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domingo, 14 de janeiro de 2018


ALQUIMISTA - CONTO
                  
                   Vendo aquela simplória figura magra, quase em farrapos, a manifestação quase absoluta da simplicidade no vestir, no falar e no portar-se em geral, não se creria estar-se diante de pessoa de origem abastada. Verdade, contudo, é que Ricardo Buendia nasceu em berço de ouro e desde a mais tenra idade recebeu esmerada educação. Era filho de velhos ricos, bem assenhoreados da verdade discreta de que a mais incorruptível das abastanças é a do conhecimento.
                   Fora bem além dos estudos regulares, sendo informado, além dos tradicionais conhecimentos da academia estatal, também de saberes secretamente disseminados entre uma estrita elite, cujas origens é de memória quase esquecida, de um tempo anterior ao próprio estado e que tinha a discreta família dos Buendias nas remotas origens dessa sapiência. Da família mesmo, se descobriu notas genealógicas na Colômbia, sendo a mesma citada em famosa ficção do Nobel Garcia Marques. Conta-se, mas sem comprovação documental, que parte dos personagens e fatos narrados no famoso romance são até certo ponto verdadeiros. Pelo menos, teriam inspirado os correlatos personagens da história. Oficialmente, contudo, o tronco da família de Ricardo estava radicado no Brasil há pelo menos cinco gerações, nada se noticiando a respeito dessa antecedência, de maneira que não se tem por certo haver ou não parentesco deste tronco com o ramo colombiano. Há notícia também da passagem de alguns ancestrais desse dos Buendia pelo Peru, em expedições de exploração e reconhecimento da cultura Inca. Fala-se, igualmente sem comprovação, que teriam notícia da localização da lendária cidade de Eldorado, ainda oficialmente perdida na vastidão da selva amazônica.
                   Entre os conhecimentos discretamente aprendidos por Ricardo, graças ao seu especial antecedente familiar, destaca-se o da alquimia. Conta-se que desde várias gerações pretéritas, a ancestralidade daquela família havia desvendado a pedra filosofal, desenvolvendo a antiga fórmula de transmutação do chumbo em ouro, sendo esta a remota origem da riqueza da família. Os empreendimentos de toda a ordem desenvolvidos pelas seguintes gerações eram simples fachada para dar guarida ao precioso segredo daquela descoberta. Esta informação é sacada a partir de duas fontes distintas, consistentes em depoimentos de familiares de antigos empregados dos Buendias, de distintas gerações, que através da confiança conquistada dos patrões tiveram acesso à valiosa notícia do segredo. A fórmula propriamente da transmudação, contudo, jamais foi revelada a nenhum deles, sendo guardada com a cautela necessária e esperada.
                   Desde cedo, contudo, Ricardo compreendeu que a transmutação do metal é a parte de baixo, pequena e sem importância de fato da antiga fórmula hermética da tábua de esmeralda: o que está em cima é como o que está em baixo, assim como o que está em baixo é como o que está em cima. Sabia, assim, que a verdadeira alquimia era a espiritual. Como simbolizam os maçons, é a transmutação da pedra bruta em pedra polida, ou seja, a transformação do espírito rude e ignorante em outro dotado de verdadeira sabedoria. Era o termo final do caminho de volta traçado pela árvore da vida cabalista. A recordação dos conhecimentos perdidos pela queda de Adão.
                   Ricardo mesmo era iniciado em diversas tradições esotéricas, reunindo assim os saberes da rosa cruz, maçonaria, cabala, hermetismo, gnose e jessênios. Diziam que, assim como o grande Hermes, era também pelo menos três vezes mestre, razão porque conhecia os segredos das três grandes tradições ocidentais, ou seja, Atlântida, Egito e Grécia. Era mais, porque também se iniciara nos segredos do pentateuco judeu. Não bastasse, também conheceu, quando ele mesmo esteve em Cusco, Peru, através do xamã José, os segredos e mistérios da ayahuasca Inca, poderoso chá espiritual que lhe abriu as portas aos mais elevados conhecimentos da importante tradição indígena da América do Sul, também como a dos egípcios, descendente dos antigos atlantes. Por esse meio específico, desvendou as chaves da escrita dos Incas, que de tão intricada que é faz os historiadores informarem em seus escritos que o povo Quêchua não possuía escrita, vejam só. Também por esse meio descobriu as chaves dos poderes telepáticos e telecinéticos, os quais permitiu ao povo andino elevar suas maravilhosas cidades, constituídas por enormes blocos de rochas maciços, misteriosamente transportados montanha acima, quilômetros distantes das pedreiras. Como teriam transportado aquele pesado fardo? Ricardo saberia, conforme nos revelou confiável fonte.
                   Não era, contudo, um conhecedor meramente intelectual desses assuntos. Bem cedo compreendeu que as informações transmitidas pela tradição se tornam cultura inútil se não forem alinhados à prática. Exercitando-os, contudo, é possível desenvolver potentes poderes psíquicos, capazes de realizar verdadeiros milagres. Taumaturgo propriamente ele não era, advirta-se. Porém, para aqueles que desconhecessem as leis ocultas da natureza, ainda não desvendadas pela ciência formal, de que eram depositários as tradições em que Ricardo se iniciou, pareceriam sim milagrosas suas atuações. Era comum que ele adivinhasse o pensamento dos que o arrodeavam, previsse fatos de um futuro próximo, inclusive já tendo livrado amigos íntimos de desastres iminentes, desde quando estes lhe seguissem os conselhos. Bastava a ele tocar um objeto com concentração e daí descobrir aspectos da personalidade da pessoa que o possuísse, mesmo se não conhecesse a dita pessoa. Revela-nos uma certa fonte que houve ocasião em que se tornou invisível diante de uma plateia. Contudo, nada disso seria miraculoso, mas simples aplicação das ditas leis naturais ainda não desvendadas pela ciência oficial.
                   Para o desenvolvimento desses poderes a espiritualidade exigia um alto grau de dedicação, coerência e sacrifícios. Nunca se tratou de um conhecimento horizontal, apreendido pelos livros e exercitado através da aplicação de determinadas técnicas, onde a repetição dos experimentos conduzia inexoravelmente aos mesmos resultados. A realidade espiritualista não é nada cartesiana. Exige, para muito além da reprodução de rituais e mantras, a pureza dos sentimentos. Somente através dos sentimentos é que se poderá acessar esses poderes ocultos, mas ao mesmo tempo comum a todos os seres humanos. Ricardo possuía esses poderes porque praticava uma vida condizente com a possibilidade de sua realização. Sentimentos como a arrogância, ganância, inveja, orgulho, ciúme e outros impediam a sua efetivação. A vida ociosa do luxo e da preguiça também. Por isso, uma das chaves para conseguir a realização de seus maravilhosos feitos estava na vida simplória e discreta que levava. Jamais chamou a atenção para esses poderes. As vezes que os apresentou a terceiros foi sempre em sessões reservadas, buscando produzir uma finalidade útil a alguém e mediante o compromisso de sigilo por parte das testemunhas. A humildade era a verdadeira chave para esse poder.
                   Várias testemunhas atestam que o mesmo constantemente praticava atos sigilosos de caridade, diariamente se dedicava a estudos secretos e fazia repetidas anotações em dezenas de cadernos que possuía, numa escrita misteriosa, jamais traduzida por ninguém. Dentre os estudos desenvolvidos por Ricardo, um dos que ele mais se comprazia era o do antigo manuscrito do século XVI, chamado Casamento Alquímico de Cristian Rosenkreuz, cuja autoria é por muitos atribuída ao filósofo inglês Francis Bacon. No antigo texto, consta simbolicamente a viagem da alma humana pelos sete estágios de sua evolução, cada um deles retratado em um dos sete dias narrados na história. Para os verdadeiros conhecedores da alquimia, o livro é o caminho para a legítima alquimia, tanto a espiritual quanto a material. E Ricardo possuía quase em toda a totalidade as chaves para o desvelamento desse mistério. Faltava apenas encontrar a última delas, cuja pista descobriu encontrar-se em um determinado manuscrito que pertencera ao Padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro. O vigário em questão, se tratou de conhecido paranormal, condutor do famoso fenômeno que por centenas de vezes transformou a hóstia, por ele consagrada, em sangue na boca de uma beata de seu rebanho. Era o conhecido milagre da hóstia de Juazeiro, relatado por dezenas de livros. Pois eis que o padre, secretamente, era um importante iniciado das mesmas tradições às quais pertencia o nosso alquimista.
                   Consta ainda que na formação do sacerdote, no seminário da Prainha, houve misterioso evento que por muito pouco não levou à expulsão do noviço Cícero da instituição que lhe dava a formação episcopal. Os livros de história oficial não contam maiores detalhes sobre o ocorrido, porém Ricardo sabia que o motivo do tumulto foram dezenas de manifestações paranormais demonstradas pelo jovem em formação. Mais tarde, buscando conhecer e controlar seus poderes paranormais, Cícero teve secreto acesso ao conhecimento alquímico, tendo inclusive recebido várias iniciações, por meio das quais lhe foi confiada a chave que faltava a Ricardo. No decorrer de suas diversas viagens para a Europa, a pretexto de se defender em processo de excomunhão aberto pelo Vaticano em represália aos milagres da hóstia de que já relatamos, foi onde e quanto Cícero recebeu as iniciações e os conhecimentos secretos. A suma de tudo isso ele anotou no caderno, atualmente em lugar secreto da cidade fundada pelo padre, Juazeiro.
                   Neste instante, tendo lhe sido revelado através da espiritualidade a existência desse velho e importante caderno, bem como o seu provável paradeiro no sul do Estado do Ceará, Ricardo se programava mentalmente para fazer sua visita de devoção ao padrinho de tantos romeiros nordestinos. Porém, o milagre que buscava era de outra ordem.
                   Oxalá tenha sucesso!


Jorge Emicles

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