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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

 



REALISMO JURÍDICO A BRASILEIRA

 

                        Primeiro, foi o ridículo espetáculo de assistir em rede nacional uma senadora inicialmente e depois um ror de parlamentares federais fazerem perguntas, entonação e gestos inquisidores, mais condenando liminarmente que dispostos a apurar qualquer verdade e por talvez centenas de vezes receber a resposta protocolar, incialmente lida, mas depois de algumas dezenas de réplicas dita de memória. De acordo com a ordem de habeas corpus parcialmente concedida e segundo a orientação de minha defesa técnica me reservo o direito de ficar calado. Foi esse o enredo melodramático do espaço do que é público da nossa república brasilis, versão Comissão Parlamentar Mista dos Atos Golpistas (CPMI do oito de janeiro). Meses depois, veio a bombástica notícia de que aquele mesmo sujeito taciturno havia realizado uma delação premiada, estando agora sujeito ao compromisso irrecusável da verdade, ao dever de produzir provas contra si mesmo e ao compromisso de colaborar com as investigações.

                        Talvez, diante do calor às vezes ensandecido das manchetes de jornal, nem precisássemos advertir sobre os nomes que envolvem o rumoroso caso, mas, via de dúvidas, deixaremos registrado para a posteridade se tratar aqui da inicial resistência a falar e, em seguida o colaboracionismo delator do ex-ajudante de ordens do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Pelos benefícios prometidos na decisão que homologou a delação, as verdades desveladas contra o chefe da quadrilha devem ser de arrepiar. A conferir.

                        À parte a veracidade da acusação, é de se indagar os motivos e a estrita legalidade dela, pois, no pano de fundo de todo esse tumultuado processo encontramos uma suprema corte estrategicamente empoderada através de uma interpretação do direito nem sempre clara e republicana. Na prática, temos um juiz prevento para todas as acusações; que conduz com mãos de ferro os trabalhos de investigação, dirigindo-os propriamente, ao mesmo tempo em que direciona os termos da denúncia a ser formulada, que presidirá o processo respectivo e, na qualidade de relator, proferirá o voto condutor do veredicto, que diferente da farsa acadêmica da neutralidade e alheamento dos juízes, será fruto de conversas prévias e reservadas nos gabinetes do tribunal. E não estamos nos referindo ao ex-juiz Sérgio Moro, veja bem.

                        No mínimo, todo esse imbróglio está a exigir um debate acadêmico mais adequado e profundo a respeito da aplicação ao caso de princípios comezinhos do direito brasileiro, tais quais o do juiz natural (que garante ao cidadão que somente poderá vir a ser julgado pelo órgão da jurisdição previamente estabelecido pelas regras de competência), o da imparcialidade do julgador (que garante que aquele que participou de outras atividades do processo, como a prévia investigação ou a acusação e defesa estará impedido de participar como julgador do mesmo processo), o da inércia da jurisdição (que diz que os juízes somente poderão agir mediante prévia provocação), o da titularidade da ação penal (que concede com exclusividade ao ministério público o poder de acusar pessoas de crimes) e, como pano de fundo a tudo isso, o do devido processo legal substantivo (que garante que o exercício da defesa deve ser efetivo, não meramente formal).

                        Nos estudos acadêmicos de hermenêutica jurídica encontramos uma escola de interpretação chamada por realismo jurídico, que dizia, sumariamente, que o direito é apenas o que foi decidido pelo juiz e, por consequência, não há direito nas leis, nos estudos científicos pertinentes à ciência jurídica nem nos valores afirmados e reproduzidos pela sociedade humana. Não importa o tamanho da barbaridade que se decida, sempre será chamado por direito aquilo que afirmem os tribunais. Imagine então, para ilustrar, que um juiz tenha declarado em uma sentença que uma parede de cor branca, na verdade é preta e que essa decisão tenha transitado em julgado (ou seja, dela não seja mais possível interpor nenhum recurso). A justiça formou uma verdade tecnicamente irrefutável de que essa tal parede agora era negra, mas, de fato, alguém, mirando o clarão radiante refletido pela luz vindo da parede ousará dizer que ela não é branca?

                        São dessa qualidade as armadilhas perigosas que as interpretações da suprema corte brasileiro vem construindo ao longo já de várias décadas. E é por causa delas, por exemplo, que se vem constrangendo a dizer que não era o que havia afirmado pouco antes. Veja: depois de vários pronunciamentos no sentido de que Sérgio Moro era o juiz natural para conhecer da acusação contra Lula (relativa a um prédio localizado em São Paulo [sendo Moro juiz no Paraná] sem nenhuma relação direta com qualquer obra ou outro contrato da Petrobrás [que por sua vez tem sede no Rio de Janeiro]), teve que dizer o contrário, acrescentando ainda que se tratava de juiz suspeito. Diga-se, teses já levantadas pela defesa desde seus primeiros pronunciamentos no processo. E por aí vão as decisões criacionistas do supremo tribunal brasileiro, tantas vezes tomadas em contrafação a legados históricos e consolidados firmados através de décadas, às vezes séculos de estudos jurídicos. Será mesmo que é assim que se deve construir o direito? Desde a filosofia de Heidegger podemos afirmar que não existe verdade sem uma tradição que a ampare e fundamente. E poderá haver direito, então?

                        Para muito além da questão pertinente à propriedade das famosas joias regaladas pelos árabes ao ex-presidente; às tramoias dos cartões de vacina e até mesmo aos atos preparatórios e executórios da tentativa de golpe, tudo entaramelado na sórdida manipulação das mídias sociais através das fake news, há uma questão ainda mais relevante, que diz respeito aos limites possíveis à atividade jurisdicional na pós-modernidade, que no Brasil ganha cores terrificantes. É preciso que vozes se levantem na sociedade; é necessário que a academia nacional debate com seriedade o assunto, pois a pena que a história cobrará pela omissão da sociedade será bem cara, se não já o está sendo.

 

Jorge Emicles

 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

 

O SÍRIO E A CORONELA








Em homenagem a Jorge Dummar Pinheiro

 

                            Desde garoto ainda, sua compleição física chamava a atenção de todos, mas especialmente das mulheres. Era alto, cabelos pretos bem escuros, rosto afilado e proporcional, mas, sobretudo, eram os seus olhos azuis, da cor do céu, quase transparentes o que mais se destacava na figura esbelta, máscula e atraente. Tudo isso era patrimônio natural da herança materna, de uma imigrante síria fugida da guerra e desembarcada no porto de Fortaleza ainda bem jovem. Também de beleza incomum, Adélia Dummar logo atraiu a atenção e cativou o amor de um filho de senhor de engenho do Cariri, com quem casou e teve cinco filhos. Jorge Dummar, o tão bem afamado e garboso entre as mulheres, era o terceiro rebento dessa união.

                            Jorge nunca se fazia de rogado quando percebia as facilidades e os favores ilícitos que sua beleza poderiam lhe regalar. Diziam, por exemplo, à boca miúda, que quando o jovem ia à boate de Glorinha, mais conhecida como cabaré mesmo, as funcionárias da casa digladiavam-se para serem a precursora no atendimento àquele cliente tão cobiçado e, não poucas vezes, ficavam tão extasiadas após a consumação de seu ofício que sequer cobravam por ele, dizendo que, se fossem justas, elas é que deveriam fazer a paga.

                            Era cobiçado com igual fervor também pelas jovens donzelas da elite local, que sempre passavam mais lentamente por ele que pelos demais frequentadores da praça Siqueira Campos, em Crato, num ritual de acasalamento bem próprio dessa comuna do Cariri do Ceará. O costume consistia na prática de que os homens, necessariamente os solteiros, sentavam-se em grupos nos bancos da praça enquanto as damas, nos seus melhores trajes circulavam a praça. Daí é que surgiam as paqueras, depois os bilhetes apaixonados e, enfim, o pedido formal de namoro, noivado e casamento ao pai da afortunada.

                            Jorge, na condição de semideus sírio da localidade poderia escolher quem daquelas jovens, belas e ricas moças quisesse para se casar. Na verdade, quase todas, porque entre as frequentadoras da praça Siqueira Campos havia uma que especialmente não lhe dava nenhuma atenção, passava durante o ritual de paqueras quase que o desprezando. Foi exatamente por isso que aquela moça, a única que lhe parecia impossível entre todas, foi por quem Jorge se apaixonou loucamente, perdendo totalmente o interesse por todas as outras.

                            Em suas incursões de desesperado amor, descobriu preocupado que a moça se tratava de uma neta da famigerada Fideralina Augusto, que fora chefe política da vizinha Lavras e de cuja fama de valente e intolerante não tivera fim nem mesmo após sua morte. A fama de valentões agora era extensiva a toda a família Augusto. Como o amor, por costume, desafia principalmente o impossível, nem as notícias horríveis referentes ao destino dos mancebos que tentaram desfortunar o bom nome das moças da família, às vezes até mesmo quando se prestavam a reparar o erro através do casamento, demoveu o enamorado de seu propósito. O moço não arredou pé de sua intenção de conhecer e se casar com a moça. Primeiro lhe enviou destemidas cartas de amor, mesmo diante da hipótese quase certa de ser descoberto, inclusive pela denúncia da própria moça, que bem poderia não corresponder às investidas.

                            Quis o destino, entretanto, que a moça de enamorasse do mancebo. Ao final, a harmoniosa figura daquele jovem, somado às belas palavras escritas nas missivas, que na verdade eram de autoria do irmão mais jovem de Jorge, surtiram o efeito desejado e eis que a bela, casta e séria Risalva respondeu dizendo que aceitava o pedido de namoro, desde que tudo fosse feito da maneira correta e oficial, a começar pela autorização e benção paterna.

                            Assim, em menos de um ano, os jovens noivaram e casaram-se. Como uma espécie de dote, costume fora de uso àquela época, o pai da noiva delegou ao novo genro a missão de assumir a administração do Sítio Tatu, que havia sido a sede do mandonismo da velha Fideralina e que, por conta de uma guerra de família acontecida alguns anos antes, estava abandonada. Aceita a missão, lá se foi o destemido Jorge retomar a posse dos Augustos sobre o casarão da matriarca, com os açudes, capela e vasta extensão de terras.

                            Logo no primeiro dia se apresentou aos moradores do sítio, divulgou-lhes os planos gerais de sua administração, dizendo quais os trabalhos seriam prioritários e quais os programados para as semanas seguintes e logo foi se alojar na antiga casa da matriarca. Era um típico casarão de sede de fazenda, alpendrado, com cômodos amplos e pé direito altíssimo. Arrumou uma velha moradora do sítio para lhe servir de cozinheira, quem aceitou o encargo sob a condição de que não queria dormir no local. Prometia chegar bem cedo, antes da chegada do sol e sair a hora da noite que fosse necessária, mas sob nenhum pretexto se permitiria dormir naquela velha casa. Sem entender bem o porquê, aceitou a proposta.

                            Por isso, naquela primeira noite, após se aproveitar de uma bem servida refeição, se viu já nas primeiras horas da noite sozinho na casa. Como estranhamente os moradores vizinhos não lhe vieram ter um dedo de prosa à noite, como era o costume dos vizinhos no sertão, resolveu que iria dormir cedo. Armou sua rede exatamente onde fora o quarto da matriarca da família e sem receios nem assombros, dormiu sono profundo e terno. Lhe pareceu que sonhava sonhos bons, talvez relacionados aos trabalhos que havia dirigido durante o dia e também aos que deveria desenvolver nos dias seguintes, de maneira que estava contente com seu feito, especialmente porque achava que iria cair em bom crédito junto ao sogro.

                            Até que, de repente, se acordou com uma série violenta de sacudidas em sua rede. Eram supostamente causadas não pelas mãos delicadas e frágeis de uma mulher, mas revelavam a força, talvez, de mais que um homem forte. Todas as luzes da casa estavam apagadas, por isso era de se esperar um breu total, especialmente naquela noite sem lua, mas o fato é que quando o jovem abriu os olhos, assustado pelas sacudidas, se deparou com um vulto luminoso, quase branco, que certamente era a causa de tudo aquilo. Ficou paralisado não sabe bem por quanto tempo. Mas tão logo conseguiu ter um mínimo controle sobre os movimentos, não titubeou um segundo, se pondo de pé em um pulo e correndo em direção à saída da casa.

                            A aurora o flagrou acocorado no terreiro da casa, aparentemente calmo, mas no fundo profundamente assustado, sem entender o que houvera. A velha governante estranhou ver o jovem patrão tão cedo já fora de casa, especialmente porque o viu despenteado e com cara de assustado. Jorge não negou o que lhe havia acontecido e, a partir de seu relato, cada morador do sítio acrescentou sua observação especial ao episódio, mesmo não o tendo presenciado.

                            Assim, até hoje, os visitantes do velho casarão, hoje outra vez abandonado pela família, contam que as noites ali são povoadas pelo espírito da própria Fideralina, sempre pronta a defender a posse sobre o lugar, mas também pelos escravos e cabras que a velha homicidara na sua insana luta pelo poder, como fizeram, afinal, todos os coronéis de seu tempo. Contam que se pode ouvir os gritos das torturas, o som dos ossos quebrados pelas pancadas dos torturadores e dos crâneos espocados pelas balas. Dizem também que no centro da construção há um cubículo, cujo único acesso é através do quarto da matriarca e que era lá onde aconteceram todos esses episódios.

 

Jorge Emicles