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sexta-feira, 31 de março de 2017

ENFADO


                   Vendo tantos crimes sendo revelados em cadeia nacional, noticiados escandalosamente no noticiário de maior audiência da mídia nacional; naquele mesmo que todos acusam de parcial e comprometido, mas que impreterivelmente na hora do costume aos mesmos críticos faz sentar nas confortáveis poltronas de suas casas para a visualização diária, fazendo até parecer se tratar de algum moderno medicamento de horário controlado; mais que isso, observando que os crimes são capitaneados pelos chefes da nação, por aqueles legitimamente eleitos para ocupar os cargos mais pomposos e melindrosos de toda a república; pior ainda, compreendendo que o que se traz à luz é na verdade a pálida sombra do que de fato se faz e sempre se fez em todos os momentos da história nacional, desde o aportamento das caravelas do descobrimento até as intrigas palacianas da contemporaneidade, com seus conchavos de derrubada e ascensão de governos, com suas maquinações de interesses para garantir a mais ampla, geral e irrestrita maioria no Congresso Nacional, e com seus preocupantes métodos de financiamento de campanhas eleitorais; vendo tudo isso, nem mesmo chego a perguntar que fim terá toda essa questão, se ao cabo serão todas as denúncias e prisões anuladas por algum preciosismo técnico tão caro aos juristas ou se de fato pagarão os culpados as penas impostas; o que preocupa de verdade é o incongruente sentimento de inutilidade a que toda essa questão remete.
                   Será que há alguma espécie nova de melancolia, capaz de corromper a certeza do novo, a convicção de que ele sempre vem; será que essa tal neófita moléstia seria capaz de destruir a esperança de que as melhores alterações poderão vir somente a partir das crises; posto que somente elas permitem o profundo rompimento com a essência do modelo destruído? Será que não é suficiente óbvio que a alva limpeza imposta aos costumes da política fará nascer uma outra geração, composta por seres límpidos, éticos e transparentes em suas ideias e ações? Será que a certeza científica e racional do iluminismo de que o método e a lógica são o inexorável caminho para a cientificação de tudo, poderá por um ser em dúvida de suas absolutas e irrefutáveis verdades, mesmo no raiar do século vinte e um?
                   Que verme é esse, tão desengonçado, sorrateiro e venenoso que traz a inconsistente intuição que de nada valerá a limpeza das nossas instituições, se ao mesmo tempo não alvejarmos a consciência e as práticas da nossa sociedade; que o combate a ser travado verdadeiramente não é somente contra as podres almas corrompidas, mas contra o próprio sistema que corrompe os espíritos fracos e bons? Que imbecilidade crônica será essa, a que faz perceber que as maiores verdades da existência não cabem na arrogante racionalidade de nossas academias e que são avessas por sua própria natureza aos excessivos tomos dos tratados de razões, números e discursos? Que sórdida consciência é a de quem quer crer (com a mesma convicção inarredável dos que sejam senhores da verdade absoluta, aquela mesma verdade combatida e negada com ainda mais veemência) que não precisamos de presídios, mas de escolas; de que não carecemos de juízes, mas de professores?
                   Quanto mais conscientes somos das coisas, mais enfadonhas elas ficam...


Jorge Emicles

terça-feira, 21 de março de 2017

MARRANO - CONTO



                   A maior parte do conteúdo deste relato aprendi através da descendência do coronel Leandro Bizerra Monteiro. Segundo ouvi desde menino descalço, apreciador atento que fui das histórias contadas ao redor das fogueiras, acesas até altas madrugadas nos terreiros das casas grande, se conta que em tempos de memória quase esquecida por aqui habitavam valentes índios, batizados pelos brancos de Cariris, em razão da triste e séria expressão facial que possuíam. A extensão de seus domínios era marcantemente grande, chegando até as proximidades do rio São Francisco, já nos confins da distante Bahia.
                   Em algum tempo, cuja data precisa não me chega à memória, os Cariris aprisionaram um escravo negro, propriedade de algum senhor de terras das margens do já então velho Chico. O negrinho adaptou-se com bastante facilidade ao modo de vida dos selvagens, passando a ser reconhecido como um dos seus. Viveu em paz e harmonia com seu novo povo, até que os Cariris tiveram que enfrentar séria guerra com a tribo Cariú, chegando a posição de franca desvantagem, a ponto de amargar iminente derrota.
                   A fim de salvar seu povo, o negro retornou às suas origens em Juazeiro, Bahia, indo ter com os chefes da já famosa Casa da Torre, integrada pela descendência do lendário Diogo Alves Correa, o Caramuru, com o intento de guia-los em entrada até as desconhecidas terras de dentro dos Cariri, em risco de serem perdidas para a tribo inimiga, prometida aos exploradores como um oásis fértil e úmido a guarnecer toda a sequidão do restante do sertão ao derredor. E, de fato, não exagerou na pujante beleza e riqueza do lugar. Foram estes pioneiros os primeiros habitantes brancos da região e guardam até o presente o sangue de Caramuru na linhagem das famílias mais antigas que a habitam.
                   Os exploradores chegaram ainda a tempo de salvar os Cariris. Violentamente reprimiram e massacraram os seus inimigos, invadindo impiedosamente seus povoados e matando sem qualquer piedade todos os aborígenes que ali encontraram. Aos Cariri foram doadas terras onde estabeleceram a Missão do Miranda, tendo sido obrigados a receber os signos cristãos através da firme direção de Frei Carlos Maria de Ferrara, frade capuchino. É deste povoado que mais adiante surgiria a Vila Real do Crato.
                   Antes desse episódio, lá pelo ano da graça de 1646, atendendo a reclamações do governador da Bahia, Antonio Teles da Silva, familiar do Santo Ofício, como eram conhecidos os leigos integrantes da inquisição portuguesa, que por força desta e de outras reclamações recebidas enviou ordem ao bispo da Bahia D. Pedro da Silva convocando toda a população de Salvador a dar conta da atuação dos cristãos novos da província. Já tive a curiosidade de pesquisar em dezenas de livros de história, de épocas, autores e escolas bem distintas. Todos, contudo, negam a veracidade da história que estou a narrar, pois ensinam simplesmente que no Brasil colonial nunca houve inquisição, nem nunca houveram judeus. Não é esta, contudo, a versão que aprendi da descendência do coronel Leandro Bizerra, que vem a ser a mesma do próprio Caramuru.
                   A história que sei é a de que, na península Ibérica, após a consolidação do domínio dos reis cristãos e expulsão dos árabes daquela região, passou a ser cada vez maior a resistência à figura dos judeus, a ponto de serem expulsos de Portugal por ordem do rei D. Manuel I, no ano de 1496, da mesma forma que já haviam sido expulsos antes do reino de Castela. Com as novas navegações às recém descobertas terras da américa, a ida para o novo continente foi o caminho seguro preferido por muitos dos refugiados. Assim, desde os primeiros aportamentos nas terras brasileiras já haviam judeus embarcados nas naus portuguesas. O que não eram era confessos seguidores de Moisés, pois haviam sido obrigados à conversão forçada nas terras da Europa, como condição para não serem queimados nas fogueiras dos autos de fé da inquisição. Eram os cristãos novos, escrachados pela população simplesmente como marranos, que é uma expressão perniciosa para designar os porcos.
                   Os motivos à perseguição aos judeus, a inquisição atribuía aos pecados supostamente por eles cometidos contra Cristo em sua crucificação, pois teriam sido os judeus, segundo a tradição católica, os responsáveis pela prisão e crucificação do Ungido. Como se o próprio Jesus não houvesse professado a fé na Torá, sido circuncisado e frequentado o templo de Salomão. A verdade, contudo, é que foi o destaque social e as riquezas acumuladas pelo povo escolhido que despertou a ganância dos cristãos velhos. A inquisição foi simplesmente o pretexto para tomar-lhes todo o patrimônio acumulado com justiça e trabalho. A cultura judaica sempre incentivou as famílias a investirem na educação de seus filhos. Não por vaidade, mas por ser o conhecimento o único patrimônio que não poderia ser tomado pelos governantes, sem embargo das notórias facilidades e posições que a erudição sempre propiciaria alcançar. Os judeus, apesar de toda a perseguição e preconceito, sempre foram destacados na administração pública da península Ibérica e no desenvolvimento das grandes navegações, sem dizer de outros importantes feitos para a ciência e a política.
                   Não é a ocasião de inventariar a vasta contribuição do judaísmo à ciência, mas não seria correto se não esclarecesse, por exemplo, que enquanto os cristãos relutavam em aceitar a forma ovalada da terra, o Zhoar Hebreu já afirmava que a terra girava sobre seu eixo, como uma bola, e enquanto na metade do globo era dia, na outra havia escuridão. Foram os judeus que criaram ou aperfeiçoaram os mais importantes instrumentos de navegação, como as cartas marítimas, o astrolábio e outros mais. São conhecidas, mesmo que com reservas, as ligações estreitas de Colombo e os judeus. Mas não é disso que deve tratar o presente relato. A história que quero contar é a da perseguição aos judeus já em terras brasileiras, iniciada em Salvador, mediante ordem da inquisição portuguesa do ano de 1646.
                   O método da investigação era o mais sórdido e simples possível. Bastava alguma delação, sem qualquer fundamento ou minimamente que fosse robustecida pela convicção mais elementar, para que um cidadão de bem fosse denunciado por crime de judaísmo. Eram simples boatos, tantas vezes mal disfarçados de vindicta ou inveja, suficientes, contudo, a levar à prisão e ao desterro famílias inteiras. Principalmente as de maior sucesso financeiro.
                   Uma vez preso pela representação da santa inquisição, a única escapatória possível era a confissão da prática secreta dos costumes e tradições judaicas. Os que assim procediam, mesmo não o tendo feito jamais, poderiam retomar à vida comunitária, muito embora quase sempre despojados de suas propriedades e obrigados a utilizar o famigerado sambenito, hábito penitencial que acusava publicamente a condição de penitenciado em auto de fé. Aos que não confessassem, caberia a infâmia da dorida morte na fogueira. Em muitas ocasiões, o crime consistia simplesmente em ter tido um ancestral judeu ou mesmo não ser capaz de provar de forma robusta não possuir tal ascendência. Mesmo entre os convertidos, eram bem poucos os que de verdade praticavam as regras em segredo. Pior que isso, eram seres céticos, que não acreditavam na fé católica; que iam às missas para dar a necessária satisfação social, simplesmente, mas que ao mesmo tempo haviam se perdido das festas e tradições judaicas. Estavam no mundo sem de fato habitá-lo.
                   Só que não importava de verdade se eram judaizantes ou não. O que valia era o seu prestígio e patrimônio que seriam sumariamente usurpados, juntamente com sua dignidade. Neste período foram vários os senhores de engenho e comerciantes notáveis, de bom trânsito na sociedade local, que de tudo foram despojados por conta da terrível denúncia de marranismo. Mesmo os que sobreviveram, nunca mais foram felizes e jamais recuperaram quaisquer de suas muitas perdas. Quase sempre, morreram na indigência e no esquecimento.
                   A única solução a este estado de coisas era a urgente fuga. Outra vez, buscar lugares esquecidos da civilização onde, de alguma maneira, fosse possível recomeçar a vida novamente. As famílias ameaçadas foram para diferentes localidades. Buscando na genealogia de vários lugares distintos, encontrei descendência dos marranos em Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e até em Pernambuco, estes últimos de linhagem distinta de outros judeus que chegaram juntamente com o conde Maurício de Nassau e mais adiante foram os pioneiros de Nova York.
                   Uma linhagem especial veio ter em Juazeiro, às margens do Rio São Francisco. Mais tarde integrou-se ao clã da Casa da Torre e vários deles acompanharam a entrada, guiados pelo negro índio Cariri, que veio dar na Missão do Miranda de que já falei. Minha ascendência é dessa linhagem, o que não sei bem se faz de mim um judeu, um marrano, um cristão novo ou um cético simplesmente.
                   Pelos meus ancestrais, de alguma maneira cheguei nas terras conhecidas como o Cariri com seus primeiros descobridores. Por isso, estou ligado às suas raízes mais remotas. Há outras famílias marranas que também vieram pela mesma época. Quase nenhuma praticava de fato o judaísmo, mas ainda assim estavam marcadas pela pecha de ser seguidor do mestre Moisés. Como se fosse pecado aceitar e cumprir os dez mandamentos da lei de Deus. Era preciso esquecer e ao mesmo tempo preservar a história da nossa e das outras famílias que fundaram o Cariri. Já naquele tempo não possuíamos mais a cultura judaica, não sabíamos exatamente a época e o significado das festas; já não repetíamos as antigas orações hebraicas. Apenas guardávamos reminiscências de uma cultura esquecida. Gostávamos de descansar aos sábados, varríamos as casas de dentro para fora e ao mesmo tempo em que exibíamos as estátuas católicas, guardávamos discretamente o símbolo de Salomão em lugares secretos de nossas casas.
                   Íamos às festas de Nossa Senhora da Penha, participávamos das quermesses, mas não éramos capazes de contar nossos verdadeiros segredos aos padres, antes das confissões obrigatórias que precediam as novenas dos santos. Nem éramos mais judeus, nem fomos capazes de nos tornar verdadeiros cristãos. Éramos um povo sem identidade quase nenhuma. Sobreviventes da ignomínia humana, simplesmente.
                   Como a origem dessas famílias não poderiam ser registradas, sob pena de atrair o indesejável olhar da inquisição, aos poucos nossas raízes foram sendo perdidas. Nas primeiras gerações, muito preservou-se na oralidade, mas na medida em que elas se renovaram, as histórias começaram a ser esquecidas. As coisas que ouvia nas fogueiras da casa do coronel Leandro Bizerra Monteiro eram entendidas pela mocidade que as escutava atentamente mais como lendas que como acontecimentos verdadeiros. Principalmente porque nunca foram corroboradas pelos livros de história. A única memória que ainda hoje remanesce a respeito dos antigos marranos que povoaram o Cariri é que, para marcarem por definitivo sua origem, passaram a usar nomes de família associados a árvores. E é assim a única forma de sabermos quem foram estes desconhecidos personagens que habitaram as terras dos Cariri, sucedendo aos índios, cuja história é tão triste quanto a deles próprios.


Jorge Emicles