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domingo, 18 de outubro de 2020

 

CECÍLIA



 

 

                   Cecília Campos Augusto era a filha secreta da trágica história da doce Dulce e do infensivo Ildefonso. Filha secreta, mas também legítima de um amor legal, consentido, mas ainda assim terminado a custo de violência desditosa, quase gratuita. Espraiou-se entre sua parentela que o pai morrera após um acesso de injusto ciúmes de um energúmeno delegado, inconformado pela preferência dada por sua mãe ao pai da infanta, que culminou no ato extremo da humilhante morte imposta ao seu genitor, ferido à traição, arrastado sem defesa pelas ruelas da vila de Princesa Isabel e enterrado em cova rasa, com os pés a descoberto, no tempo em que ela mesma, a menina Cecília, era ainda um anônimo feto depositado no ventre da mãe.

                   Também se conta entre os famosos Augustos, seiva poderosa da cepa dos coronéis nordestinos, que apesar de todo o mandonismo, talvez mesmo por causa dele, não foram capazes de evitar o trágico desfecho da vida do médico genial e carismático, que chegou à vila paraibana com a honorífica missão de dar combate à epidêmica peste bubônica que assolava toda aquela região, enchendo de medo e desterro uma terra já tão castigada pela seca e pela miséria. A verdade, contudo, é que por detrás da romanceada história de amor mal sucedida, escondia-se um onipotente plano de expansão e domínio do poderio da família, que através da atuação de Ildefonso em terras paraibanas, se pretendia tomar as rédeas do poderio do Major Feliciano Rodrigues, mandatário local, e dali expandi-lo para toda a região e alhures.

                   A romanceada história de final tão chocante era na verdade um plano de poder e seu desfecho a contrarreação brutal do outro grupo. Matar Ildefonso era imperioso à conservação dos poderosos do momento. O método dos atacantes era inovador e sagaz, pois ao invés da bala, utilizou a mandatária do clã, a famigerada Fideralina Augusto, a sutileza de um casamento conveniente do neto Ildefonso com a filha  do maior capitalista da região, o pai de Dulce, o que garantiria a manutenção futura do poder político através da força do dinheiro. Tanto que, após perpetrado o homicídio do médico, tentaram ainda assassinar seu sogro, que por muito pouco escapou também do desterro fatal.

                   A matriarca dos Augustos, logo que soube da tragédia a transmudou em algo ainda mais brutal. Incontinente, envia cabras à vila de Princesa Isabel com expressas ordens para matar a todos os algozes do neto. O mal foi feito, e contam os ditos populares que os vingadores trouxeram para a patroa um cordão unindo as orelhas de tantos quantos tombaram vítimas desse ataque. Era a origem da decantada lenda do rosário de orelhas, no qual regularmente, diziam, orava a velha Fideralina Augusto até os tempos finais de sua vida.

                   Secretamente, trouxeram aos domínios da matrona, a encantada Lavras da Mangabeira, no Ceará, a viúva do médico, que foi posta sob os cuidados e proteção de Fideralina até o parto da menina, chamada Cecília por decisão da mãe e sob o argumento de que seria também o nome de preferência do pai. Para garantir a segurança da infanta, a mãe é enviada ao Recife, para permanecer em companhia do pai e a criança continuou mantida sob a sigilosa proteção da bisavó. Para não chamar atenção, Cecília foi criada com discrição no sítio Melancias, propriedade de antigos amigos de Fideralina, e para a família espalhou-se a história de que a criança havia morrido no parto, deixando assim Ildefonso sem descendência viva.

                   Fideralina era conhecida como mulher sisuda, que não ria nem demonstrava simpatia ou carisma em público. Mandava através da força do seu prestígio, garantido sempre através do poder do bacamarte. Viveu numa época em que os políticos não precisavam de votos, pois os tinham garantidos e contados nos seus currais eleitorais. Com a pequena Cecília, no entanto, a velha se tornava irreconhecível. Mesmo com as limitações de sua idade, já então avançada, agachava-se para apanhar a criança, fazia caras, falava com ternura e sempre a enchia de mimos e doces. Regularmente, convidava a menina a lha visitar em seus domínios, no Sítio Tatu, epicentro do infinito universo do poder familiar. Os cuidados da velha para com aquela criança aparentemente alheia aos interesses da família punham a muitos dos parentes que cercavam a matriarca cheios de ciúmes, pois lhes parecia inútil e sem razão aqueles desdobros sobre uma criança indiferente aos destinos do poder. A criança fora batizada e registrada no assento civil com o nome de família de seus genitores, mas isso permaneceu em sigilosa reserva. Era assim conhecida como Cecília Batista, agnome de seus cuidadores, a quem até a juventude reconheceu sempre como seus pais.

                   Foi pouco antes de a velha matrona ser acometida do mal que lhe aniquilaria a vida, a nova peste da gripe espanhola, que ainda teve tempo de cuidar dos destinos da bisneta. Vendo que já se punha em idade de puberdade, estando apta a casar e procriar, tomou as necessárias precauções para lhe ter uma conversa reservada e longa, onde com emoção lhe contou toda a verdade, revelando enfim que por detrás daquele zelo inconfesso que sempre lhe dedicara estava escondido o amor à família e à memória do neto barbaramente homicidado. Derramaram lágrimas e confessaram uma a outra o amor incondicional que as unia. Cuidou então Fideralina, quase como se estivesse a adivinhar seu fim próximo, de casar a bisneta com um primo legítimo, como era o costume da família, que assim fortalecia ainda mais o poder do clã. Embora sempre tivesse sido uma legítima Augusto, foi somente a partir do casamento que passou a ser socialmente chamada por Cecília Augusto, casado com Gustavo, neto do herdeiro político de Fideralina, também de nome Gustavo. Na família era comum o casamento dentro do sangue e a repetição de nomes, quase que como aconteceu com os Buendia, de Macondo.

                   E assim Cecília viveu longos anos. Feliz no casamento, discreta na vida social, sem revelar a ninguém sua verdadeira origem, senão a estreito círculo de absoluta confiança. Teve quatro filhos, mas a nenhum chamou de Ildefonso, tanto para não dar pistas de sua ascendência como também para não rememorar a tragédia de seus genitores. Por algumas vezes, em viagem ao Recife, esteve com a mãe, que permaneceu doce como seu nome, fiel e casta à memória do pai, embora sempre triste na medida em que jamais se desvencilhou das miseráveis lembranças que envolveram seu curto casamento de menos de um ano, ao termo do qual substituiu a alegria das núpcias pelo desterro da saudade sem fim. Dulce, contudo, desligou-se completamente das relações com a família do marido.

                   Até que a alcançou Cecília a idade de oitenta e três anos. Já era avó de doze netos e bisavó de outros quatro. Querida por todos, chegou saudável à terceira idade. Fora o trauma de seu nascimento, que embora conhecesse pelos relatos contados não guardava nenhuma lembrança, teve uma vida pacífica e feliz. Seus filhos foram bem educados e gozavam todos de prestígio social e dinheiro. Seu marido lhe foi fiel e zeloso. Mesmo assim, o tempo que a tudo transforma em provisório, corroeu o castelo de felicidade e perfeição que construíra durante décadas com esmero e inabalável fé. Em realidade, tudo continuou a ser como sempre, salvo sua memória, que por processo insondável passou a confundir as coisas, num misterioso processo de amalgamar os eventos, as pessoas e o tempo numa massa uniforme e indivisível. Até o instante em que, da sua perspectiva, todas as coisas eram ao mesmo tempo.

                   Para quem a via de fora, era uma lástima enxergar que a mulher altiva, de personalidade marcante, mas ao mesmo tempo meiga e solícita, que transformou o amor que recebera dos pais adotivos e da avó postiça (como chamavam Fideralina) em diligente cuidado à própria família, que com esmero e trabalho incansável transformou em exemplo de harmonia; naquela outra criatura decrépita, que não reconhecia mais nem aos seus, que não era mais capaz de realizar por si mesma as necessidades fisiológicas nem o asseio mínimo indispensável à boa saúde. Como era triste ver a mulher que com facilidade dava testemunho de fé, convicta nas razões superiores das coisas de Deus amesquinhada pelo esquecimento de si própria, mentecapta diante da maldade de qualquer estranho, que por isso necessitava de cuidados incessantes posto que, naquela condição, ela mesma punha em risco a si própria. Como era medonho ver a tristeza estampada nos olhos dos filhos e netos, pois perderam ainda em vida a conselheira e diretora de todas as coisas da família, senhora que sempre fora de todas as decisões, importantes ou mesquinhas. Como eram decepcionados os olhos do marido a perceber que se fora a companheira e cúmplice de uma vida inteira, pondo-se em seu lugar uma criança indefesa, mas desinteressante, na companhia de quem não mais sentia regozijo, mas sim desespero pela constatação de que por mais que aquela velha decrepita se assemelhasse a sua amada Cecília, nela não enxergava sequer uma longínqua sombra de sua enamorada desde a juventude. Aquela era uma criatura a quem se deveria cuidar por espírito cristão, mas que nada tinha da mulher, mãe e avó tão amada de todos.

                   Do lado de dentro da doente, no entanto, tudo era encantamento. Na medida em que ia vendo as coisas da família se acomodando e suas obrigações diminuindo, mais e mais foi se incorporando às práticas da fé. O tempo antes dedicado ao encaminhamento dos filhos, que, sob a rigorosa vigilância da mãe, precisaram estudar com afinco, construir carreiras pródigas, enamorar-se de boas moças, filhas de famílias equilibradas e capazes de se conduzirem como pilares das novas famílias a serem construídas, assim como ela própria fora tudo isso a seu marido e filhos; foi compreendendo e se preparando para a vida espiritual. Pouco a pouco as suas orações a conduziram ao desvelamento da realidade espiritual, fazendo-a, enfim, compreender ser esta a única realidade de fato.

                   Deus é o eterno presente. Nele se encontram todos os tempos, todos os lugares, todas as coisas. São as limitações humanas que impõe a percepção do continuar do tempo e da expansão do espaço. Mas na Mente do Criador, Tudo significa todas as coisas no mesmo instante A física já provou a inexistência efetiva nem do tempo nem do espaço. Desde a antiguidade pré-histórica do Egito Hermes Trimegisto já pontificara que Tudo está em Deus e que, por isso, a realidade tal qual a compreendemos, é mental, não uma efetividade. Os místicos quando iluminam sua compreensão da Grande Obra sentem a necessidade de se desligar das coisas da matéria, porque não há mais sentido na compreensão fragmentada da realidade própria da mente humana.

                   E, para os que não se elevaram no plano da Criação, tudo isso parecerá perigosa loucura.

                   Em um famoso romance de Hermann Hesse, o Jogo das Contas de Vidro, há um sensível personagem, um sábio professor de música, quem dedicou toda a sua existência à compreensão da harmonia dos acordes e à prática do bem irrestrito. Ao final de longas décadas de atividade, foi se alheando de toda a realidade, se pondo num estado de êxtase perpétuo, estando sempre calmo, num incessante sorriso, aparentando não conhecer os que lhe rodeavam e totalmente indiferente a todas as sensações físicas. Embora gozasse da perfeita saúde de seus órgãos, não se comunicava com os próximos, embora deixasse transparecer seu profundo contentamento com tudo a seu redor. Se integrou a tal ponto à Inteligência de Deus, que também para o personagem inexistia o tempo e o espaço.

                   Eram assim os que se iluminavam.

                   Embora ninguém da família se tivesse apercebido, tal foi o que aconteceu a Cecília. Imiscuiu-se a tal ponto na infinitude de Deus que traspassou a segmentação das coisas, do tempo e do espaço por partes. Tudo, como o Criador, passou a ser unívoco, sem quaisquer divisões. Ainda no início do processo imaginou quanto seria tormentoso a um ser humano caso gozasse da onisciência do Todo. Como seria insuportável saber e sentir todas as dores de todas as mortes e de todos os sofrimentos e malogros universais. Como seria inumana a capacidade de viver todas as dores de todas as mães que perderam os filhos, de todas as esposas que não tinham mais maridos, de todos os amantes abandonados com crueldade, de todos os órfãos famintos... Se não temos condições tantas vezes de suportar os míseros sofrimentos de uma única existência, que dizer então de todas elas cumuladas ao longa das eras e em todos os lugares? Teve um vislumbre, assim, da dolorosa angústia de Jesus, no seu diálogo com o Pai, narrada por José Saramago na sua obra ficcional O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

                   Com o aprofundamento desse estado místico, no entanto, tudo foi se reunindo, deixando clara a realidade unívoca que de fato existe por detrás das limitações do intelecto humano. Descobriu curiosamente que Deus não é cartesiano, razão pela qual não divide as coisas no máximo de fragmentos possíveis e nem busca explicá-las por partes. Há uma só, indivisível e única realidade. E foi assim que ela também passou a compreender o mundo.

                   Não havia mais as diferentes épocas da vida. Um tempo em que foi criança, outro adolescente e um terceiro adulta. Não tinha mais a época de solteira, de jovem casada, de mãe inexperiente e de avó zelosa. Os filhos não tinham mais diferentes idades e tempos distintos. Eram ao mesmo tempo as crianças turronas, os adolescentes apaixonados, os pais nervosos e os maridos ciumentos. Fideralina não era mais aquela lembrança distante da mocidade quase esquecida. Convivia agora sem nenhum estranhamento com os filhos, netos e bisnetos. Todos num único tempo e no mesmo espaço.

                   Aquilo que a família lastimava como uma doença terrível, Cecília vivia como um glorioso êxtase, pois somente nesse grau de compreensão desapareceram as dores das mortes, a separação dos queridos, as saudades dos tempos idos. Tudo era presente e imutável.

                   Mãe Didinha! Minha amada Fideralina, dizia ela diante da incompreensão dos ouvintes, cuidado com esse querido capeta do Gustavinho, ele ainda lhe põe a perder. Ele é criança, mas também é pai de dois lindos filhinhos. Se parecem com os da família. É uma criança tão estudiosa, mas também um homem tão trabalhador. Sempre fiel à família. Veja quem chega! É o papá. Vem em companhia de Papai Gustavo, que é seu tio e avô do meu marido Gustavo. Veja que confusão essa de ser parente dos dois lados na família. Só você mesma, Mãe Didinha, para aprontar dessas... Papá está feliz, repare, porque quando se lembra do seu amor por mamã se põe em regozijo. Bem sei que mamã não é mais uma mulher triste. Ainda hoje papá estará com ela e não precisam se separar. Nunca se separaram, aliás. Mas, e o Francisco Augusto? Francisquinho... será que já casou? Será que é formado? Já haverá arrumado emprego? Vês como é linda a família dele! Que mulher amorosa que tem. Ele também casou com a prima, vejam só! Como é bom ver tanta gente reunida. Hoje estão todos aqui. Os antigos e os novos, sem faltar ninguém. Como é bom ver todos juntos, como no final sempre estiveram. Que alegria... Que beleza é enxergar as coisas como de verdade são...

 

Jorge Emicles