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domingo, 1 de fevereiro de 2015


NUM LONGÍNQUO ANO DO PASSADO - CONTO

                   Aconteceu no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1983 que aquele garboso capitão do exército brasileiro, em plena forma física e psicológica; que já àquele quase esquecido tempo já se glorificava da boa forma física, dos bons hábitos alimentares e do rigoroso programa de educação física ao qual se submetia. Embora pertencesse ao glorioso exército, cuidava de algo a mais que da forma física e dos assuntos políticos que emprenhavam os quarteis naqueles idos. Gostava de ler e foi nessas empreitadas quase clandestinas pelo universo literário, das quais fazia questão de não dar contas a seus companheiros de farda, fossem os subordinados, fossem os superiores, que descobriu a idílica visão grega a respeito de saúde e por onde se deparou com o inusual conceito de dieta, que seria mais que a prescrição de certos hábitos alimentares, mas também de exercícios do corpo e da mente. Era para manter a higidez mental que lia assim como era para manter a saúde física que se exercitava.
                   Diariamente vinha à praia praticar no já então movimentado calçadão da praia de Boa Viagem sua cota diária de exercícios, momento que aproveitava para deleitar-se dos mínimos trajes das frequentadoras do local e até mesmo tentar construir novas amizades. Sempre que cruzava com alguém que lhe parecesse interessante incontinente puxava conversa, querendo saber onde morava, com que frequência visitava aquele lugar e impreterivelmente tentava impressionar sua interlocutora com seus conceitos a respeito da saúde e do bem estar. Isso, num tempo em que o conceito de beleza sediado na boa forma física começava a entrar em moda sempre chamava a atenção das mulheres, ávidas incansavelmente pelo atingimento da beleza perfeita.
                   Só depois de cultivar seu ego, voltava para seu simpático apartamento na orla para treinar um pouco suas capacidades mentais. Fazia a higiene, comia adequadamente e se dedicava pelo menos por duas horas aos livros que tanto o impressionavam. Desde as valiosas lições que aprendera na caserna, era extremamente rígido na seleção de suas leituras, excluindo de sua meticulosa lista todos os autores que manifestassem a mínima que fosse das ideias comunistas. Esse método o privou na verdade de muitas leituras essenciais na visão de mundo moderna. Jamais leu Kundera, Foucault, Zola e mesmo autores nacionais como Amado. Preferia as obras clássicas, de um tempo em que o comunismo não havia sido inventado pelo caquético Marx. Ah, como odiava os comunistas e seus terríveis feitos, que obrigaram os milicos brasileiros a saírem de seus confortáveis postos de comando para pôr ordem nessa desgraçada nação, obrigando-os ainda a reagir com violência diante dos nefastos atos terroristas praticados depois da gloriosa revolução de março de 1964.
                   Acompanhava com interesse o desdobramento das perigosas ideias de redemocratização que enuviavam toda a nação. Que perigo seria se o Brasil fosse irresponsavelmente entregue àquele bando de barbudos comunas de ideais deslocadas e quase suicidas, muitos dos quais já haviam aparecido na televisão, um ano antes daqueles dias, na campanha para governador dos Estados. Compreendia que tudo aquilo fora uma permissão indesejável feita pelo comando da nação, que porém logo, logo retrocederia. Os militares no poder eram o verdadeiro sinônimo de ordem e progresso, símbolo último da nossa pátria. Os ideais positivistas não seriam derrotados pelas anárquicas ideias dos subversivos. Logo, acreditava que as coisas retornariam a ser como antes, sem eleições e sem badernas nas ruas. Piamente acreditava que aquele era somente um mau momento, um instante de fraqueza do comando militar e nada além.
                   Por isso era melhor cuidar do que lhe parecia serem os verdadeiros problemas, que seriam suas conquistas amorosas. Como se poupara da leitura das obras que o poriam a par dos intricados movimentos da  dialética, não compreendia que a história é um caminhar para a frente; que nesse processo não existem retrocessos; nem muito menos que as concessões do governo eram consequência de sua falta de força e não de equívocos. As engrenagens da história já haviam sido postas em movimento e agora era absolutamente impossível a qualquer que fosse barra-la. Seria para ele um absurdo completo imaginar que aquele repugnante barbudo que comandara uma série de greves em São Paulo alguns anos antes; que para ele merecia ser amansado ao velho estilo do pau de arara, ainda seria eleito, aclamado e reconhecido como o Presidente do Brasil. Para ele, felizmente as coisas aconteceram aos poucos, mudando paulatinamente ano a ano, de maneira que pôde com o tempo se acostumar, ou talvez apenas aceitar com reservas aquela esdrúxula ideia de ver as forças armadas batendo continência a um pueril operário, que nem formação superior possuía. A qualquer interlocutor que acaso o abordasse naquele esquecido ano de 1983, diria com absoluta veemência e convicção que seria impossível algo como aquilo vir a acontecer no Brasil em qualquer tempo que fosse. Sobretudo, porque confiava na competência das elites nacionais.
                   Então melhor mesmo seria se dedicar às mulheres, cada vez mais belas na exata medida em que melhor se dedicavam ao cuidado com o corpo, mais desenvoltas se tornavam nas práticas sexuais, havendo abandonado definitivamente o tabu da virgindade. Foi das suculências da carne do que tratou em todos os anos seguintes, conhecendo mais e mais mulheres que cada vez se tornavam mais libertinas, selvagens e animalescas. A carreira era algo burocrático, do que precisava cuidar apenas como meio de subsistência. Mal percebeu as profundas mudanças que se deram nas casernas. Aos poucos foram sendo evitadas as conversas a respeito de política, os milicos cada vez mais foram se excluindo da vida nacional até que compreendeu que havia mesmo era uma espécie de vergonha em pertencer às forças armadas. Os civis no poder traíram a confiança dos salvadores da pátria e então a memória da revolução que salvou o país dos comunistas foi sendo substituída pela dos torturadores que usurparam o poder; que mataram friamente parlamentares, jornalistas e cidadãos comuns. Indenizações foram pagas às vítimas que antes eram o terrível e subversivo inimigo, até que resolveram falar de uma tal comissão da verdade, que cuidou de denigrir ainda mais a imagem dos que no ano de 1983 eram a síntese do poder, do desenvolvimento e da ordem nacional.
                   Ainda naquele tempo gostava de sair na rua de farda mesmo quando não estava de serviço, exibindo seu orgulho de pertencer ao que lhe pareciam ser a mais inevitável das verdades: somente a ordem das casernas; apenas o poder organizado e hierarquizado poderia conduzir ao verdadeiro progresso. Coisa atingível apenas pela organização militar. Mais de trinta anos passados, já com poucos cabelos pousados sobre o couro cabeludo, quase todos alvejados pela idade; novamente passeando pelo calçadão da mesma praia, mas agora bem diferente não somente pelas seguidas reformas que ali fizeram sucessivos governos civis, como também pelo preocupante avanço do oceano Atlântico sobre a orla local; ali, naquele mesmo lugar onde antes desejou todas as mulheres formosas que lhe cruzassem; onde de tantas delas lhes fez suas amantes, já não tinha mais orgulho algum da farda que ostentou, porque o tempo lhe corroera o viço da juventude; os músculos típicos da boa forma que apresentava, mas também a própria juventude se fora. As mulheres já não olhavam com interesse para ele, muito embora fossem ainda mais bonitas que naquele longínquo tempo que lhe voltara à memória nesse dia do presente.
                   Somente agora, já vencido pelos anos; já alcançado pela velhice; já desiludido pelas quimeras se dera conta de que todas as decisões que tomou foram erradas; o conduziram à solidão tormentosa do presente; o relegaram ao esquecimento, mas ao pior deles, que é o esquecimento ainda em vida. Bem poderia ter se valido da viçosa juventude; da invejável forma física para se permitir relacionar de verdade com uma mulher, qualquer delas das talvez centenas que conhecera, fazendo-a de sua companheira e quiçá cuidadora e amiga da velhice. Poderia ter se permitido ler livros outros, que tratassem de ideias diversas das que estreitamente se permitia estudar, e quem sabe assim seria capaz de entender algo desse inóspito mundo que à sua revelia lhe chegara ao presente; um mundo estranho e temeroso, onde a sexualidade é livre, onde a censura não existe e no qual a velhice não é premiada como reconhecimento da sabedoria e do respeito dos mais jovens; onde a sua condição de idoso era somente um fardo, sem qualquer bônus que o acompanhe. Poderia ainda ter respeitado o diferente e o novo, antevendo que os oprimidos do presente serão os poderosos do futuro, e talvez assim pudesse ver beleza e esperança em todas as coisas da política moderna.
                   Porém, fizera as escolhas erradas e por isso somente as únicas coisas que lhe restavam eram a saudade do passado e a desesperança do presente. A morte chega a ser um prêmio almejado face um estado d’alma de tamanho desalento...


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto