ALQUIMISTA - CONTO
Vendo aquela simplória figura magra, quase em
farrapos, a manifestação quase absoluta da simplicidade no vestir, no falar e
no portar-se em geral, não se creria estar-se diante de pessoa de origem
abastada. Verdade, contudo, é que Ricardo Buendia nasceu em berço de ouro e
desde a mais tenra idade recebeu esmerada educação. Era filho de velhos ricos,
bem assenhoreados da verdade discreta de que a mais incorruptível das abastanças
é a do conhecimento.
Fora bem além dos estudos regulares, sendo informado,
além dos tradicionais conhecimentos da academia estatal, também de saberes
secretamente disseminados entre uma estrita elite, cujas origens é de memória
quase esquecida, de um tempo anterior ao próprio estado e que tinha a discreta
família dos Buendias nas remotas origens dessa sapiência. Da família mesmo, se descobriu
notas genealógicas na Colômbia, sendo a mesma citada em famosa ficção do Nobel
Garcia Marques. Conta-se, mas sem comprovação documental, que parte dos
personagens e fatos narrados no famoso romance são até certo ponto verdadeiros.
Pelo menos, teriam inspirado os correlatos personagens da história. Oficialmente,
contudo, o tronco da família de Ricardo estava radicado no Brasil há pelo menos
cinco gerações, nada se noticiando a respeito dessa antecedência, de maneira
que não se tem por certo haver ou não parentesco deste tronco com o ramo colombiano.
Há notícia também da passagem de alguns ancestrais desse dos Buendia pelo Peru,
em expedições de exploração e reconhecimento da cultura Inca. Fala-se,
igualmente sem comprovação, que teriam notícia da localização da lendária
cidade de Eldorado, ainda oficialmente perdida na vastidão da selva amazônica.
Entre os conhecimentos discretamente aprendidos
por Ricardo, graças ao seu especial antecedente familiar, destaca-se o da
alquimia. Conta-se que desde várias gerações pretéritas, a ancestralidade
daquela família havia desvendado a pedra filosofal, desenvolvendo a antiga
fórmula de transmutação do chumbo em ouro, sendo esta a remota origem da
riqueza da família. Os empreendimentos de toda a ordem desenvolvidos pelas
seguintes gerações eram simples fachada para dar guarida ao precioso segredo
daquela descoberta. Esta informação é sacada a partir de duas fontes distintas,
consistentes em depoimentos de familiares de antigos empregados dos Buendias,
de distintas gerações, que através da confiança conquistada dos patrões tiveram
acesso à valiosa notícia do segredo. A fórmula propriamente da transmudação,
contudo, jamais foi revelada a nenhum deles, sendo guardada com a cautela
necessária e esperada.
Desde cedo, contudo, Ricardo compreendeu que a
transmutação do metal é a parte de baixo, pequena e sem importância de fato da
antiga fórmula hermética da tábua de esmeralda: o que está em cima é como o que
está em baixo, assim como o que está em baixo é como o que está em cima. Sabia,
assim, que a verdadeira alquimia era a espiritual. Como simbolizam os maçons, é
a transmutação da pedra bruta em pedra polida, ou seja, a transformação do
espírito rude e ignorante em outro dotado de verdadeira sabedoria. Era o termo
final do caminho de volta traçado pela árvore da vida cabalista. A recordação
dos conhecimentos perdidos pela queda de Adão.
Ricardo mesmo era iniciado em diversas tradições esotéricas,
reunindo assim os saberes da rosa cruz, maçonaria, cabala, hermetismo, gnose e
jessênios. Diziam que, assim como o grande Hermes, era também pelo menos três
vezes mestre, razão porque conhecia os segredos das três grandes tradições
ocidentais, ou seja, Atlântida, Egito e Grécia. Era mais, porque também se
iniciara nos segredos do pentateuco judeu. Não bastasse, também conheceu, quando
ele mesmo esteve em Cusco, Peru, através do xamã José, os segredos e mistérios
da ayahuasca Inca, poderoso chá espiritual que lhe abriu as portas aos mais
elevados conhecimentos da importante tradição indígena da América do Sul,
também como a dos egípcios, descendente dos antigos atlantes. Por esse meio
específico, desvendou as chaves da escrita dos Incas, que de tão intricada que
é faz os historiadores informarem em seus escritos que o povo Quêchua não
possuía escrita, vejam só. Também por esse meio descobriu as chaves dos poderes
telepáticos e telecinéticos, os quais permitiu ao povo andino elevar suas
maravilhosas cidades, constituídas por enormes blocos de rochas maciços, misteriosamente
transportados montanha acima, quilômetros distantes das pedreiras. Como teriam
transportado aquele pesado fardo? Ricardo saberia, conforme nos revelou
confiável fonte.
Não era, contudo, um conhecedor meramente
intelectual desses assuntos. Bem cedo compreendeu que as informações transmitidas
pela tradição se tornam cultura inútil se não forem alinhados à prática. Exercitando-os,
contudo, é possível desenvolver potentes poderes psíquicos, capazes de realizar
verdadeiros milagres. Taumaturgo propriamente ele não era, advirta-se. Porém,
para aqueles que desconhecessem as leis ocultas da natureza, ainda não
desvendadas pela ciência formal, de que eram depositários as tradições em que
Ricardo se iniciou, pareceriam sim milagrosas suas atuações. Era comum que ele
adivinhasse o pensamento dos que o arrodeavam, previsse fatos de um futuro próximo,
inclusive já tendo livrado amigos íntimos de desastres iminentes, desde quando
estes lhe seguissem os conselhos. Bastava a ele tocar um objeto com
concentração e daí descobrir aspectos da personalidade da pessoa que o
possuísse, mesmo se não conhecesse a dita pessoa. Revela-nos uma certa fonte
que houve ocasião em que se tornou invisível diante de uma plateia. Contudo,
nada disso seria miraculoso, mas simples aplicação das ditas leis naturais
ainda não desvendadas pela ciência oficial.
Para o desenvolvimento desses poderes a
espiritualidade exigia um alto grau de dedicação, coerência e sacrifícios.
Nunca se tratou de um conhecimento horizontal, apreendido pelos livros e
exercitado através da aplicação de determinadas técnicas, onde a repetição dos
experimentos conduzia inexoravelmente aos mesmos resultados. A realidade
espiritualista não é nada cartesiana. Exige, para muito além da reprodução de
rituais e mantras, a pureza dos sentimentos. Somente através dos sentimentos é
que se poderá acessar esses poderes ocultos, mas ao mesmo tempo comum a todos os
seres humanos. Ricardo possuía esses poderes porque praticava uma vida condizente
com a possibilidade de sua realização. Sentimentos como a arrogância, ganância,
inveja, orgulho, ciúme e outros impediam a sua efetivação. A vida ociosa do
luxo e da preguiça também. Por isso, uma das chaves para conseguir a realização
de seus maravilhosos feitos estava na vida simplória e discreta que levava.
Jamais chamou a atenção para esses poderes. As vezes que os apresentou a
terceiros foi sempre em sessões reservadas, buscando produzir uma finalidade
útil a alguém e mediante o compromisso de sigilo por parte das testemunhas. A
humildade era a verdadeira chave para esse poder.
Várias testemunhas atestam que o mesmo
constantemente praticava atos sigilosos de caridade, diariamente se dedicava a
estudos secretos e fazia repetidas anotações em dezenas de cadernos que possuía,
numa escrita misteriosa, jamais traduzida por ninguém. Dentre os estudos
desenvolvidos por Ricardo, um dos que ele mais se comprazia era o do antigo
manuscrito do século XVI, chamado Casamento Alquímico de Cristian Rosenkreuz,
cuja autoria é por muitos atribuída ao filósofo inglês Francis Bacon. No antigo
texto, consta simbolicamente a viagem da alma humana pelos sete estágios de sua
evolução, cada um deles retratado em um dos sete dias narrados na história.
Para os verdadeiros conhecedores da alquimia, o livro é o caminho para a legítima
alquimia, tanto a espiritual quanto a material. E Ricardo possuía quase em toda
a totalidade as chaves para o desvelamento desse mistério. Faltava apenas
encontrar a última delas, cuja pista descobriu encontrar-se em um determinado
manuscrito que pertencera ao Padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro. O vigário
em questão, se tratou de conhecido paranormal, condutor do famoso fenômeno que
por centenas de vezes transformou a hóstia, por ele consagrada, em sangue na
boca de uma beata de seu rebanho. Era o conhecido milagre da hóstia de
Juazeiro, relatado por dezenas de livros. Pois eis que o padre, secretamente, era
um importante iniciado das mesmas tradições às quais pertencia o nosso alquimista.
Consta ainda que na formação do sacerdote, no
seminário da Prainha, houve misterioso evento que por muito pouco não levou à
expulsão do noviço Cícero da instituição que lhe dava a formação episcopal. Os
livros de história oficial não contam maiores detalhes sobre o ocorrido, porém
Ricardo sabia que o motivo do tumulto foram dezenas de manifestações
paranormais demonstradas pelo jovem em formação. Mais tarde, buscando conhecer
e controlar seus poderes paranormais, Cícero teve secreto acesso ao conhecimento
alquímico, tendo inclusive recebido várias iniciações, por meio das quais lhe
foi confiada a chave que faltava a Ricardo. No decorrer de suas diversas
viagens para a Europa, a pretexto de se defender em processo de excomunhão
aberto pelo Vaticano em represália aos milagres da hóstia de que já relatamos,
foi onde e quanto Cícero recebeu as iniciações e os conhecimentos secretos. A
suma de tudo isso ele anotou no caderno, atualmente em lugar secreto da cidade
fundada pelo padre, Juazeiro.
Neste
instante, tendo lhe sido revelado através da espiritualidade a existência desse
velho e importante caderno, bem como o seu provável paradeiro no sul do Estado
do Ceará, Ricardo se programava mentalmente para fazer sua visita de devoção ao
padrinho de tantos romeiros nordestinos. Porém, o milagre que buscava era de outra
ordem.
Oxalá tenha sucesso!
Jorge
Emicles
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