piamente, acreditava.

V.
                            Mas as coisas são como são, indiferentes ao que achemos que sejam. Por isto, por mais insólito que se pudesse crer, tudo dali por diante ficou ainda pior. De tudo, talvez o maior sofrimento tenha sido o da primeira vez que recebeu a notícia. Não se passara sequer um ano da partida de Gabriel quando recebeu do frio médico, com o prazer sádico dos que se acham sábios, a tenebrosa sentença de que portava um linfoma e irremediavelmente deveria se submeter a tratamento quimioterápico. Sem delongas e mantendo um ar distante, que era muito mais de indiferença que de frieza, passou a vomitar uma extensa lista de efeitos colaterais, riscos e sofrimentos inerentes ao tratamento, os quais conduziriam, ao final, a uma estatística e incerta possibilidade de sobrevida maior que cinco anos. Talvez sim, talvez não. Nada era certo.
                            Não poderia ser desta forma, bradou a infeliz a si mesma. Era apenas algum desvio da coluna, por isto as dores. Que lhe passasse algum inocente antiinflamatório de última geração. Certamente uma tal nova droga lhe poria fim às dores que a atormentavam. Talvez se comprasse um novo modelo de colchão, daqueles anatômicos, magnéticos, que prometiam cura a todos os males. Quem sabe mesmo um massoterapeuta lha pudesse complementar o tratamento. Até mesmo um fisioterapeuta, pois dizem que são ótimos, operam verdadeiros milagres com os exercícios que infligem a seus pobres pacientes. Um linfoma, porém, não poderia ter. Com seu olhar rogou silenciosamente ao empedernido médico que verificasse melhor os exames, pois certamente acusariam alguma falha, algum erro grosseiro praticado por qualquer que fosse dos brutamontes dos técnicos que operavam o tomógrafo. Era tanta gente apinhada, todos os dias, fazendo exames uns, apanhando-os outros que certamente o seu haveria de ter sido trocado por o de alguém, este sim o verdadeiro doente. Mas ela, a menina Elza, não. Ela havia sido criada com amor, conhecera o homem mais vibrante da terra, mas Deus, provavelmente também por algum desapercebido equívoco, pois que Deus, diante de tantos humanos e passados já tantos e tão repetidos séculos certamente haveria de ter se atordoado em algum Decreto, fustigando o pobre e bom Gabriel, pecador apenas de ínfimos delitos, ao invés de um verdadeiro pecante, que merecesse de fato ser separado de sua pequena filha e terna mulher.
                            Com muita sofreguidão até poderia, apegada na firmeza da fé, vir a perdoar Deus por seu injusto descuido. Um linfoma, porém, depois de um ano quase todo de deprimente sofreguidão era impossível, afinal não existia sofrimento mais intenso que o que vivera, sentada no acostamento daquela movimentada via, vendo queimar lentamente a cera das velas que acendera no duro leito fúnebre de seu amor, indiferente que estava a tudo a sua volta, o risco de ser acidentada, inclusive. Sofrera, continuavam dizendo seus intensos olhos negros ao cego médico, todas as dores possíveis de uma só vez. Deus necessariamente a pouparia de outros sofrimentos, porque enganara-se em um seu Decreto, que acabara por ser funesto. O exame estava errado! Certamente era esse o caso, porque pior que ficaram, as coisas não poderiam ser. Achava, ao menos, que não poderiam ficar, pois que as coisas na verdade simplesmente são o que são, sobretudo, terrivelmente indiferentes ao que ousemos compreender que sejam e ao sofrimento que pensemos sermos capazes de tolerar. Elas, as fatídicas coisas, simplesmente acontecem, por mais atônitos que nos coloquem.
                            Somente agora, no meio do turbilhão de emoções e fatos, todos eles misturados em uma insólita massa de sensações, verdadeiras todas, mas na mesma medida irreais, é que a menina compreende que foi exatamente o tamanho do sofrimento que teve quem causou a doença e todo o sofrimento seguinte, numa trágica demonstração de que dor e sofrimento não constroem a sabedoria ou a glória, mas apenas mais dor e mais sofrimento, tanto quanto a morte só constrói a morte, a destruição a própria destruição e assim em diante. Ainda não compreende a menina, porém, o que lhe magoou mais, se a notícia de que sua tragédia estava apenas no epílogo ou o ar superior e inatingível do médico lhe revelando os misteriosos detalhes de sua moléstia, por onde sutilmente lhe comunicava o fim próximo, tenebroso e inevitável. O desgraçado lhe queria caçar ainda o último trunfo de que ainda dispunha que era a esperança. Uma esperança frágil, irracional e sobretudo insólita, mas ainda assim uma honesta esperança.

VI.
                            Novamente apareceu o grande rio com sua caudalosa correnteza. Ela, ao revés de outras visões onde avistava o turbilhão de água de distância respeitável, agora estava no seio dela. Mais ou menos segura, porque apesar de seca sentia vivamente seu corpo deslocar-se na direção e ritmo que lhe mandavam as forças da água. No estágio de consciência em que se encontrava, não diferiria, talvez, a sensação de estar voando magicamente ou acomodada dentro de um barco, daqueles bem grandes, apinhado por centenas de passageiros que cruzavam lentamente as infinitas vastidões das estradas fluviais tão comuns no mundo que habitava, único existente em sua ínfima consciência até então, onde não existiam grandes rodovias congestionadas por barulhentos carros, arranha-céus sem fim e pessoas em número tão incalculável que pareceria impossível existirem tantos seres humanos em uma só cidade. Definitivamente, não poderia saber se voava, como voavam todas as suas memórias desordenamente diante de si, tão convulsiva e obstinadamente, a ponto de evocar-lhe a loucura, ou se simplesmente navegava em um barco, por dias a fio como tantas vezes fizera entre Santarém e Belém, tantas destas vezes com a ânsia do enjôo, tão natural da flutuação, potencializado às dezenas pelos nefastos efeitos da quimioterapia que lhe haviam  ministrado a apenas poucos dias.
                            Não saberia talvez, considerando que seu estado mais aceitaria o impossível ao certo, se tantas e tão vivas não houvessem sido as viagens de barco; se tão intensos, choquentos, angustiantes, deprimentes e tenebrosas não houvesse sido a reação de seu estômago e sua alma a cada movimento antiperistáltico do vômito; a cada gofada eliminando além da parca comida que conseguira custosamente ingerir, também um pedaço de sua vida, um naco da cada vez mais tênue esperança que alimentava insolitamente durante a desterradora jornada das viagens, da ingestão sempre trágica da medicação, do retorno cada qual mais horrendo e deprimente que o outro e do desgosto de saber que dali a poucos dias teria de repetir tudo de novo. Daquela vez, diferente de todas as outras viagens que fizera de verdade (se é que em tal estado poder-se-ia dizer ser algo verdade, ou uma gota sequer dos pensamentos e imagens que lhe povoavam mentira, afinal, diferente que fosse, em ordem distinta que tivesse sido, mesmo que com os personagens e a cronologia trocados, todos aqueles fatos efetivamente se deram, eram todos ao mesmo tempo igualmente intensos e reais, como uma mentira jamais poderia intentar a ser), exatamente naquela viagem onírica de seu moribundo devaneio não encontrara a companhia da zelosa mãe, a mais presente em todos os doridos momentos, a inseparável companheira que certamente teria sofrido menos se fosse capaz de absorver as dores e angústias da filha, poupando-a totalmente das auguras que lha tinham sido anunciadas. Por esta única ausência é que teve dúvidas de estar voando ou embarcada na nave.

VII.
                            Ainda maior que a dor do tratamento era a de sentir-se doente, com a morte habitando e predizendo cada parte do seu sempre e mais frágil corpo, sentimento que crescia na mesma proporção que as células cancerígenas. Maior que todas as dores físicas que sentiu e mais terrível que todos os enjôos era a incerteza do porvir. Todo o sofrimento poderia simplesmente redundar em nada, ou no nada que os médicos lhe chamavam a morte. A mesma morte que talvez lhe viesse mais indolor e amiga se simplesmente se deixasse ficar quieta em seu canto, em sua terra, em companhia de sua filha, esta cada vez mais distante à medida que o tratamento e o sofrimento avançavam. Não era mais Elza que comparecia às sessões, mas um frágil espectro do que um dia fora, já sem forças, já sem ânimo. Quase sem vontade de nada, nem de viver. Quase, mesmo, sem vida. A Elza verdadeira, que amou a vida, que amou Gabriel, que amou Maria, que amou seus pais, se não tinha morrido quedava-se com muita vontade de morrer. Estava sôfrega de saudades do seu amor e, incongruentemente, não fosse a saudade que certamente sentiria ainda maior de sua filha e genitores, simplesmente teria se entregado ao doce beijo da morte sem qualquer pesar ou arrependimento. Com a convicção juvenil de que, por pouco que houvesse vivido, vivera intensamente todas as oportunidades que a existência lhe permitira. Com a convicção de quem não se arrependera nem do que fizera nem do que deixara de fazer.
                            Afinal (e aquele estado em que se encontrava lha tornava ainda mais cônscia desta certeza) a maior de todas as verdades, porque a única certeza impostergável é a morte. Delírio é a sensação de se sentir vivo, como se de fato os nossos sentidos fossem capazes de nos revelar o extasiante mundo que nos rodeia. Como se não mentissem, tal qual mente o próprio mundo ao nos fazer pretendê-lo real.

VIII.
                            Mas tinha Maria. A única inevitavelmente inocente em toda a insólita tragédia que lhe empurrara goela abaixo sua torpe vida, sem perguntar se pretendia ou sequer mesmo ponderar se era capaz de consolar-se diante de cruz tão temível. A ela, a menina Elza, se lha poderia imputar o pecado do amor. Inconsequente e leve como não se poderia tolerar na pútedra realidade mundana. A Gabriel se assacaria o delito ativo da sedução, do desejo igualmente inaceitável pelo terrível contraste com a tristeza e feiúra que sempre povoará a realidade da miséria humana. A todos os amarelos doentes que passaram a povoar sua realidade também se haveria de responsabilizar por algum mau feito, tanto quanto a todos os habitantes do mundo. À Maria, porém, à pequena e inocente Maria, que crescia ignorante ao sofrimento da mãe, como também sem consciência do quanto a falta que os cuidados diários, o braço carinhoso e o cheiro inconfundível lhe fariam quando fosse ciente do infortúnio destas ausências logo quando era tão frágil e incônscia das ditas carências, à pobre infante nada se poderia imputar. Daí porque o seu era o mais infame e sem sentido dos sofrimentos, porque tanto não punia quanto não ensinava. E de todas as penas, aquela graciosa, que não serve para incultar cônscio sofrimento ou temível dor; aquela que sequer mesmo aproveita ao sádico desejo de vingança de algum juiz putrefo ou amante traído; a que não alegra nem mesmo o frígido coração de qualquer avaro carrasco; que não possui um antecedente fático, seja justo, seja injusto, seja real ou roto que a justifique não poderá se tolerar, nem mesmo no frívolo mundo que se descortinou diante de Elza através da morte e da doença.
                            Ali onde estava sem propriamente estar nem até mesmo saber se estava ou deixava de estar, no lugar que não era lugar, mas onde cabiam todos os lugares, todas as lembranças, todos os acontecimentos, onde as cousas eram todas ao mesmo tempo e ao mesmo tempo também não eram cousa alguma. Exatamente ali, se concentrou por infinito instante exclusivamente na imagem da inculpável Maria e decidiu que aquela pobre não mereceria viver sem a mãe, sem seu carinho e cuidados, sem seus conselhos zelosos e companhia frugurosa. Decidiu também que a incorruptível infante não teria capacidade de sobreviver longe da genitora, somente quem a protegeria dos infortúnios com a sagacidade e presteza da qual apenas possuíam os sobreviventes das misérias em que andava metida. Ali mesmo decidiu que sobreviver à moléstia era a única maneira de sublevar não apenas as suas próprias dores, mas também as dores que não permitiria que a filha vivesse e que exortaria de si mesma dali por diante. Decidiu, pois, que sua melhora era o único caminho capaz de recompensar o seco ardor de tão inglório sofrimento.
                            Decidiu apenas. No meio quase intransponível de um somente, mas também infinito momento, decidiu que sobreviveria. Sem ponderar as opiniões céticas dos outros que, sem sentir qualquer dor, nem o mais leve desconforto que fosse, mirando fixamente para seus volumosos tomos de sofisma, fingiam adivinhar o lamurioso futuro da torpe doença. Decidiu porque a doença antes de patológica é um estado d’alma e antes que pela alopatia, se cura pelos mesmos alimentos que fortalecem ao espírito dos desalentados: pelo desejo e pela fé. Decidiu, enfim, porque diante daquele infinito instante, o único instante infinito que já vivera; o único, pois, que não fora efêmero, compreendeu que se assim não o fizesse, então seria a vez da morte decidir por ela. E a vantagem é sempre do infortúnio.

IX.
                            Aquilo que se compilava em sua consciência como um emaranhado de acontecimentos aparentemente desconexos, mas em verdade unidos indelevelmente pela robusta cola do sofrimento e dor, untando infortúnio e alegria numa massa uniforme e densa, temperada por todos os sentimentos ao mesmo tempo doces e macabros, ao final do preparo redundava em uma receita sofrível de amargo sabor, provando assim que o produto da vida dos homens será sempre de fel, pois que a memória da dor suplanta a do amor, tal qual a morte ao termo de todas as lutas suplanta a vida; a fragilidade da velhice vence a robustez da mocidade e a esperança da vitória ao cabo da insistência, se permite vencer pela realidade da derrota.
                            Assim também deveria se dar com Elza, porque não poderia ser outra a triste sina dos filhos de Eva, concebidos dos pecaminosos atos a séculos denunciados pelos padres, e tanto quanto em todos os rincões da velha Europa, repetidos no meio do surdo farpalhar das batinas também na antiga pátria dos Tapajós, estes sim, concebidos em sua rude mitologia sem pecados, filhos dos Deuses da natureza, ao revés daquele pródigo Deus Único, vingativo e muitas vezes perverso. Pois aquilo que neste instante se apresenta diante de Elza como sendo um somente instante, na realidade dos fatos redundaram em muitas centenas de dias, contados em quase dois pares de anos. Dentre as batalhas mais sofríveis, as mais vivas de todas foram as que travou contra a doença e contra o tratamento, pois que aqueles venenos dedicadamente ministrados pelas serenas enfermeiras, que se não eram simpáticas pelo menos representavam um papel de delicada compaixão pela dor e vigorante fé no conhecimento que lhes custou tanto a adquirir, assassinavam a força vital das células sãs da menina mais que as indisciplinadas tumorações que teimavam em crescer, numa sistemática desobediência aos conhecimentos da medicina.
                            E nesta dúplice luta de se tratar e ao mesmo tempo resistir ao tratamento, onde foi testemunha de dezenas de desafortunados pacientes para quem a cuidadosamente medida dose de remédios, responsavelmente ministradas pelas quase sempre mesmas enfermeiras, de cura transmudou-se em mote do perecimento, foi passando Elza pelas incessantes fases do tratamento, cada qual prometendo ser a última, mas insistentemente impondo novos exames, novos diagnósticos, novo ciclo do que chamava a menina de envenenamento. No turbilhão de fatos que se lha apresentam neste momento, percebendo a grandiosa dosagem de químicos que docemente administraram aquelas enfermeiras, à guisa de humanística terapia, consistiram mesmo em uma planejada, sofrível e insistente tentativa de morte. Se os déspotas da história tivessem esta ciência, certamente que homicidariam seus inimigos por um método mais eficaz, planejado, lento, extremamente doloroso e inescapável, pois que maior que esta a humanidade jamais concebeu tortura mais degradante, que destrói o corpo ao tempo em que aniquila a alma.
                            Foi através desta certeza que novamente viu no quadro da mente a praia de Boa Viagem, tal qual da primeira vez, percebendo sua diferença das praias de Belém, especialmente na cor da água. Aquele, sim, era o mar de verdade, que de verdade dava vistas ao oceano Atlântico. Mais de três anos depois da tenebrosa entrevista com aquele nojento médico de Santarém, que friamente lhe deu pela primeira vez a notícia que não aceitou ouvir, se deparou diante de uma nova realidade, num lugar inóspito tanto porque era grande, quanto por ser desconhecido. Sobretudo, teve ainda mais medo das razões que levaram a ela e sua destemida família à violenta Recife, um lugar do qual, além das tenebrosas histórias que ouvira nada sabia a respeito. Um lugar, mais tarde verificaria, que apesar do orgulhoso sotaque puxado ao holandês se constituía em uma das cidades mais miseráveis das Américas, de longe mais desumana que a já temível Belém. E se a cidade lha se apresentou tão inóspita, imaginou, que agonias não lhe trariam o tratamento, com aquelas sempre serenas e disciplinadas enfermeiras a ingerir-lhe metodicamente, em quantidades precisas os velhos e os novos venenos da quimioterapia...
                            Mas Elza foi forte. Apesar de todas as vicissitudes, Elza foi bastante forte.

X.
                            Eram realmente enormes os corredores que aos poucos habituou-se a percorrer diariamente, numa sofrível rotina já cumprida maquinalmente, tão iguais que foram os dias passados no enorme hospital do Recife. Do peculiar estado de consciência em que misteriosamente se viu inserida, a menina percebia ainda melhor a grandeza daquele lugar, formado que era por pelo menos meia dúzia de prédios, a maioria interligada por curiosas conexões, pois que de certa forma despidas de harmonia arquitetônica, tão cara aos expertos engenheiros e arquitetos, sejam os modernos e formados nas frias universidades contemporâneas, sejam os antigos, informados pela experiência do empirismo. Por mais que cheirassem aqueles corredores à modernidade da sabedoria dos homens, o fato é que não era elegante o choque verificado entre as antigas e novas construções daquele complexo. Ainda mais quando somados aos desníveis entre uma construção e outra, ou mesmo no meio de uma entrada mau concebida se somava o sofrimento das centenas de almas que diariamente padeciam nos seus leitos e corredores, seja nas adornadas habitações dos ricos, seja nas apinhadas e quase fétidas dos pobres, todas, claro, muito bem separadas tanto para que os ricos não imaginassem ser realizável a miséria aos extremos que se verificava alí, seja para que os pobres não imaginassem que seria possível um tratamento mais humano e digno que o recebido friamente na parte a eles destinada (pois que até as enfermeiras dos abastados são mais belas e doces). Pareceria certamente aquele hospital e seus corredores quase infinitos com uma imensa cidade, todos bem sinalizados como as vias de qualquer movimentado centro, se além de seus limites não se desdobrasse uma metrópole de verdade, aquela em especial cortada por enormes avenidas, boa parte delas por canais que talvez tenham sido algum dia legítimos braços do velho rio Capibaribe, onde os homens brigavam com o mangue por espaço e onde o mangue, na estação chuvosa retomava, mesmo que provisoriamente, o espaço seu invadido.
                            A apressada mudança de Santarém a Recife, após a catastrófica notícia de que o tratamento da menina Elza somente poderia continuar em um centro de maiores recursos médicos. A decisão da família em permanecer junta, para junta dividir todas as vicissitudes. O novo emprego conseguido pelo pai da menina na desconhecida cidade nova. O inevitável medo do novo, quase mais pavoroso que o da morte que em todos os instantes povoou a consciência da indulgente. A consolação de sua mãe, justificando que ao final de tudo ainda tinham boa sorte, pois que conseguiram seguir juntos, pois que o bom patrão de Carlos fizera uso de seus contatos para arranjar-lhe emprego na terra desconhecida. Junto à visão panorâmica da praia de Boa Viagem e seu calçadão cheio de corpos esbeltos e felizes, ao mesmo tempo que os infinitos corredores do hospital que habitara por muito tempo, todas estas coisas lhe sobressaíram na consciência com naturalidade, sem qualquer desassombro, pois que naquele estado tudo seria normal. Definitivamente, não lhe pareceram antagônicas as torneadas formas de uma mulher qualquer, em mínimos trajes correndo ao longo da praia ao lado da magreza triste de dezenas de desafortunados que, como a menina, morriam a cada dia em que lutavam pela vida.
                            Sobretudo, as palavras da mãe de Elza lhe ecoavam na consciência, consolando-a e advertindo que ainda pior que a sua, centenas de dores existiam no mundo; centenas de pacientes teriam sorte pior que sua própria, de maneira que era sempre de bom agouro agradecer a Deus pela melhor sorte que nos tivesse legado, por mais sofrida e pálida que fosse ela.

XI.
                            A evocação das consoladoras palavras maternas trouxeram à tona da cena as dezenas e dezenas de pacientes que conhecera ao longo da jornada. Todos sofriam, mas cada qual padecia de uma diferente dor. Ao contrário da uniforme e indiferente forma com que lhes tratavam os médicos, enfermeiras, técnicos, enfim, toda a alva equipe do hospital, que apesar da brancura dos trajes haveria de ter enegrecida a consciência pelo desprezo indigente do acéfalo tratamento despendido aos doentes, não eram todos iguais, mesmo que padecessem da mesma enfermidade; mesmo que se lhes infligisse o mesmo e único transplante de medula óssea. Adoeceram por motivos diferentes, todos absolutamente desconhecidos da medicina. Lutavam pela vida também por motivos diferentes e se houvessem de medir em laboratório descobrir-se-ia que suas lágrimas tinham diferente teor de sódio, pois que exatamente diferentes são as razões que lhes conduzem ao pranto, às vezes copioso, mas na maioria discreto e quase silente. Cada doente percebe o seu enquanto o maior dos sofrimentos, porque somente ele tem consciência plena de sua dor. As horas inertes que passou deitada a menina, sem absolutamente o que fazer, como se estivesse no umbral da eternidade, no entanto, fizeram-na perceber que na realidade haviam sim padecimentos maiores que o seu próprio e que perceber os outros desafortunados sobreviver a tamanho infortúnio representava valiosa lição a ela própria: que era possível sobreviver e nesta luta sermos capazes de suportar sofrimentos muito maiores que nos percebemos capazes.
                            De todos os padecentes, porém, nenhum que de longe se comparasse a Severino. No rodízio de companheiros de quarto, nas diárias sessões de envenenamento (como insistia a menina em chamar as aplicações de químio), foram muitas as vezes em que se encontrou com o tal. Jamais o viu com acompanhante, pois que sempre se apresentava solitário. Diferente dos outros enfermos, não tratava das reações e esperanças decorrentes do tratamento. Falava dos lugares que frenquentava, todos proibidos a alguém no seu frágil estado, da obstinada desobediência que praticava contra as recomendações médicas e até das drogas lícitas e ilícitas que mesmo convalescente consumia. Dizia que a maconha era terapêutica, pois que diminuía os enjôos. Que o álcool minorava a tristeza provocada pelos remédios. Que era melhor morrer vivendo que, como se dava com seus colegas de infortúnio, viver morrendo, um naco a cada gota de veneno que lhes penetrava o sangue ou a cada instante que perdiam nas espremidas e deprimentes paredes do inóspito hospital.
                            Foi então que todos os rostos dos pacientes que conhecera ao longo da sofrível jornada, enfileirados que estavam um a lado do outro, cada qual com sua história, chorando suas tristezas, foram transmudando-se em um só, formando a face negra, bexigosa e fedida de Severino. Como mais tarde aprendera no quase épico poema do pernambucano João Cabral, o Severino que conhecera naquele gigantesco hospital do Recife, era uma mais das milhares de faces que têm a miséria humana e a injustiça da sociedade. Não importa a qualidade das terras, nem o renome dos hospitais, pois que sempre será miserável a jornadas dos pobres severinos, a morrer como os insetos encandeados pela luz ofuscante ou a teimar vivendo, mesmo com a fome e miséria reinantes. Tal qual Severino, o retirante, este, o enfermo, também veio do interior à capital não na busca de cura, mas seguindo o próprio enterro. Igual ao homônimo retirante, o Severino que conhecera à menina Elza tinha a mesma cabeça grande, o mesmo ventre crescido, tudo muito mal equilibrado pelas mesmas pernas finas. Ao final, o sofrimento daquele Severino não era nem maior nem menor que o dos demais.
                            Morreu de repente, como é costume morrer os pacientes naquele tipo de tratamento. Ainda assim, Elza fez questão de comparecer ao seu velório, embora tenha se mantido a aconselhável distância do cadáver, pois que temia ser contagiada por alguma bactéria que teria posto fim a mais este Severino. Nunca soube em que cemitério se deu o enterro, mas não duvida que se lho tenham inumado em cova rasa e sem qualquer epitáfio. Sua história virou quase uma lenda repetida baixinha nos tristes corredores do hospital. Para os médicos, era prova de que o não atendimento às suas recomendações pelos pacientes os conduziria fatalmente à morte. Para os enfermos, uma esperança de que mesmo na doença seria ainda possível sentir-se um leve que fosse sopro de vibrante vida. Mesmo que por um instante efêmero e conduzisse ao prematuro fim, porque ali, naqueles corredores, a única certeza mesma era a da morte inafiançável.

XII.
                            Mas apesar da morte ronhenta, persistente, que ali naquele hospital rondava vestida em muitos jalecos brancos havia a Deus, mais presente ainda que a própria morte. A pequena capela do gigante hospital era onde sempre esteve todas as vezes que pode. De tanto contemplar a magra imagem do Cristo, em destaque no vão principal do lugar, já a adivinhava em todos os mínimos detalhes. Especialmente ali, naquele estado Cósmico elevado que estava, as minúcias eram ainda mais perfeitas, fazendo sobressaírem a profundidade das chagas, a espessura e cor do sangue e a profunda face de sofrimento, absolutamente apropriada a quem padecia e purgava todos os males da humanidade. Somente diante do sereno sofrimento crístico era possível alimentar a esperança no porvir. Era o mantimento da fé, a única que cura, aquela que mesmo no âmago da penúria extrema que era aquela sentença irrecorrível do fim, ainda assim poderia lhe sorrir com uma nova vida. Era a fé e somente a fé quem lhe dizia que tudo teria um bom fim, que sua morte viria, mas não agora, nem agonizante e sofrida como lha agouravam aquelas centenas de jalecos brancos, todo o tempo lha auscultando, indelicadamente fuçando seus orifícios, às vezes apertando, outras enfiando termômetros, insistentemente injetando as medidas doses do diário veneno, inseridas com milimétrica precisão pelos barulhentos (desengonçados, quase) infusores. O veneno nosso de cada dia, que por mais que fosse eficaz não seria nunca mais que a pura e simples fé.
                            Foi à fé que agradeceu quando da primeira vez lha diagnosticaram remida (aqueles infelizes médicos nunca usam as palavras corretas, mais simples e eficazes. Se ao invés de remi-la a houvessem curado, é certo que tudo se teria findado precocemente). Também à fé recorreu quando da outra vez lha declararam novamente remida (mas agora não remida de curada, perdoada, liberta e sim remida porque outra vez adquirira a infame moléstia). Para muito além da lingüística, lhes afirmaram os médicos que seriam coisas insondáveis à sapiente medicina as razões verdadeiras da metástase, mas que ainda assim haveria a esperança do transplante, possível só em longínquas terras. Pois que foi exatamente à fé que recorreu quando, mirando a imagem de seu corpo nu defronte ao grande espelho do quarto compreendeu que o sinal da cura estava em seus longos cabelos, misteriosamente preservados, mesmo após aquelas longas e intensas sessões de renitente quimioterapia. Pois como seus heróicos cabelos, lustrosos e negros, sobreviveria à nova intempérie com a mesma obstinação que eles se preservaram presos ao coro cabeludo da menina, sarcasticamente desmentindo aquelas incógnitas previsões dos alvos jalecos. Como uma aura, os pelos lha preservariam das más energias tanto quanto seriam o símbolo incorruptível da supremacia divina que sobre ela pairava. Enquanto estivesse protegida por eles teria plena confiança na fé que a sustentava acima de todas as desgraças.
                            Considerado o grau de sofrimento ao qual já fora submetida a menina, nada estranho pareceria desejar a morte, pois que esta seria a mais digna das saídas e a menos sofrível das opções que se apresentaram. Principalmente quando estava cônscia de que seja tardiamente após a cura, seja precocemente pelas complicações de saúde, o fim era certo e inevitável. Viver mais alguns anos talvez fosse querer padecimentos ainda mais cruéis que os já suportados. O esquecimento para depois da morte era ainda mais certo, fosse agora no padecimento, fosse mais adiante na velhice, mesmo que terna. Logo, viver mais tempo não significaria ser mais feliz, querida ou lembrada. Nem a sabedoria mesmo poder-se-ia dizer acumulada pelo simples perpassar dos tempos. A única utilidade real que compreendia Elza da possibilidade da cura era o exercício do supremo prazer de ver sua filha crescer, aprender, pecar, mas também evoluir pelas experiências e tornar-se apta a também ser mãe e mulher, pronta para enfrentar as agruras da existência com a fortaleza de ter tido sua própria mãe presente e firme a acolhê-la na dor e orientá-la nas dúvidas. Pois foi suficiente esta possibilidade de supostamente poder vir a servir sua querida filha na sua própria caminhada, podendo viver o prazer de ser-lhe últil como sua própria mãe estava sendo agora e sempre. Era por estar cônscia do quanto sua mãe lhe fora, lhe é e sempre lhe será imprescindível; era por compreender a magnificência desse amor, único incondicional e indelevelmente insubstituível que desejou poder dar o mesmo à sua própria filha, para o que somente poderia contar com a mais pura e simples fé, somente com ela, cujo símbolo elegeu nos seus cabelos vistos naquele dia defronte ao espelho, que também refletia seu corpo nu e insolitamente peludo mesmo após o já longo tratamento. Muito depois dessa cena, envolta agora na névoa onde tudo e todas as coisas eram uma só e mesma realidade, a menina percebe com a mais límpida das clarezas de consciência o quanto fora difícil aquela decisão, mas também que fora a escolha mais corajosa e correta que poderia ter tomado, a única capaz de conduzi-la adiante na longa jornada que ainda a aguardava.
                            Ainda possuía os lindos cabelos longos e negros, vaidosamente penteados e enfeitados quando conheceu Zé Alves. Não duvida que foi pelos cabelos que ele primeiro se apaixonou, antes mesmo que pela triste sina da menina, com sua história sofrida e corajosa. Mas com pouco os cabelos se foram, restando somente a menina, de sofrida sina e triste coragem, já quase sem formas de mulher; já quase sem alma de mulher.

XIII.
                            No seu lôbrego estado, mesmo porque não diferenciasse o tempo nada estranho lha pareceu a visão emparelhada dos seus dois homens, lado a lado, cônscios e orgulhosos da importância que um e outro tiveram respectivamente na sina da menina. Na divagação nem um estava vivo nem o outro morto. Eram diferentes e por isto importantes de maneiras distintas. Embora cônscios da existência recíproca uns dos outros, não havia ciúmes. Nenhum deles se lha apresentou como seu dono, mas na verdade como senhores de coisas diferentes, presentes todas ante a mesma pessoa. Da mesma forma que ela os amou de maneira diferente, eles também a amaram em forma variegada. Gabriel fora ardente, viril e incisivo enquanto Zé Alves se apresentou paciente, precavido e sábio, sabendo tudo fazer e suportar na medida certa. Calou quando foi preciso, mas se impôs no tempo conveniente, sempre astuto e sensível às energias e aos fatos em seu derredor. Foram ambos tão igualmente e com a mesma força tão distintamente importantes que no sonho andavam agora os três de mãos dadas, contemplando serenamente a insólita paisagem em sua volta, repleta que estava de imateriais pensamentos e desconexos, invencivelmente ilógicos, fatos. Gabriel lha cobrindo com o tórrido amor do sexo, ao mesmo tempo que Zé Alves com o insólito bálsamo da compreensão inabalável. Exatamente tudo do que precisava aquela frágil moribunda era-lhe fornecido por aqueles delicados homens.
                            Zé Alves não era bonito, mas a simpatia e os bons modos lhe desentortavam um pouco a silhueta um tanto desaprumada de sua figura alta, magra e desengonçada. Como a palavra lhe fluía fácil e o sorriso era sempre a primeira retribuição que devolvia aos que lhe indagassem ou qualquer outro contato oral ou mímico com ele mantivessem, tanto quanto ainda com a mesma expressão evocava a atenção alheia quando lhe importava chamá-la, acabava por se tornar fácil em demasia gostar dele. Para Elza, tomado em conta a afeição indisfarçada que desde sempre revelava ele pela menina, foi ainda mais inevitável o apego naturalmente devotado ao outro desde a primeira vez que o avistara ela, mesmo de longe ainda. Era o tal primo da nova vizinha Edna, esta cá também elevada alma, caridosa e quase uma irmã, que se lha apresentara, era convicta Elza, como encantada resposta aos silentes gritos de revolta e dor, antes de tudo mesmo de desespero, que irrogara a Deus em certa noite de terrível aflição. Zé Alves nesta dita ocasião já conhecia toda a triste história de Elza, contada da boca da indiscreta prima alguns dias antes, porém manteve discreto silêncio na frente da enferma, esperando que ela própria fosse aos poucos ganhando sua confiança, revelando neste exato ritmo suas dores e mágoas. Antes de mais nada, tornaram-se profundos amigos. Fora ele quem lha demovera da tristeza perene que insistia em rondar sua aura renitentemente, tentando alegrá-la pelas mais tolas formas; quem lembrara a importância da filha, do amor dos pais e da amizade de todos os outros que por uma forma ou outra torciam e rogavam por sua recuperação. Fora ele quem disse à menina das centenas de pessoas que ali e alhures conheciam seu padecimento e que o mínimo que faziam era pedir eles a Deus por sua felicidade e cura. Não havia uma única pessoa que fosse entre estas centenas de almas, dizia-lha Zé Alves, que lha desejasse o mau ou mesmo que dela guardasse a menor que fosse das mágoas. Elza era uma boa pessoa, das melhores índoles que já pudera conhecer, e isto somente era suficiente razão para poder usufruir ela de outra chance. A cura era algo possível sim, sempre dissera Zé Alves, e Elza merecedora irrenunciável dela, carecendo só e somente de uma atitude mental adequada para a poder alcançar.
                            Não se submeteram a qualquer jogo. Foram sempre honestos e naturais. Tão honestos e tão naturais que observá-los de longe não induziria qualquer suspeita sobre algum romance entre os dois. Se tocavam raramente e sempre como amigos, mas passavam bastante tempo juntos. O quanto pode Elza ficou em casa e nestas ocasiões era comum e esperado receber visitas do enamorado. O tempo que passou no nosocômio, porém, continuou a receber as regulares visitas. Chegaram a passar tardes inteiras juntos no hospital, sempre momentos onde Zé ouviu mais que falou. E foi exatamente esta qualidade de ouvinte que fez Elza se render ao outro, mesmo tendo prometido a si mesma não entregar nunca mais seu coração a ninguém, tanto pelo amor superior de Gabriel, que em instante algum arrefeceu, senão apenas ampliou-se mais e mais a cada dia que passou, seja mesmo simplesmente para não sofrer nem fazer sofrer, como até pareceria mais natural nestas alturas. Quando percebeu que os novéis remédios, por serem ainda mais potentes foram agora capazes de destruir a fortaleza de seus cabelos, ainda assim, mesmo sabedora da admiração sincera que devotava a eles Zé Alves, não envergonhou-se nem sentiu-se feia, correndo para ele para prantear a moderna dor sem receios ou preconceitos dela para consigo mesma. E disto não se arrependeu, pois que exatamente no final da conversa deste específico dia descobriu o quanto imaterialmente o amava, tão intensa e profundamente que a carne do sexo nem lembrança nem vontade deixava. Estariam os padres de Santarém certos, pensou ela, ao renegar as tentações da carne como condição para a salvação da alma?

XIV.
                            Por força da insolubilidade do estado que vivia, não se poderia dizer que a menina Elza estaria em si mesma, integrada plenamente ao seu próprio ser, parte indissolúvel de si própria. Ao mesmo tempo igualmente não se poderia afirmar que estivesse despregada de seu ser, mirando-se de fora, quase como se fosse uma observadora distante e imparcial de sua pessoa, nem porque não estava desatenta aos sentimentos que vivia, nem muito menos porque não se sentisse participante de tudo o ocorrido. Ela tinha plena consciência de sua individualidade e mais que no estado comum, de vigília, da dimensão superior que suas percepções galgavam. Por isto não se trata de uma simples projeção, mas de uma profunda e insólita viagem que deu de fazer a menina, de si para si mesma, onde desarmadas foram as armadilhas do ego, que maquiam as verdadeiras razões dos sentires, murchando a consciência que cada qual é capaz de ter do seu próprio ser, negando o conhecimento dos motivos verdadeiros de todas as razões, de todas as palavras e de todos os desejos. Ali ela percebe quanto mentimos ao cabo da existência, mas que a maioria destas inverdades contamos a nós mesmos. E somos crédulos de nossas próprias imposturas mais que das que pregam os outros ao longo do viver. Mas ali, naquela insolubilidade de que falamos, não havia mentiras. Nem dela para com os outros, porque a projeção que tinha das pessoas e coisas fora de si eram na verdade provenientes dela mesma, nem muito menos era possível emonar-se a menina com a inverdade, porque é como se ela soubesse de todas as coisas e sentisse todos os sentimentos, tudo ao mesmo tempo, o que formava uma consciência alta ao mesmo tempo que incongruente.
                            E tal estado, porque incongruente, era ao mesmo tempo bom e tenebroso. Era bom porque possível sentir-se a brisa leve mas também fortificante do amor que recebia dos seus, compreendendo longe dos engastes do mundo cotidiano a sinceridade e o desapego destes sentimentos, como era o de sua família e de seus dois homens. Era tenebroso porque com esta mesma pujança compreendia a absurda desumanidade dos que tanto por delegação da existência, quanto por pessoal escolha, deveriam ser os guardiões da vida e o símbolo da esperança, mas que falsamente encarnavam a sabedoria, que na verdade findava por ser a máscara da soberba que impregnava seus falsos saberes. Descortinadas as máscaras da falsidade com que uns se apresentam diante dos outros na sociedade, o insólito estado da menina a fazia enxergar claramente a mentira, a indiferença e a inveja por detrás de dezenas de frases amáveis que inocentemente ouvira. Eram poucos, realmente, os puros sentimentos que lhe emanaram, mas ao mesmo tempo eram tão fortes que seu poder era em muito superior às máquinas e aos venenos que lhe ofereciam aqueles desgraçados jalecos. Ela agora percebe o quanto os médicos temem seus pacientes, receando que descubram seus erros e feitos maus não pela morte ou sofrimento que causaram aos doentes e familiares, mas pela fama que perderiam e pelo dinheiro que deixariam de ganhar. Não tinham compromisso algum com a cura, dela propriamente não conheciam nada senão um conjunto tantas vezes irrazoáveis de protocolos e intervenções alopáticas. De saúde, vida, amizades e troca de sentimentos não conheciam, mas somente a anatomia e a química, informações que lhes serviam para localizar as dores e indicar as drogas que as aliviariam. Mas tal, compreendia a menina, faziam por inocência, pois que estavam muito longe de compreender a profunda dimensão que possui a vida, para muito além das funções metabólicas do organismo humano. Alma, eles mesmos não sabiam possuir uma.
                            Pois que por esta ciência, não deveria a menina guardar qualquer mágoa de seus inconscientes algozes, vez que lhe ministravam com sincera crença aqueles malditos venenos, absolutamente firmes na fé de que lhe trariam a cura e não a morte, como testemunhou ela às dezenas durante a sofrida sina que vivia. Ela sabia, mas os jalecos não, que muito mais eficaz que as drogas, as quais em verdade matam mais que curam, uma palavra de fé ou um abraço de amor puro e despretensioso têm poder em muito superior. Apenas Márcia (aquela gentil enfermeira, pele de jambo e alvo sorriso, que sentava-se ao seu lado na cama, contava histórias engraçadas e dava testemunho incansável das dezenas de milagres que presenciara ao longo da carreira) é quem parecia vislumbrar a realidade que se apresenta diante da menina no insólito estado em que se encontra. Os demais, não. Estes criam apenas no conhecimento que em verdade não possuíam, pois que era falsa sua sabedoria e mau postados os pilares do seu sofisma, que só por sofisma ser, já basta para revelar a inconsistência de seu conteúdo. Mas, repetia novamente a menina para si mesma, não haveria como eles saberem de sua própria pequenês, pois que o mundo era ainda muito maior que o já tão complexo que lhes apresentou a ciência e esta longe estaria de desvendar os insondáveis mistérios guarnecidos pela fé inabalável e pela consciência superior de que a vida se descortina por permissão de dezenas de leis naturais, fundamentadas todas elas na existência de uma inteligência Superior, da qual os jalecos, por seus tantas vezes torpes mas briosos métodos científicos jamais compreenderiam. Era preciso ter pena e não raiva deles, pois que estas mesmas leis que supedaneiam a vida no tempo devido também daqueles jalecos lhes cobrará o tributo do existir, somente quando, postos no incômodo lado da vítima do tratamento desumano aos quais submetem compulsoriamente seus doentes, perceberão a dimensão do sofrimento e a intensidade da dor que afligem indiferentemente eles mesmos aos outros. Serem amigos de outros jalecos brancos talvez os poupe dos sofrimentos mais terríveis, principalmente dos relacionados à indiferença de uma vida humana sobre a outra, mas não os livrará de tudo, pois que nas horas mais caliginosas ainda estarão solitários, como sempre estão solitários os humanos nas principais passagens da existência, que são o nascimento e a morte. E então, somente terão alento e esperança de sobrevida os jalecos que irracional e inconscientemente se entregarem à fé; a mais pura e simples crença de que somos, todos os seres humanos, existências débeis diante do mundo, incapazes de mantermos por nossa própria arte as funções mais elementares deste existir, de maneira que apenas pelo amor Supremo do nosso Criador seremos capazes de suplantar as dificuldades tanto da vida biológica quanto espiritual, coisa que se galga exclusivamente pela crença.
                            Para Elza mesma não foi fácil compreender assim, pois que a dor que sentia erguia um espesso muro de revolta. O desejo mais fácil a alimentar era o da revolta e não fosse poder se encontrar na insolidez do estado em que se encontrava, onde não existe o tempo nem o espaço e onde por isto mesmo não sabe precisar em quanto já se demora nele ou como poderia estar em todos os recantos que já conhecera sem de verdade haver se deslocado a nenhum deles, certamente não conseguiria alimentar o perdão pela consciência da ignorância, afinal os jalecos lhe punham em risco a existência sinceramente crentes de que lhe conduziam à cura, da mesma forma que uma pequena criança leva sua própria mão à chama da vela que vê admirada, acesa, longe de crer que além de brilhante e bela, aquela luz também é quente e na mesma medida em que embeleza sua vista lhe corroerá dolorosamente a carne tão logo a consiga alcançar. Pois que na beleza daquele sublime estado a menina olvidaria dos jalecos, prendendo-se somente às pessoas e aos valores que lhe engrandecessem e fortalecessem o espírito. E tal a menina sabia, encontraria somente em sua família, da firme companhia de sua mãe, com sua esperança inabalável; na regular presença do pai, sempre pronto para lhe valer; no bálsamo da presença da filha, disposta a receber e a dar o mais puro dos amores; na companhia dos amigos, especialmente Edna, quem se transformou na melhor delas; mas sobretudo em Zé Alves, que presente estivera mesmo nas ausências e até mesmo no passado na floresta quando não se conheciam fisicamente.

XV.
                            Definitivamente ninguém poderia ser mais doce, dedicado, presente e incondicional quanto o seu Zé Alves. Ela não estava preparada para o amor e muito antes disso não alimentou tal desejo em qualquer momento que tenha tido desde a morte de Gabriel. Muito ao reverso, compreendia que a enfermidade em si mesma a excluiria daquele universo das carícias, paixões e cumplicidades. Sem declinar palavra, o mundo inteiro lha dizia que o amor não era para os moribundos; que estes se contentassem já bastante se acaso tivessem a atenção da família. Especialmente aquela menina deveria achar-se especialmente feliz, pois que apesar da gravidade do caso e da quase indeclinável catástrofe mortificante que se lha abateria mais cedo ou mais tarde, tinha ela a sublime presença não somente da mãe, mas na verdade da família inteira. Era das muito poucas enfermas que conseguira preservar amizades, pois que em geral os amigos festejam as alegrias e as vitórias, sendo arredios a participar dos banquetes da desesperança dos moribundos, tanto mais quando as doenças se prolongam por anos, como se dava com aquela teimosa menina, corajosamente resistindo ano após ano ao degradante tratamento. Muito menos ainda poderia ter um doente o direito de amar. Amar é para os que tem esperança de vida, não aos que estejam condenados à morte por algum daqueles sisudos jalecos brancos, que impáfios distribuem tanto a vida quanto a morte pelos seus venenos inglórios. Não se pode amar sem esperança do porvir; sem os planos inevitáveis no futuro; sem construir mentalmente a futura morada do casal, minuciando quantos quartos, banheiros, corredores e salas terão o imóvel, nem o tamanho do belo jardim que ali será cultivado. Não se pode amar sem planejar os filhos que se pretende ter, seu sexo, mas especialmente quais traços corporais puxarão do pai, quais da mãe. Não se pode amar sem desejar que estes filhos sigam os passos que os genitores não conseguiram trilhar por si mesmos. Não se pode amar sem concomitante a isto planejar a paralela carreira, com os sucessos, aumentos salariais e mudanças de cargos que virão com o progresso nela. Não se pode amar sem planejar a festa de casamento e muito menos sem especificar o destino da inesquecível viagem de lua-de-mel. Também não se pode amar sem desejar fazer dezenas de outras viagens a lugares paradisíacos, nos quais serão vividos os momentos mais inesquecíveis da vida de cada qual. Não se pode amar quando é arriscado fazer planos para os próximos trinta dias, mesmo os planos mais elementares como é o de permanecer vivo, simplesmente.
                            Não. A menina Elza não planejou, sequer cogitou ser agitada por este amor, pois que juntamente com a mensagem silente do mundo ela mesma compreendia a impossibilidade desta experiência. Os moribundos não amam nem são amados, quando muito conseguem sobreviver. Tanto menos seria capaz de imaginar na desengonçada imagem de Zé o amor se apresentando. Sempre gostou dele, é verdade, mas nunca foi um gostar de desejo, mas de amizade e gratidão. Sempre aceitou suas atenções mais por necessidade que por atração. Sempre gostou de sua companhia mais pela solidão que pela volúpia. Mesmo assim sempre esperou por suas visitas, sempre se alegrou infinitamente por elas e sempre sentiu tristeza no coração quando não as pode ter. Primeiro sentiu necessidade dele, de suas palavras doces, de suas atenções dedicadas, de suas ações caridosas. Sempre que teve medo, foi com ele que buscou fortaleza. Sempre que a tristeza foi maior que suas forças, foi nos ombros dele que encontrou amparo. Sempre que o corpo se abalou pelos efeitos do tratamento foi também nele que encontrou o bálsamo do alívio e da resistência. Ele foi tão imensamente bom para com ela que se tornou absolutamente inevitável não tê-lo antes de tudo enquanto uma invencível necessidade. Sua presença tornou-se curativa e se forças a menina teve para chegar tão longe na sua luta, é sem dúvidas ainda mais merecimento dele e seu inquebrantável e ao mesmo tempo desapegado amor que dela própria.
                            Mas de todas as dificuldades que enfrentaram juntos, a mais difícil de todas foi quando a menina recebeu a medula do transplante. O órgão estava contido em uma bolsa transparente a qual continha um líquido espesso de cor mais escura que o sangue e tal qual numa transfusão foi inserida em sua corrente sanguínea, por meio da qual deveria fazer nascer a nova medula, como se ali estivessem as sementes de uma árvore prestes a eclodir na vida. Para quem estivesse de fora, tudo pareceria muito simples e indolor. Para a receptora, no entanto, não era tão simples assim. Não sabe as razões, se por efeito das drogas que inseriam na matéria prima com o objetivo de conservá-la ou mesmo por natural reação do organismo, em luta instintiva contra um provável invasor. O que sabe é que juntamente com o líquido espesso inseriu-se em seu organismo também uma sensação agonizante, a qual não saberia descrever por informações objetivas. Poderia ser dito que a pressão sanguínea subitamente baixou, como também elevaram-se os batimentos cardíacos da menina, ao mesmo tempo em que um frio inexplicável consumia-se inesgotavelmente ao longo de todo o seu corpo. Também, a partir de dados descritíveis materialmente dir-se-ia que a garganta ficou seca e que por muito pouco não lha faltaram os sentidos. Nenhuma destas descrições, porém, seria capaz de informar as verdadeiras sensações que invadiram a alma da menina. Mais tarde diria ela a Zé Alves, que também a tudo testemunhara pegado firme que estivera em sua mão esquerda, que o sentimento era a agonia da morte e que jamais teria sentido ao longo de todo o tratamento sensação mais eminente do fim que aquela específica oriunda da infusão recebida.
                            Depois de tudo acalmado, quando tanto a agonia mortífera quanto outras testemunhas já não estavam no quarto, recobrando um pouco os sentidos quase perdidos a menina deu-se conta que Zé Alves ainda permanecia no recinto firmemente pregado em sua mão esquerda, na posição que deveria estar já desde muito tempo, ela sentiu uma ternura e gratidão tão grande por ele, certa que estava que era dali que ainda conseguia tirar forças para permanecer vivendo, que desejou de alguma forma lhe retribuir. Mais tarde, pela noite, mandada para dormir em casa, percebendo um momento mais que pudera estar sozinha com ele em casa (a mãe, o pai e a filha estavam na vizinha conversando e conforme era seu costume demorariam um pouco lá) compreendeu que era chegada a hora de retribuir tamanho amor. A menina, por força do tratamento não sentia volúpias sexuais, era verdade. Mas estava ela mesma carente do calor de outro corpo. Sem revelar suas intenções, trancou a porta de seu quarto, foi até o banheiro e de lá retornou completamente despida, absolutamente careca como se encontrava àquela fase do tratamento e ainda em silêncio mostrou-se para o seu Zé, que disfarçando a surpresa levantou-se, beijou-a na boca pela primeira vez e tocou-a levemente.
                            Estava magra a menina. A feiúra do corpo era ainda mais destacada pela pele amarelada e sem pelos em parte alguma. Zé Alves não via aquilo, contudo. Em silêncio deitou-a na cama, despiu-se também e penetrou-lhe com carinho, mas vigorosamente. A menina estava fraca, não sentiu prazer físico, não haveria como chegar ao orgasmo. Pelo avesso, a penetração foi-lhe bem dolorida. Mas tal não deixou demonstrar, pois que naquele ato era como conseguiu exprimir o tamanho do amor e da gratidão que sentiu ao perceber o amparo material e imaterial daquele pujante aperto em sua mão esquerda no momento mais terrível que tivera, que foi o da agonia da morte. Nada pagaria aquele aperto de mão. Nem a dor da penetração, nem mesmo o que viria depois do sexo. Nada poderia ser maior que o amor emanado de um só aperto de mão.

XVI.
                            A súbita lembrança daquele expressivo aperto de mão, da gratidão por ele gerada e da ação praticada por conseguinte trouxeram vivamente à mente da menina a sequência exata dos fatos posteriores à inesperada aventura sexual que tivera com o seu Zé. Subitamente, não eram mais todas as coisas que passavam juntas em sua mente, nem haviam mais todos os lugares reunidos dentro de sua cabeça. Agora deram-se de maneira límpida os fatos em sucessão cronológica, fazendo-a finalmente compreender os motivos do desterro final que vivera, assim como as razões mesmas do anárquico estado em que se encontra modernamente.
                            Logo no dia seguinte amanheceu com febre, o que era quase esperado tendo em vista o estado de absoluta ausência de qualquer corpúsculo de defesa em seu sistema imunológico. Aliás, propriamente a menina não possuía àquela altura o sistema imunológico mesmo, restando no aguardo de que surtisse efeito positivo o implante recebido no dia anterior. Até lá estaria absolutamente à mercê de qualquer infecção, a qual por mais tola que parecesse poderia perfeitamente ser a fatal. Qualquer agente poderia contaminá-la, qualquer mesmo, fosse um espirro lançado em suas proximidades, algum alimento mau higienizado e mesmo uma inocente relação íntima com seu amado, quaisquer destes fatores poderiam conduzi-la inevitavelmente à morte. No segundo dia a febre estava ainda mais forte e por conta deste estado a menina começou a desvairar-se, perdendo parcialmente a noção das coisas. Sem querer, quase revelou sua insólita aventura à mãe, como costumava fazer quando viviam em Santarém. Sua mãe, contudo, não seria capaz de acreditar em tamanha insensatez e por isto sequer suspeitou levemente do ocorrido. No outro dia a menina não conseguia mais nem se alimentar nem sequer se comunicar com os seus. Não reconheceu nem a presença do amado Zé, nem a da mãe nem a de ninguém. Não falava coisa com coisa. Os médicos enfim revelaram apreensão, dizendo que iriam lutar bravamente contra aquela poderosa infecção, que não sabiam ainda ser bacteriana ou viral, mas que pela auscutação verificaram estar localizada nos pulmões mais já se irradiando a outros órgãos. Disseram enfim que a única esperança seria internar a menina na UTI, mas que não alimentassem esperanças em excesso, pois que talvez estivesse chegando o momento inevitável do tratamento.
                            Já faziam nove dias que a menina Elza se encontrava inerte no leito quatro da UTI do grande hospital do Recife. Foram dias de negrume, pois que a menina não sonhara nem tivera qualquer tipo de sensação, fosse das espirituais, fosse das físicas. Era tudo escuridão e inconsciência até que repentinamente ela deu de ter sentimento das coisas, percebendo todas ao mesmo tempo numa volúpia torrencial e verdadeiramente indescritível. Não sabe quanto tempo durou tudo, pois que como o espaço não existia em seu tórrido delírio, muito menos o tempo poderia haver. Sabe apenas o quanto foi pujante a experiência. Sobretudo, o quanto ensinou à pobre menina. Mesmo com todos os sofrimentos, agora de todos sabidamente muito atrozes, ela jamais esteve tão decidida sobre seus quereres. Seu desejo era o da vida, mas o da vida plena, longe dos venenos. Seu desejo era o de ter próximo a si as pérolas mais preciosas da existência, que eram seu pai, sua mãe, sua filha e seu Zé. Seu desejo era o de que Deus a protegesse.
                            Às favas os médicos e sua imbecil sabedoria!

XVII.
                            Foi neste exato momento que pareceu à menina ter percebido algo de seu ouvido físico. Era um bip inicialmente regular mas que de repetente começou a se tornar incômodo. Também percebia algum tipo de pancada seca, como se uma coisa insistisse em chocar-se em outra repetidas vezes. Abriu os olhos e viu sem ainda compreender o que se passava um corpo de uma senhora, esquelética e em claro sofrimento debater-se ao seu lado. Não sabe se pedia socorro ou desejava morrer.
                            Achegou-se uma mulher paramentada de médica, que ao tempo em que tentava desengonçadamente segurar os braços da senhora para que não danificassem os caros aparelhos hospitalares gritou a plenos pulmões convulsão no três, convulsão no três. Acorreram dois homens, um claramente o chefe da equipe, que foi quem ao mesmo tempo em que enfiava uma agulha com indisfarçada brutalidade no braço da mulher dizia que porra, isso é lá hora dessa velha imbecil morrer!

                            Elza já estava a muito tempo em coma e por esta razão ninguém ainda da equipe deu apercebê-la de olhos arregalados, mirando meticulosamente todos os detalhes da cena. Por isto também não cuidaram de abrir a cortina que separa os leitos da UTI. Aquilo foi o suficiente para a menina respirar fundo e dizer a si mesma que tudo aquilo iria passar. Logo logo vai passar, foi como disse. E quando passar ela enfim terá uma vida plena e feliz. E assim ficou repetindo até que deram conta dos seus olhos abertos, o que aconteceu apenas já depois de novamente calmo o ambiente, com o defunto devidamente desentubado, coberto e retirado do recinto. Por todo este tempo ela apenas permaneceu dizendo centenas de vezes: vai passar, vai passar, vai passar...