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terça-feira, 22 de abril de 2014



CONVERSAS COM A MORTE
  
                            Teus cheiros ocres não incomodam nem mais seduzem. Tua aparência pestilenta, agora sei, é ilusória. Tu não és feia nem terrível. És necessária. És o bálsamo das dores insanáveis; o fim do ócio da existência; a mãe da eternidade e o recomeço da vida. Não te quero mal, como sei que não odeias a ninguém. Simplesmente tu vens para completar o ciclo, porque não és o início do nada, mas o fim do tudo que foi a vida extinta. És promessa de eternidade; fé no recomeço cíclico da existência perpétua. Razão de que tudo tem e terá sentido; devanear dos incrédulos ateus, por contigo, o sem sentido da existência encenar seu ato derradeiro. És o que, nós tolos mortais, quisermos que sejas: foice agonizante das dores eternas; suplício dos sofrimentos carnais; trágico fim do amor desatendido; desilusão do filho desvairido; fim sereno de uma doce existência... Mas também és certa como as noites sem luar, as madrugadas sem sono e os ocasos de contemplação.
                            És sempre companheira querida nas horas de desilusão. Quem nunca gritou por teu nome nos instantes de maior angústia; quem não pensou em antecipar tua chegada por força dos sofrimentos. Mas sofrer é ínsito à vida, e tanto quanto de ti própria, ninguém escapa das auguras da existência carnal. Te evocar antes do teu tempo, que a ti, somente a ti, compete eleger, não é ato de coragem, mas de extrema covardia. É ato de quem teme tanto a vida, que se desapega da morte.
                            Não nos visitas somente no termo final, mas ao longo de nossa existência de quando em vez sopras teu suave veneno em nossas narinas desatentas. Aquele avô doente e distante que partiu quando ainda éramos crianças; aquele vizinho enfermo; o amigo de escola; a tia querida. Às vezes, és mais veemente: a mãe prematuramente; o melhor amigo; o eterno amor; o filho insubstituível... Não importa de que forma venhas, isto é uma desinteressante questão de merecimento pessoal, que nada tem a ver contigo em si mesma. O fato é que nos prepara desde tenra idade para a tua certeza, única infalível, mesmo que todos os homens vivam para te negar. A verdade é que somos treinados de crianças para não falarmos nem pensarmos em ti; para vivermos eternamente a existência sofrida e desgastante da matéria. Como se valesse a pena tanta dor e sofrimento sem a tua triunfante chegada ao final...
                            A cada encontro nos revelas uma face diferente. Às vezes és serena e gentil, como aquele senhorzinho que parece dormir no caixão. Outras vezes vens irada com o sangue e deformações do sofrimento extremo. Tu já torturastes nossos irmãos, fazendo-os agonizar em terríveis provações, mas também já fostes gentil quando atendeste suave ao convite da partida. És a mãe da guerra, mas também o alimento do recomeço. Não és dor em si mesma, muito embora sejas íntima dela.
                            Já te ouvi em sussurros, alertando que a vida não é vazia e que todas as decisões dela geram uma conseqüência. Cuidado, me avisaste, porque ao termo da tua existência, os erros serão teus e tua vida será minha. Com esta branda dureza me ensinastes a alimentar a responsabilidade das decisões; a respeitar os próprios sonhos que nutro além de perceber a fragilidade da vida. Também já me falaste em silêncio, quando pela intuição me alertaste que a não ser pela radical modificação de postura não tardaria muito nosso encontro derradeiro. E por fim me foste mais escancarada ao, pela quase fatal enfermidade me ensinar (por forma tão grotesca) que não devemos deixar para a tarde as tarefas realizáveis pela manhã, porque aquela pode ser nossa última manhã. Foram três já nossos encontros diretos. Alguns diriam que quatro, porque quando cheguei nesta encarnação, tu partias com quem muito amava. Mas todos foram encontros profícuos. Aprendi muito mais que imaginava, de forma que tu, o fim; o temor personificado; o indesejável de todas as eras me trouxera anestesia às angústias; bálsamo aos sofrimentos; esperança aos desalentos.
                            Mas afora estes encontros casuais, sempre fugi de ti. És fria e dura demais, para desejar sentir teu bafo como o perfume de uma amiga. Não. Podes ser sábia, forte e pujante. Mas não és amiga de ninguém. Podes ser necessária, mas não és capaz de amar. Por mais que nós te façamos humana, como nossas dores e sofrimentos, não és uma de nós, porque não és capaz de perdoar ou adiar o necessário. Não choras as perdas, porque em sendo o nada, nada tens a perecer. Simplesmente és por ser; uma peça na caótica engrenagem do universo, sem qualquer sentido em si mesma, senão aos olhos dos tolos sábios que tudo pensam saber, mas que porém não conhecem a mais ínfima de todas as razões do existir: a vontade de viver simplesmente por viver. Por mais que nos digamos preparados para tua fatídica visita, sempre queremos te enganar. Como, porém, não és uma de nós, não te permites nos deixar te enganar. Não te enganas simplesmente porque és necessária. E qual daqueles tolos sábios seria capaz de antecipar tua visita por simples desprendimento? Aquele que assim agisse na verdade não seria um tolo, mas um suicida, condenado à condenação perpétua de haver de ti se enamorado. Qual pecado há em morrer se és a única certeza da existência perceptível?

                            Mas também não adianta te discutir. És intransponível como certeza, porém podes ser uma necessidade doce, como é o amor, rejuvenescedora como o perdão mas também dura como a desilusão. És inerente à vida, mas podes ser almejada como uma vitória. Não és nada ou simplesmente tudo que nós, tolos seres humanos, conseguirmos fazer de ti. És o que és. Porque és. Simplesmente és e nada mais.