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quinta-feira, 14 de novembro de 2019


LULA LIVRE!



                   A imprensa anunciou em polvorosa, como é da natureza dos noticiosos jornalísticos, pois muito mais preocupados com a divulgação escorreita e analítica dos fatos que se transformarão na posteridade em material para os historiadores, que foi solto o ex-Presidente Lula. Alguns disseram que ele saiu raivoso do cárcere, disposto a assumir a liderança da combalida oposição das esquerdas. Ele está pronto, falaram, para um duro enfrentamento e desde os seus primeiros passos rumo à liberdade, já planejava as ações tanto para as eleições municipais do ano vindouro como, o mais importante, as eleições presidenciais que acontecerão dois anos mais adiante. Já para outros analistas, o petista veio com o tom correto, denunciando as mazelas do atual desgoverno ao mesmo tempo em que prega o perdão, pois não busca vingança, mas justiça.
                   Os historiadores haverão de daqui a algumas décadas requalificar todo esse discurso. O que dirão, porém, dependerá bastante do rumo que os acontecimentos tomarem nos idos do presente. Se os jornalistas não são neutros, porque sua condição humana os colore com visões de mundo de diferentes espectros, que podem tanto ser de direita quanto de esquerda, como mesmo de avante, os historiadores muito menos o poderão ser, pois se alimentam da exata e mesma matéria espectral do sumo da sociedade. Todos somos humanos, não se haverá, afinal, de negar essa condição primeva de qualquer análise em ciências sociais, sejam as análises históricas, sociológicas, jornalísticas..., mas também a dos juristas, não nos olvidemos, embora a respeito disso posterguemos o tema até um outro artigo. Para a evidência, que diante dos tumultuados tempos da presente pós-modernidade deve ter jeito e cheiro de denúncia, porque senão será solenemente ignorada, o que quero deixar registrado é a parcialidade de todos os analistas de todas as ciências, porque isso não é condição maniqueísta da maldade humana, mas é fruto da natureza mesmo de ser vivente. É algo insuperável para esses ávidos consumidores de oxigênio, de tecnologia e de sonhos que somos nós e os outros.
                   Mas quem, afinal, saiu da cadeia após longos um ano e sete meses de cárcere, naquela sexta-feira alegre, de tempo ameno, esperado e aplaudido por muitos, rechaçado e xingado por outros tantos, ignorado por ninguém? Era ele, então, o raivoso líder de uma oposição, a preparar as bases que incendiarão as lutas sociais no Brasil, seguindo o rastro de quase toda a América Latina? Era ele, talvez, o ardiloso líder de uma famigerada quadrilha, sedento de poder, dinheiro e vingança, pronto para outra vez se utilizar das massas para retomar as rédeas da combalida república?
                   Para mim, lamento dizer, não era nem um e nem outro. Já cansado desse debate que compreendo como inútil que assola as bases mais profundas da nossa sociedade, desgostoso por isso de qualquer opinião historiográfica ou jornalística ou sociológica, ou mesmo antropológica que seja, me pus moco, simplesmente isso, me pus moco a todas as versões divulgadas nos noticiosos ou mesmo nas redes sociais. As opiniões encenadas diziam muito mais a respeito de quem as emitia que dos fatos em si mesmos considerados. Líder com energias renovadas para comandar seu povo nos rumos da liberdade? Chefe de um bando de criminosos reincidentes?
                   Haverei de desgostar a todas as opiniões emitidas e reenviadas pelas centenas de redes sociais possíveis, o que em si mesmo já servirá como mérito, pois mesmo sem me apegar à cômoda neutralidade, não agradarei por certo a nenhuma das possibilidades espectrais das duas grandes hordas que povoam a humanidade, os do bem e os do mal. Falta apenas a eles se entenderem melhor a respeito de quem é a força do positivo e quem a do negativo. Um dia talvez, enfim, descubram que nenhum deles está certo, mas também ninguém está errado. Coisas que só através do mentalismo universal hermético possam vir a compreender. E tanto é pessoal e parcial essa minha opinião que conscientemente abandono a conveniência e neutralidade do hipócrita discurso da primeira pessoa do plural. Quem aqui fala; melhor, escreve, sou eu mesmo, o sujeito único e inequívoco da primeira pessoa em singular.
                   Mas naquela sexta-feira em que intuí o sentimento da alegria perpassando em vários cantos dessa desordem institucionalizada que tantos chamam de nação, o que vi saindo da pena extrema da privação de liberdade foi um senhor, combalido, cansado, traumatizado pelos extremos aos quais sua vida lhe levou pendularmente, como também é da lei de Hermes. Vi naquela tez maltratada o menino faminto que emigrou da fome da seca para a opressão do patrão; o operário que virou líder de massas; o presidente quase analfabeto que inspirou os maiores intelectuais; o arrogante poderoso que foi alçado da condição de maior liderança de um país à de réu, condenado e penitenciário. Vi dor em sua face, em razão das humilhações impostas e das perdas impingidas. Vi revolta em sua voz, pelas injustiças que lhe administraram. Vi essa revolta mesmo quando disse que em seu coração só cabe o amor. Vi aquela frase repetida mentalmente em sua cabeça por quase dois anos e enfim libertada para os ávidos equipamentos da mídia do mundo inteiro. Em uma palavra direi que vi um ser humano, como seres humanos são todos os jornalistas, historiadores, antropólogos e juristas. Em outra palavra direi que vi um ser profundamente solitário e sofrido, sôfrego por se comunicar com o mundo, carente de dar e receber palavras e afetos, que no canto mais profundo dos sorrisos distribuídos guarda ainda uma dor indizível, da qual somente relatará a poucos outros seres de sua extrema confiança. Vi quanto mal o poder humano pode fazer a outro igual, a quem o exerce inclusive, e o quanto são desumanas as penalidades humanas.
                   Vi o que não estava exposto. Refleti a respeito do que não foi questionado. Se aquele senhor setuagenário é culpado ou inocente dos crimes que lhe atribuem, disso não perguntei. Se ele foi ou não o maior benfeitor dos pobres dessa continental terra de quase ninguém, muito menos me indaguei. O que vi de verdade foi a maldade de seus algozes que se utilizaram da lei como vindicta. O caso daquele senhor é um ótimo exemplo da utilização do direito criminal como instrumento de tomada do poder político. Mas também temos exemplos desse mesmo instrumento para a sua manutenção. Mais que isso, vi os milhares de pobres injustiçados que são levados e mantidos nos cárceres país afora, que na mesma quantidade que aprisiona os bandidos mais perigosos também para lá conduz uma corja de indefesos inocentes, que sem voz ou visibilidade como teve Lula, são simplesmente misturados e esquecidos em meio aos verdadeiros estupradores, homicidas e traficantes, lá permanecendo como cômoda mão-de-obra para a indústria do crime organizado, que é quem de fato estrutura, comanda e lucra com o sistema prisional brasileiro.
                   Se alguém, como aquele frágil senhor que se fazia de forte e sábio para a luz mágica dos holofotes, a prisão foi uma experiência tão combalida, mesmo a ele tendo sido dirigidos alguns privilégios e dignidades, como estar em cela individual, receber visitas com regularidade, ser assistido por um bom e combativo advogado, ter acesso a um mínimo de respeito à sua condição humana, enfim, imaginei em que condições não saem dos presídios aqueles submetidos à diária e regular tortura dos cubículos superlotados, à opressão do crime organizado que é quem de verdade manda no ambiente interno dos presídios, se obrigando a combater em uma guerra que não é sua, a servir de massa de manobra para as orquestrações dos chefões desses grupos, indefeso, se vendo obrigado a se submeter a um duro sistema paralelo de punição, onde há sim a pena de morte e de cuja sentença não se admite qualquer recurso.
                   Por detrás de todo o pomposo debate travado pelos ímpios constitucionalistas da nossa corte suprema, em que se digladiavam para concluir se a Constituição de fato diz o que lá está grafado em sua literalidade; para além do verborrágico discurso jurídico que às vezes não muito bem disfarça o lugar de fala e as preferências ideológicas, às vezes as simples conveniências de momento de seus prolatores; escondido no canto mais escuro das simbólicas togas dos magistrados, que no âmago desse simbolismo remonta à opressão do poder e não à composição restaurativa da justiça. Para além da serena figura dos guardiões que deveriam ser todos do sistema constitucional que acima de tudo promete buscar efetivar a dignidade suprema da pessoa humana. Acima mesmo da justiça ou perseguição que fazem e continuarão fazendo a Lula, está a verdade inapelável porque formada pelos dias de liberdade tolhidos, pelas vidas ceifadas e banhadas por bastante sangue; a verdade de que a pena de morte existe nas prisões e na periferia do Brasil; de que a tortura existe em todos esses lugares; que seu praticante quando não é o próprio Estado, tem na sua cúmplice indolência um partícipe histórico e fiel.
                   É preciso denunciar então, que mesmo que sejam todos os milhões de prisioneiros do Estado culpados dos maiores crimes, mesmo aqueles que estão presos à míngua de uma sentença condenatória porque não lhes foi garantido um defensor; inclusive aqueles outros que são defendidos por uma mera formalidade por assoberbados causídicos, que por esse e outros motivos não dedicam o tempo necessário à uma profunda análise dos casos apresentados, renunciando tantas vezes ao duplo grau. Ainda que nos cárceres somente existissem culpados e fossem povoados exclusivamente pelos piores tipos possíveis. Mesmo que todos eles, além de irrecorrivelmente culpados, fossem ainda irrenunciavelmente não recuperáveis. Até se nos convencêssemos a todos os brasileiros que o cárcere é o melhor, talvez único destino possível aos bandidos, quando não for mais conveniente mandar-lhes direto ao cemitério ou quiçá às covas rasas das centenas de necrópoles clandestinas que sabemos existir. Mesmo aí é imperioso denunciar, todos esses incorrigíveis malfeitores seguiriam humanos. Mesmo aí é inevitável dizer que o Estado que mata e tortura é criminoso. O Estado que se omite o é mais ainda. E o que é cúmplice comete delito qualificado.
                   Mais que tudo isso, ousamos denunciar, o Estado como ser de existência não existe. Simplesmente não existe, senão enquanto uma ficção jurídica, convenientemente articulada e justificada por milhares de tomos soberbos de discursos úteis, tudo feito para esconder as pessoas, estas sim, as verdadeiras opressores, os verdadeiros delinquentes. O mundo não se tornará melhor enquanto não restar claro a todos os estatistas de direita e de esquerda que, no Brasil, comete crime contra a humanidade aquele que propõe ou envia outro ser dessa desgraçada espécie entre os animais, que é a nossa, a humana, ao cárcere. Porque fazê-lo é destiná-la à lenta tortura psicológica da opressão e da peia física ou ao rápido aniquilamento da morte irrecorrível do tribunal do crime.

Jorge Emicles

domingo, 29 de setembro de 2019


SALKANTAY



Partiu a procura de algo
Que já levava na bagagem:
Eis o que há mais insólito
Sobre a busca de si mesmo.

                   Desde bem pequeninas as crianças nascidas em Urubamba, povoado quase esquecido do Peru, ouvem falar da Montanha Selvagem, a montanha sagrada dos Inkas - Salkantay, lugar de veneração e devoção às forças da natureza; lugar de aprender sobre a grandeza e delicadeza da Criação, onde estão resumidos todos os princípios de Pachamama. Pelo menos é assim para os descendentes do povo Quéchua, aqueles que deram fortaleza e fama aos renomados Inkas, maiores dentre todos os habitantes da América do Sul em todos os tempos.
                   Para o menino Herber foi mágico o primeiro avistamento daquela montanha. Embora dela tenha ouvido falar desde a mais remota infância, foi a partir de Cusco, lugar que conheceu já quase adulto, quando para lá foi estudar, que pôde ver aquele pequenino triângulo pintado de branco contrastando com o verde, às vezes cinza, predominante da vegetação local. Como pode, há de se ter perguntado aquele menino miúdo e desimportante, invisível para tantos, dada a sua aparência tão comum, como pode algo infinitamente minúsculo ser comentado com tanta grandiosidade entre seus ancestrais? Como poderia aquela pintinha branca no céu ter chamado a atenção dos grandes reis, habitantes do Umbigo do Mundo, a antiga Kosko, capital do Império dos Inkas?
                   Mas a própria Cusco que conheceu o menino quase adulto de quem falamos igualmente era imensamente distinta daquela que fora o Umbigo do Mundo, significado da palavra Kosko, nome original do lugar. No tempo do Inka Atahualpa a parte central da cidade era destacada pelo imenso palácio imperial, defronte a uma praça toda coberta de fina areia do mar, trazida por ordem do Inka do litoral do Pacífico, distante mais de mil quilômetros dali. A Cusco que avistou Herber era uma cidade cosmopolita, querendo imitar as grandes cidades ocidentais, cheia de prédios e gente desvairada, repleta de miséria, principalmente a dos descendentes dos Quéchuas, todos quase iguais a Herber, na aparência e na falta de um futuro promissor. Porém, por mais que Cusco desejasse ser igual às demais metrópoles do mundo, com sua indiferença ao sentimento das pessoas que as habitam, com pressa de seguir, não sabe para onde, não sabe para quê, jamais poderá se assemelhar a nenhuma delas. Seja por conta de sua arquitetura, tão cheia da presença dos Inkas, por mais que séculos de dominação colonial tenham tentado destruir essa marca; seja pela inconfundível cultura ainda tão plena das marcas pré-colombianas; seja mesmo pela aparência de seu povo, que por mais que intente disfarçar ou mesmo negar, é marcadamente composta dos descentes Quéchuas. Quantos Inkas não poderão haver entre os pobres e anônimos passantes das ruas centrais da Cusco contemporânea? Quantos deles não estariam servilmente a atender aos milhares de turistas que diariamente enchem o lugar com sua curiosidade excêntrica, típica dos ocidentais; mas também com seu bem-vindo dinheiro estrangeiro? Os Inkas não eram o povo inteiro, mas os seus reis, para alguns, a sua nobreza. Aqueles sábios que deram ciência, prestígio e notoriedade aos vales andinos; aqueles que os espanhóis dominaram e até hoje exploram, de início tomando-lhes o ouro, modernamente se aproveitando da curiosidade dos turistas.
                   Conforme foi se aprofundando nos estudos e no exame da cultura Inka, o jovem Herber aumentou aos poucos seu conhecimento a respeito da sabedoria de que era herdeiro, especialmente da Montanha Selvagem, que mais e mais lhe fascinava. Os Inkas a consideravam sagrada não somente porque era avistável já em Kosko, apesar da distância considerável, mas especialmente pelo seu formato triangular. Representava a própria divindade criadora e sagrada, a Pachamama. Até que houve o momento em que lhe foi possível subir à sagrada montanha. Foi só então que Salkantay se revelou inteiramente a ele.
                   O sentimento que Herber teve na sua primeira expedição foi muito próximo ao que os milhares de turistas que se aventuram na escalada experimentam. Igual ao daquele mediano grupo de brasileiros que conduz na atual viagem. Por isso os compreende tão bem. Tudo para Herber já é conhecido, afinal é ele o guia de todos. Para os forasteiros, no entanto, cada passada é uma novidade, às vezes uma difícil jornada. A caminhada é longa, durará alguns dias. Será preciso testar as capacidades físicas e emocionais dos viajantes. Os inaptos desistirão ao longo da jornada, numa clara evidência da supremacia das leis da natureza sobre as convenções humanas. Não serão os mais ricos nem os mais influentes que aportarão andando a Machupicchu dali a quatro dias, mas os mais preparados. Não necessariamente os mais condicionados aerobicamente chegarão primeiro, porque durante a jornada deverão vencer não apenas às forças exteriores da natureza como também a um inimigo talvez ainda mais implacável: a compreensão que têm de si mesmos e de seus limites, o que é também vencer a natureza, mas agora a natureza interna e infinita que em cada qual de nós habita. O pequeno Quéchua sabe que a jornada será extenuante, mas paradoxalmente renovadora.
                   No primeiro dia todos estão excitados e felizes pela aventura começante. Riem em abundância, falam mais ainda, param em demasia para sacar fotografias porque tudo é novo e deslumbrante. Já no primeiro pouso para o almoço se percebe o quanto se distanciaram uns dos outros. A longitude da jornada deixa mais evidente a diferença entre as passadas do grupo. Uns foram afoitos e chegaram à frente, sem se conscientizar, contudo, que o trecho mais duro ainda está por vir. Outros já se esgotaram na primeira manhã da viagem, se arrependendo em silêncio de mais não haverem se preparado para a dura caminhada. Para esses, somente a dor ensinará da necessidade de planejar e executar com rigor os preparativos para a grande jornada. Jornada que não é aquela, a de Salkantay, mas a da vida, que exige ainda maior esforço e empenho para ser superada.
                   Herber sabe que subir a montanha não é simplesmente chegar ao topo de um cume elevado. Para chegar a Salkantay é necessário se elevar espiritualmente, descobrir a divindade da montanha, mas também o merecimento de poder contemplá-la dentro de si mesmo. Aqueles passeantes aventureiros e felizes da primeira parte da jornada, contudo, ainda não descobriram isso. É preciso subir, extenuar os músculos, testar as condições do coração e dos pulmões e, sobretudo, o tamanho e a intensidade da vontade sincera, para chegar ao descobrimento mágico do qual já é sabedor Herber.
                   O começo da jornada propriamente é o que virá a seguir. Há uma visita à laguna de Humantay. A Cabeça da Montanha, outro cume elevado dos Andes, vizinho a Salkantay, onde repousa uma lagoa gelada, cuja fonte que a abastece provém do degelo dos picos mais acima. Subir a Humantay parece fácil, exceto para quem se aventura na jornada. O que inicialmente era uma charmosa figura branca vai crescendo a cada passo do viajante. A grande montanha se torna não apenas maior, mas também mais opressora. A cada passo se agiganta o monstro rochoso, pintado de branco. Um branco incomum, de uma tonalidade que os pixels das telas não conseguem imitar. Não adianta fotografar ou filmar a jornada. Sua verdadeira dimensão somente pode ser compreendida para quem a faz. Porque, além da grandiosidade do cenário, sempre deslumbrante, tão belo e tão grande que não caberá jamais no quadro de um fotógrafo, há também o peso da montanha, que massacra a cada novo passo com maior volúpia o írrito corpo do caminhante, tornando-o cada vez menor, disforme e sem forças. E não haverá jamais lente ou tecnologia que capte a intensidade dessa relação de força que esmaga não somente  o corpo, como a vontade toda do viajante.
                   Aquilo que há mais de cem quilômetros de distância era um simpático ponto branco que enfeitava o topo de uma montanha supostamente bem elevada, agora é um gigante de pedras a irradiar toda a sua poderosa massa contra aqueles que se atrevem a desvendá-la. Dali, daquele passo da trilha disforme, composta por vários caminhos, todos levando para o alto, para o mesmo destino, é que é possível compreender a verdadeira dimensão do mito da esfinge. Ou o caminheiro decifra o segredo da montanha ou ela o absorverá, anulando completamente sua existência. Herber já sabe como desvendar o mistério. Os viajantes não, pois aprenderão apenas os que seguirem tentando. O segredo é exatamente o tamanho da vontade. Tudo é muito simples, pensa o Quêchua ao mirar o esforço, resignação e até o desespero dos seus protegidos, todos heroicamente travando uma penosa e quase perdida batalha para conseguir dar o próximo passo. Eles ainda pensam que estão lutando contra a força da montanha, contra os efeitos do ar já bem rarefeito àquela altura ou mesmo contra a gravidade ao lhes empurrar pesadamente para baixo quando o que desejam é chegar à esplendorosa altitude do lago gelado. Os que insistirem com essa batalha inglória inevitavelmente perderão, pois não se vence ao poder da natureza. Querer assim, é como se o homem pretendesse ser maior que Deus; mais perfeito que Pachamama. Impossível lutar contra as forças da natureza, mas sempre é viável dominá-las através do respeito e da consciência. Foi isso o que fizeram os Inkas, conforme provam suas inexplicáveis construções, todas repletas de toneladas de pedras cujos métodos de manuseio e transporte até hoje são desconhecidos da ciência moderna. Dentro do seu silêncio atento, Herber sabe que somente aqueles que perceberem que a luta não é contra o mal estar que sentem, seja a falta de ar, ausência de forças ou tontura; mas sim contra sua própria vontade é que conseguirão chegar ao destino.
  
                É importante chegar a Humantay não só pela lagoa em si que é recipiente do sagrado elemento da água. Mas pela autoconsciência da potência da vontade. É esse o verdadeiro teste a que submete Herber seus protegidos sem que eles o saibam. É uma prova deles contra si mesmos. Através da vontade, contudo, todos poderão vencer a batalha. O Quêchua não conhece Schopenhauer, famoso filósofo alemão, que se notabilizou pela sistematização da força da vontade na natureza. A verdadeira potência de todas as coisas é a da vontade, seja na natureza, seja na fenomenologia humana. Mesmo assim, nosso personagem conhece melhor que todos os eruditos com quem já tenha tratado dessa importante ciência. Toda a erudição do mundo, todas as centenas de milhares de tomos já escritos, todos os séculos de estudo acumulados pela humanidade inteira são um mero enfado, talvez quase uma inutilidade na altitude de Humantay. A verdadeira sabedoria está com Herber, que a aprendeu diretamente de Pachamama, sem a necessidade de uma letra ou dígrafo sequer. Tanto que os intelectuais ficaram pelo caminho, presos sob o pesado escombro de tantos saberes. Só puderam vislumbrar a laguna aqueles que se valeram das silenciosas lições do seu guia, que só pelo mirar insistente lhes dizia para seguirem, para darem apenas um passo por vez; a não terem pressa, mas seguirem insistentes. A eles, que inconscientemente apreenderam a lição que talvez nem Schopenhauer tenha compreendido em toda sua intensidade, foi conferido o grande mérito de contemplar a água azul, refletindo a enorme geleira acima na mágica luz do entardecer. Não haverão lentes nem tecnologias, repetimos, que sejam capazes de descrever a imensurável grandeza daquele momento único. Muito menos existirão palavras para refletir os pulsantes sentimentos que povoaram os corações dos poucos presentes àquele instante.

                   Por mais bela que fosse a paisagem, o frio convenceu todos a descer. Muitas vezes a descida é mais penosa que a subida. E aquela foi para tantos. Agora, a cada novo passo do caminhante, ao mesmo tempo em que se sentia vitorioso pelo objetivo alcançado, lhe pesava a incerteza da manhã a seguir, que o convidava a superação ainda maior. Do teste passaram, mas a verdadeira caminhada era chegar a altitude ainda maior, a do topo de Salkantay. Não havia comemorações a fazer. Não ainda, porque os aguardava a todos uma gelada noite no acampamento, seguida por uma penosa trilha de um dia inteiro, com subidas ainda mais íngremes e perigosas; com descidas arriscadas, cheias de pedras em falso. Valeria o sacrifício? Se perguntavam os caminhantes. Valeria sim, respondia Herber no silêncio de seu meigo e simpático sorriso, como se adivinhasse o temeroso pensamento contido em todos.
                   Dormir em temperatura quase glacial não é fácil para ninguém. Mas sobrevivem os que consigam se agalhar devidamente. Logo pela manhã, teve início a parte mais importante da jornada. Aos poucos, o pico de Humantay foi se afastando dos viajantes e na mesma velocidade veio se aproximando um gigante maior ainda, que devagarinho foi se apresentando em sua verdadeira grandeza. A meio caminho do topo da montanha todos compreenderam que, de fato, a aventura da véspera foi um simples teste, talvez uma broma pregada por seu guia, porque todo o esforço desempenhado então nada seria perto do novo desafio. São menos de quinhentos metros a diferença de um cume para o outro. Mas os abismos da nova trilha, a consciência da imensurável altitude, à beira de um enorme vale andino, tornou a jornada ainda mais temerosa. Aquela sim, era uma jornada que exigiria um autoconhecimento ainda mais profundo; uma potência de vontade muito maior. Mas também como na véspera, não adiantavam os livros. A verdadeira sabedoria está em fazer. A maior das superações é ousar e conseguir dar um passo a mais em direção àquela gigante, que pelo ângulo que se avizinhava, parecia mesmo maior que toda a cordilheira da qual fazia parte.
                   A imensidão das montanhas fazia a todos terem consciência da pequenez individual de cada qual. É impossível a seres tão rasteiros, mesquinhos, egoístas, desprezíveis até, como somos nós da espécie humana, conseguir atingir o topo de uma perfeição da natureza, como Salkantay. Ela é enorme. Não haverá palavras em língua nenhuma capaz de descrever sua perfeição, grandiosidade e beleza. Talvez só os Quéchuas mesmo tenham sido capazes dessa descrição. Salkantay: Montanha Selvagem, quase inexplorável. Inacessível à maioria dos mortais. Detentora dos mistérios de Pachamama. Símbolo da sabedoria dos Inkas... Mas também um ser hostil, imensamente poderoso, que bafeja sua potência contra aqueles ínfimos seres que a almejam explorar, contra eles impondo a potestade de suas incalculáveis forças, oprimindo-os a seres ainda mais míseros e desimportantes que de fato são. Mirar a grandiosidade da montanha de tão perto é se autoconscientizar de quanto individualmente somos pequeninos, desimportantes e desinteressantes. Pachamama parecerá grande demais para perder tempo com seres tão sem significação. Que somos nós perto da infinitude do universo? Senão nada à potência infinita? Salkantay nos prova fisicamente essa irrefutável verdade.
                   Até dá tristeza aos caminhantes se perceberem tão desimportantes diante da grandeza da natureza e de Deus. Herber vislumbra, quando em vez, a tez de desassossego de seu grupo. Mas se cala, porque também aquilo é parte do aprendizado. O pensamento que povoa a muitos dos peregrinos é a vontade de desistir, pois qual o sentido de seguir diante da consciência de tamanha pequenez individual? Quanto maior se torna a montanha, menores ficam seus exploradores. Mas novamente a vontade é a chave para a nova descoberta. Aos que seguirem, o cume da montanha guarda importante segredo. E, no seu silêncio, o Quéchua estimula todos  a continuar sua jornada, que como se pode logo perceber, não é em rumo ao pico de uma montanha gelada, mas na direção da altitude do próprio ser e do próprio Deus.
                   O que poderia mover aqueles viajantes a jornada tão insalubre? Todos, afinal, eram pessoas bem nutridas, por isso adequadamente alimentadas, que de acordo com suas vestes e tezes poderiam presumir-se de bom nível de vida, assentadas em rotinas plácidas e cheias de conforto. Exercitar-se era um lazer e não uma necessidade. Por que, então, se aventurariam na insólita e perigosa aventura de subir um cume tão elevado e inóspito? Herber não conhecia a literatura portuguesa, porque a conveniência da língua o educara na poesia escrita em castelhano. Não ouvira ainda falar em Fernando Pessoa nem em seu heterônimo Ricardo Reis. Mesmo assim, como fez José Saramago, de quem também não conhecia a obra, saberia responder que as razões que levavam seus conduzidos a seguir montanha acima com tanta perseverança eram as mesmas que motivaram Ricardo Reis a visitar a sepultura de Pessoa. Mas como pode a criatura sobreviver ao criador? É que, diria Herber se acaso lhe questionássemos, a criatura tem vida própria e independente, possui sentimentos que são só seus; compreensões que lhes são únicas. Todos nós, continuaria o guia, todos nós esses seres ínfimos, ainda mais diante da grandeza de Pachamama, aqui, defronte a insuperabilidade de Montanha Selvagem, somos como a criatura de Pessoa, senhoras de nossos sentimentos e desejos, por isso independentes. Mesmo assim, frutos de uma fonte única, que é capaz de comportar em si todas as diferenças da existência possível ou impossível. E, por mais diferentes que sejamos uns dos outros e da nossa própria fonte, ainda assim seguiremos sendo partes apenas de um todo bem maior que nós. A montanha não é nossa inimiga. Apesar da aparência, não nos é inóspita. Ela é a própria Pachamama, da qual fazemos parte, de onde provimos. Como Ricardo Reis quanto a Fernando Pessoa, somos míseras criaturas da Mãe Natureza. Mesmo ínfimas, únicas, insubstituíveis e de importância ímpar. Eis o segredo que pode conduzir o caminhante ao alto da montanha, pois não se luta contra a montanha. Se integra a ela formando um novo ser único e indivisível.
                   E assim, na medida em que os caminhantes iam se conscientizando da sagrada lição da selvagem montanha iam, cada qual a seu ritmo, devagarinho, aportando a seu cume. Um a um foram chegando todos. Alguns chegavam sozinhos outros em pequenos grupos. Todos em silêncio. Tal qual é a vida da espécie, que segue adiante sempre, mas em velocidade e com significado diferente para cada qual dos viventes, aventureiros incônscios da sofisticada aventura da existência carnal. Para todos foi sempre emocionante a chegada, pois compreendiam, sem exceção, que haviam vencido. Não uma rochosa e gelada montanha, mas a si próprios. Houve os que choraram, houve os que sorriram, houve também os que congelaram a face, embora fervilhassem bem lá dentro, onde pulsa o coração valente.
                 
  Com a chegada do derradeiro, reuniu então Herber todo o grupo. Era chegada a hora do ritual de agradecimento. Postou-os em semicírculo aberto na direção do cume, distribuiu a cada qual três folhas de coca e uma pedra em tamanhos variados. Disse que, conforme a cultura Quéchua, ali estavam diante de uma montanha sagrada, símbolo de todo o poder da Criação. Para seu povo, poder representado por Pachamama. Pachamama, continuou, não é somente a terra que nos apoia, mas toda a natureza. Portanto, também o vento, a água, o fogo, assim como igualmente as energias e sentimentos que a tudo habitam ao nosso redor. Era assim que compreendiam ao próprio Deus Criador. Naquele momento, diante da grandeza da Criação, representada pela imensidão da montanha gelada que miramos, é uma oportunidade tanto para agradecermos quanto para pedir auxílio à Mãe Natureza. Assim, segurem com firmeza as folhas de coca que têm nas mãos e em silêncio façam sua veneração. Conforme queiram, agradeçam pelo que tenham conquistado e aprendido ou mesmo peçam algo importante, para si ou alguém por quem tenham afeto. Peçam saúde, prosperidade ou sabedoria, conforme seja a necessidade de cada um. Sempre em silêncio. Após alguns instantes seguiu dizendo: agora ponham cada um as suas folhas de coca sob a pedra que têm na mão, formando um conjunto de pedras que deve ter a forma de um triângulo, próximo ao formato de Salkantay. E então, a sagrada montanha lhes atenderá o desejo.
                   Foi com profundo amor que Herber conduziu o ritual. Compreendia perfeitamente que aqueles turistas representavam a exploração a qual seu povo fora submetido historicamente desde mais de quinhentos anos passados. Primeiro os espanhóis lhes tomaram a liberdade e o ouro. Lhes tentaram matar a cultura, que mesmo assim conseguiu sobreviver em silêncio e em segredo na intimidade dos lares Quéchuas. Somente graças a essa resistência heroica é que ele mesmo podia agora repetir com os estrangeiros o ritual que aprendera de seus ancestrais, que por sua vez o aprenderam dos próprios Inkas, que segundo se conta na tradição oral de seu povo, ainda mais uma vez retornarão para libertá-los. Mas Herber não guardava qualquer mágoa por essa dominação. Não se incomodava pelo fato de ninguém do grupo o haver questionado a razão de ele, um autêntico Quéchua, haver sido batizado com um nome de origem alemã. Se perguntado fosse, diria que fora um antídoto de sua mama contra o preconceito que sempre recaiu contra os seus. Dar um nome estrangeiro era uma forma de diminuir a opressão. Por isso estavam quase esquecidos entre os seus os nomes tradicionais de sua gente. Por isso não se chamava, por exemplo, Kusi Qoyllor, que quer dizer Estrela Feliz ou mesmo Inti, que significa Sol. Não contou, embora teria dito com honor se acaso perguntado, que sua filhinha fora batizada com um nome da tradição, que ela era chamada por Ima Sumac, a Mais Doce, o que de fato era. Mas tudo aquilo, pensou Herber, era passado. O que vale de verdade é o presente, é a possibilidade de ser útil e praticar o bem. Era esse o propósito da existência, era essa a lição de Pachamama. Em nome do seu povo, sinceramente perdoava todos os excessos praticados pelos dominadores. O que era preciso de verdade era construir um tempo de união e igualdade. Por isso que se entregou totalmente às energias do ritual, como faziam os xamãs Inkas do passado.
                   E esse sentimento deixou seu coração leve como uma pena de condor, que por isso o permitia flutuar sob todo o mar de desgraças que já se abateu sob aquela terra, sem, contudo, se contaminar com a angústia e sofrimento que já povoou aqueles lugares. Tudo era passado. A paz voltara a reinar. Depois de haverem tomado parte naquele ritual e após terem se empoderado das valiosas lições da viagem, pensou o guia, dali a vários anos adiante, a morte os ceifará com maior candura.

Jorge Emicles

domingo, 18 de agosto de 2019


UM SONETO QUÂNTICO



Vi. Não porque tenho olhos,
Mas por ser capaz de enxergar
Que envolto em mil silêncios
Um novo deu em desabrochar.

Senti. Não por possuir nervos
Mas por de dentro fazer desfecho:
Do que era não somos escravos.
O mundo finda voltando ao eixo.

Vivi. Não porque tenho carne
Mas porque continuaremos a existir
Mesmo despois do remate.

Respiro. Não por pulmões possuir
Mas pela fé petrificada n’alma
De que nunca sessarei de existir.
Jorge Emicles

domingo, 4 de agosto de 2019


UNIVERSOS PARALELOS



                   De repente veio o desejo de engolir todo o vento do mundo. Numa golada sofrida de ar inspirou profundamente, como se houvesse a real necessidade de pôr para dentro de uma única vez todo o oxigênio necessário para a vida inteira. Naturalmente foi frustrado o intento, pois houve um momento, logo no início, em que os pulmões, encharcados de matéria prima pararam de sorvê-la.
                   Mas existiu um tempo em que aquela mesma criatura possuía dilação brônquia imensamente superior. Assim como aptidões aeróbicas bem mais potentes. Era um tempo de vigor físico, mental e espiritual, do qual restara apenas a saudade profunda e a tardia consciência do potentado do qual já foi senhor.
                   Mas e quem seria ele, afinal? Aquele senhor no caminho da senilidade ou o jovem prepotente e forte que guardava nas sedutoras lembranças da juventude que, apesar de inexistente no tempo do presente, era em quem se reconhecia? O pretérito mancebo não poderia estar extinto, pois não haverá ser possível a lembrança do que não existe. Vem de Hermes, afinal, a sabedoria de que no Universo, todas as coisas já estão criadas. É de Platão a evidência de que a essência das coisas é imutável e eterna.
                   Ilusão é perceber o perpassar das coisas.
                   Dentro de cada consciência há todas as coisas de todos os tempos. Estará contido uma infinidade de universos paralelos, de histórias dissonantes e contraditórias, que guardam uma impossível coerência unitária. No um todas as coisas são simples, consistentes e absolutamente conciliáveis.
                   Assim como a consciência da nossa personagem forma uma infinidade de universos que habita harmoniosamente no inesgotável espaço de um coração solitário, também a consciência de todos os outros seres, viventes ou não, encerram a mesma improvável realidade. Somos infinitos de infinitesimais universos.
                   Cada qual com suas incontáveis certezas, verdades e desilusões.
                   Está entre os ensinamentos pitagóricos a fórmula de que o zero, quando multiplicado pelo infinito resulta em um. O Um Criador, fonte primeira de todas as coisas havidas e por haver. Mas e quanto seria a multiplicação da infinidade de universos paralelos pelo infinito de sua quantidade?
                   De novo, teria de resultar no mesmo Um. Naquela unidade que tem cem nomes.
Jorge Emicles

quinta-feira, 25 de julho de 2019


CERIMÔNIA DE OUTORGA DA MEDALHA FIDERALINA AUGUSTO LIMA, CONCEDIDA PELA ACADEMIA LAVRENSE DE LETRAS (ALL) A OTONITE CORTEZ E DIVANI CABRAL, POR OCASIÃO DA ABERTURA DOS DEZ ANOS DO CARIRI CANGAÇO - DISCURSO DE APRESENTAÇÃO DAS HOMENAGEADAS



                   Vem da tradição mais remota do Cariri, ser esta terra de lutas e cultura. Nascida da primeva guerra entre brancos e índios, que em parte devastou o valente povo de cara triste, os Kariris, mas em parte também os acolheu como componente indelével de sua rica cultura, a região sul do Ceará sempre se destacou desde o seu berço mais remoto.
                   Entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, ganhou corpo no Brasil inteiro, mas com destacada força nessa região, o chamado período dos coronéis, nascido no final do império e fortalecido durante toda a primeira república brasileira. O Cariri cearense novamente ganha relevo nessa impotente fase da história nacional. É esse o tempo dos coronéis, seus cabras e também dos cangaceiros, outro fenômeno social brasileiro que fincou profundas raízes na região.
                   Nesse período conviveram figuras aparentemente antagônicas, talvez até inconciliáveis na narrativa de alguma ficção que, contudo, na realidade de nossa historiografia, coexistiram muitas vezes pacificamente, visando objetivos comuns, mas noutras se engalfinhando nas lendárias guerras locais, entre as forças públicas e os cangaceiros; entre os coronéis e os cangaceiros e entre os coronéis uns com os outros. É nesse cenário conturbado que surgem figuras surreais, como Lampião e seu bando, padre Cícero e seu tino peculiar para o misticismo, a política e os negócios. E também a lendária dona Fideralina Augusto Lima, mandatária maior de toda a região do Vale do Salgado. Mulher que mandava nas coisas da política e nos homens num tempo em que as mulheres sequer direito ao voto possuíam.
                   É essa a figura justamente homenageada pela Academia Lavrense de Letras ao criar uma medalha com seu nome.
                   Em parceria com o Instituto Cultural do Cariri, este último, instituição que congregou os primeiros estudiosos da nossa rica região, vem a Academia Lavrense de Letras reconhecer nessa memorável data a grandeza da mulher caririense, outorgando a medalha dona Fideralina Augusto Lima e duas grandes mulheres nascidas na região. Se tratam de Otonite Cortez e Divani Cabral. Sem dúvida, dois importantes símbolos do destacado lugar conquistado pela mulher caririense, desde os remotos tempos de dona Fideralina, de Lavras da Mangabeira.
                   Antonia Otonite de Oliveira Cortez é nascida em Cariús, mas foi em Várzea Alegre, no seio de sua família, formada por seus pais e quatro irmãos, onde foi criada e viveu até os vinte e dois anos de idade. Desde cedo se destacou como uma grande educadora. Foi egressa da antiga Faculdade de Filosofia do Crato, sementeira cultivada pela diocese local e que vingaria na atual Universidade Regional do Cariri – URCA, de importância fundamental ao desenvolvimento regional. Nessa qualidade, é parte do time de fundadores da instituição, à qual se dedicou com elevado esmero desde os seus primeiros anos, até a atualidade.
                   Foi e é importante professora do departamento de História da URCA, mas também ocupou os mais destacados cargos da instituição, passando desde Coordenação de seu curso até a reitoria da instituição, ocupando ainda no interstício entre um e outro cargo, diferentes funções institucionais, dentre as quais é importante destacar, a Comissão Executiva do Vestibular, a presidência da Comissão Permanente de Pessoal Docente, membro de ambos os Conselhos Superiores da Universidade e membro da Comissão Responsável pela elaboração do Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos das três Universidades Estaduais do Ceará, trabalho este que se transformou em lei até hoje em vigor e que teve o mérito de dignificar e requalificar a carreira e a remuneração dos professores universitários em todo o Ceará.
                   Foi todo esse conjunto de atividades que a qualificou a ser eleita sucessivamente vice-Reitora e Reitora da Universidade, tendo sido a segunda mulher a dirigir a instituição e a primeira oriunda de seu quadro permanente. Sua administração foi marcada pelo dinamismo, pelo entendimento com os diversos setores que compõe a academia, pela democracia, avessa que sempre foi às perseguições políticas e as práticas despóticas, mas principalmente, foi uma realizadora de grandes obras. Algumas delas imateriais, mas de profunda relevância acadêmica, como a de implantação dos programas de assistência estudantil, responsável por garantir a permanência dos alunos pobres nos bancos da Universidade durante toda a sua formação acadêmicas. Outras, entretanto, obras de vulto material, como a construção do Ginásio da URCA, do prédio do Biotério, da Residência Universitária, da reforma do museu de paleontologia de Santana do Cariri, além de dezenas de outras realizações.
                   A marca da grande gestora a conduziu em seguida à Secretaria de Educação do Município, onde foi uma das principais colaboradoras do atual prefeito de Crato. Mas não se trata de uma gestora, apenas. O vulto que se presta aqui a ser homenageada é o de uma grande mulher, que para muito além da vocação política e do carisma de indiscutível liderança, carrega em todos os seus atos a delicadeza da mãe e avó que é, a meiguice da amiga, sempre preocupada com os seus próximos e, sobretudo, a serenidade da grande educadora que em tudo o que faz ensina.
                   Já Maria Divani Esmeraldo Cabral carrega a mesma marca da pedagoga, embora não se trate de mulher da política, no que pese seja um ser de profunda sensibilidade e argúcia do mundo. Sensibilidade essa tão destacada que somente poderia caber no espírito de uma artista, o que ela, acima de todas as outras coisas, é.
                   Nascida em Crato, filha de tradicional família local. Perdeu o pai bem cedo, o que a obrigou a começar ainda na adolescência a buscar meios de auxiliar na renda familiar. E foi desde então que se revelou a artista inata que ela já nasceu sendo.
                   Com os pais aprendeu os primeiros acordes e se familiarizou com os primeiros instrumentos. Mas também se dedicou com esmero ao estudo da música e outras artes. Iniciou-se como estudante da Sociedade de Cultura Artística de Crato, mas logo se transformou no espírito que vivifica tudo naquela instituição. Se especializou em música instrumental, em canto, técnica vocal, regência, violino e história da música, além de possuir formação em teatro, artes plásticas e cinema. Foi professora nos principais educandários da região, além de ter trabalhado na Faculdade de Filosofia de Crato e na própria Universidade Regional do Cariri. Foi mestre de muitas disciplinas, como de educação artística, psicologia infantil e da adolescência, história da educação, sociologia, técnicas audiovisuais, teatro, canto, piano e violino.
                   O currículo da homenageada já depõe sobre as qualidades intelectuais e artísticas dela. Nada, contudo, lhe é tão caro quanto o fato de haver sido a fundadora e regente do famoso Pequeno Coral do Crato, que já há gerações vem formando parte da juventude de toda a região. Ela educa seus jovens não somente para a música, mas sobretudo para a vida. Seu arguto olhar repara não apenas para a perfeição do canto de seus pupilos, mas para a sua existência como um todo. Seus vívidos olhos brilham quando ela fala das centenas de mensagens de agradecimento que recebe vez em quando dos antigos alunos, alguns já homens e mulheres de madura idade, que ainda assim, guardam a saudade e o reconhecimento da grande educadora que é Divani Cabral.
                   Ao longo de sua rica vida, Divani já exerceu dezenas de funções importantes em várias instituições locais, como na Rádio Educadora do Cariri, no Colégio Santa Tereza de Jesus, no Colégio Diocesano do Crato, no Centro de Audiovisuais da Faculdade de Filosofia de Crato, no Teatro Afonso Pena, na Scholla Cantorum Sanda Cecília, no Município de Crato, no Museu Vicente Leite e Histórico J. de Figueiredo Filho, na Biblioteca Municipal, entre outros.
                   Seu mais destacado trabalho, no entanto, é como diretora e regente do coral da Sociedade de Cultura Artística do Crato – SCAC, onde tem sede o Teatro Rachel de Queiroz.
                   Assim como quanto à nossa primeira homenageada, relatar os cargos que ocupou e os lugares em que já esteve é bem pouco para falar de Divani Cabral, pois para muito além de todos os dados biográficos relatados, é de uma rara mulher de quem falamos. De uma daquelas que soube ter a grandeza de espírito necessária para transformar a perda do pai em uma grande oportunidade de aprendizado. Que transmudou, como bem poucos são capazes, a dor do sofrimento na beleza da arte. Quem, ao invés das lágrimas do degredo, derramou acordes a um mundo já desde aqueles remotos anos de sua infância carente de amor, sensibilidade e compromisso com a formação ética das futuras gerações.
                   Por traz da fragilidade do corpo e para além da timidez e recato dos gestos, Divani Cabral esconde a magnanimidade de uma profunda e delicada artista.
                   Cada qual a seu modo, Otonite Cortez e Divani Cabral, são replicadoras da fortaleza da mulher caririense e por isso indiscutíveis merecedoras da Medalha Fideralina Augusto Lima, concedida em honrosa parceria entre o ICC e a ALL.
Jorge Emicles

domingo, 21 de julho de 2019


LEGADO DO PORVIR



                   O que de melhor poderíamos legar à próxima geração, em especial aos filhos, senão a posteridade de um futuro pacífico e próspero, pleno de boas colheitas. O futuro é filho do presente, sua consequência direta, de modo que se há pretensão em construir um legado do porvir à seguinte geração, é no agora que se deve alicerçar os fundamentos desse tempo que haverá de alvorecer para ser testemunhado pela descendência humana.
                   Através das sucessivas gerações nos fazemos eternos, especialmente por intermédio da descendência direta. Nossos filhos são mais que a continuação da vida na matéria, representam a sequência de nosso próprio existir. Há um legado que herdamos da ascendência e repassamos aos sucessores. Essa é uma, senão a mais importante, das formas de o ser humano se eternizar, porque existe um elo que nos liga desde o primeiro homem até o derradeiro, passando necessariamente por cada um de nós, sendo a cultura quem liga cada qual desses quase infinitos elementos.
                   Zelar da descendência é cuidar de si próprio, mas também de toda a humanidade, pois somente assim poderemos sobreviver na matéria, seja enquanto espécie, seja enquanto indivíduos. Sejamos bons pais, então.
                   Aristóteles, um dos maiores entre os gregos, era acima de todas as outras coisas um educador. Como bem ciente dessa irrenunciável missão dos ancestrais em face da sua descendência, tratou de legar a seu filho, Nicômacos, um dos mais completos conjunto de conselhos. O melhor que um pai poderia fazer a seu filho. Uma de suas obras mais famosas, Ética a Nicômacos, são na verdade as lições de um pai à sua descendência.
                   Eis um bom exemplo a seguir.
                   Porquanto não possuímos a profunda visão de mundo aristotélica, embora dela bebamos ainda hoje nas tantas e vãs tentativas de compreender o caos da modernidade, ainda assim não nos desobrigamos do compromisso de afirmar valores necessários à posteridade.
                   Mas que poderíamos dizer a algum suposto filho ainda não nascido? Que mundo a humanidade do presente haverá de legar à humanidade do futuro? Na visão de quem consome o oxigênio do hoje, um mundo caótico, no mínimo.
                   Mas, se pretendemos alicerçar um futuro grandioso, primeiro teremos que  compreender o presente tumultuado em que habitamos, pois é somente a partir da consciência que poderemos alterar a atualidade.
                   Para a nossa posteridade, legamos o nosso presente, porque é somente a partir dele que minimamente podemos tecer alguma compreensão, rudimentar que seja. E esse mundo não é fácil de sobreviver, muito menos de ser compreendido.
                   Daqui falam, talvez em demasia, da verdade, da ética, do que é politicamente correto. Se ensina os valores da ecologia, a necessidade de um consumo consciente e sustentável e de um crescente elevo espiritual. As pessoas aparentam ser livres para falar e agir como bem lhes aprouver. A Constituição Cidadão nos garante. Mas isso só no visor da televisão ou nos monitores dos computadores e smartfones, porque a verdade mesma, a do cotidiano; a que vivemos e sentimos nos corredores dos prédios públicos e privados ou nas calçadas, praças e outras vias é bem distinta. É a do preconceito, da penúria de espírito e da intolerância. Os professores não podem falar a sua verdade se ela não for a imposta pelo opressor. Mais que nunca, a educação vem tomando caminhos tirânicos e alienantes. O consumo irresponsável é cada vez mais estimulado. As práticas religiosas são o mote para a perseguição do que é diferente, porque parece que Deus voltou a ser aquela Criatura enciumada e perseguidora que lançou pragas aos egípcios e arrasou exércitos de inimigos.
                   Ainda pior que esse comportamento idiossincrático é compreender que assim é não por conta de alguma droga alienante, de um algum novo meio de hipnose coletiva, que abobalha as pessoas, fazendo-as ceder ingenuamente à maldade de um novo e insólito ditador. Nada disso. As pessoas agem como são em essência. Revelam sua maldade, preconceito e intolerância. Se matam os homossexuais porque se os odeia. Se nega a miséria humilhante da fome porque os pobres e inválidos precisam ser eliminados, vez que não podem consumir. Se proíbem as reflexões sociológicas porque é mais fácil amansar as massas quando são incultas.
                   Os culpados não são os governantes, mas os ímpios que os elegeram e os aplaudem. O maior dos erros da Segunda Guerra foi imaginar que Hitler alienou todo um povo. Nada disso. Assim como os alemães apoiaram todas as atrocidades nazistas; os italianos as dos fascistas; e os russos as dos stalinistas, também a contemporaneidade apoia os facínoras de plantão. Os norte-americanos são contra a migração porque não se rebelam contra os muros da perseguição. Os europeus são racistas porque seguem elegendo os mesmos governos que fecham os portos e as fronteiras aos refugiados das guerras africanas e orientais, de cujas raízes mais remotas são os derradeiros responsáveis. Os brasileiros são misoneístas, sexistas, preconceituosos aos nordestinos, contra a educação de qualidade e mandam às favas a consciência ecológica e a preservação das riquezas naturais pelos mesmos motivos. Querem ser governados por déspotas, que administram para o umbigo e para a família. Acham que os seus governantes, os magistrados em especial, podem e devem abusar do poder e mentir impunemente, desde que o façam com o propósito de eliminar do poder os inimigos. Se indignam apenas contra a corrupção da esquerda vermelha, pois não se incomodam nem um pouco com o abuso praticado pelos algozes da enegrecida corrupção rubra.
                   E tudo isso se faz mundo afora em nome da verdade. Hipocrisia seria o outro nome da nossa espécie?
                   Não pensamos iguais, claro. Também há os americanos ecológicos, os europeus caridosos e os brasileiros progressistas. É outro engodo da metafísica (ou se preferimos, da arrogante ciência moderna) a de nos unificar em estanques compartimentos, como se de verdade, enquanto povo, tivéssemos as mesmas raízes, cultura e progresso. Somos no mundo inteiro castas diferentes, de valores bem distintos que, grosso modo, nos dividimos entre os vencidos e vencedores da guerra original que fundou o Estado. Os famosos opressores e oprimidos, patrícios e plebeus, aristocratas e provo, burgueses e proletário, burocratas e cidadãos, dominantes e dominados. São todos nomes distintos para a mesma subjugação historicamente repetida em ciclos regulares, que se destroem e renovam para continuar no mesmo. O hoje é uma simples repetição desse processo.
                   Conscientizar o futuro dessa tragédia quase invencível é a esperança única de que no porvir o novo se construa de fato, sem maquiagens ou engodos, como é no presente.
                   Nosso conselho ao futuro incerto da posteridade, vista ela desde esta cambaleante realidade é de denúncia, sim, mas também de consciência. Não de revolta, mas da compreensão de que as coisas precisam se dar com sofreguidão, pois a clareza necessita das trevas para ser distinguida e reconhecida por seu valor intrínseco.
                   Que ao menos nossos filhos, pelo nosso exemplo, aprendam a como não proceder, a praticar a verdade e a reconhecer que não somos povos distintos que habitam o mesmo planeta, mas uma só e inseparável comunidade, que só quando unida atingirá o esplendor da felicidade.

Jorge Emicles