NUM LONGÍNQUO ANO DO PASSADO - CONTO
Aconteceu no ano do nascimento de Nosso Senhor
Jesus Cristo de 1983 que aquele garboso capitão do exército brasileiro, em
plena forma física e psicológica; que já àquele quase esquecido tempo já se
glorificava da boa forma física, dos bons hábitos alimentares e do rigoroso
programa de educação física ao qual se submetia. Embora pertencesse ao glorioso
exército, cuidava de algo a mais que da forma física e dos assuntos políticos
que emprenhavam os quarteis naqueles idos. Gostava de ler e foi nessas empreitadas
quase clandestinas pelo universo literário, das quais fazia questão de não dar
contas a seus companheiros de farda, fossem os subordinados, fossem os
superiores, que descobriu a idílica visão grega a respeito de saúde e por onde
se deparou com o inusual conceito de dieta, que seria mais que a prescrição de
certos hábitos alimentares, mas também de exercícios do corpo e da mente. Era
para manter a higidez mental que lia assim como era para manter a saúde física
que se exercitava.
Diariamente vinha à praia praticar no já então
movimentado calçadão da praia de Boa Viagem sua cota diária de exercícios, momento
que aproveitava para deleitar-se dos mínimos trajes das frequentadoras do local
e até mesmo tentar construir novas amizades. Sempre que cruzava com alguém que
lhe parecesse interessante incontinente puxava conversa, querendo saber onde
morava, com que frequência visitava aquele lugar e impreterivelmente tentava
impressionar sua interlocutora com seus conceitos a respeito da saúde e do bem estar.
Isso, num tempo em que o conceito de beleza sediado na boa forma física
começava a entrar em moda sempre chamava a atenção das mulheres, ávidas
incansavelmente pelo atingimento da beleza perfeita.
Só depois de cultivar seu ego, voltava para seu
simpático apartamento na orla para treinar um pouco suas capacidades mentais.
Fazia a higiene, comia adequadamente e se dedicava pelo menos por duas horas
aos livros que tanto o impressionavam. Desde as valiosas lições que aprendera
na caserna, era extremamente rígido na seleção de suas leituras, excluindo de
sua meticulosa lista todos os autores que manifestassem a mínima que fosse das
ideias comunistas. Esse método o privou na verdade de muitas leituras
essenciais na visão de mundo moderna. Jamais leu Kundera, Foucault, Zola e
mesmo autores nacionais como Amado. Preferia as obras clássicas, de um tempo em
que o comunismo não havia sido inventado pelo caquético Marx. Ah, como odiava
os comunistas e seus terríveis feitos, que obrigaram os milicos brasileiros a
saírem de seus confortáveis postos de comando para pôr ordem nessa desgraçada
nação, obrigando-os ainda a reagir com violência diante dos nefastos atos
terroristas praticados depois da gloriosa revolução de março de 1964.
Acompanhava com interesse o desdobramento das
perigosas ideias de redemocratização que enuviavam toda a nação. Que perigo
seria se o Brasil fosse irresponsavelmente entregue àquele bando de barbudos
comunas de ideais deslocadas e quase suicidas, muitos dos quais já haviam
aparecido na televisão, um ano antes daqueles dias, na campanha para governador
dos Estados. Compreendia que tudo aquilo fora uma permissão indesejável feita
pelo comando da nação, que porém logo, logo retrocederia. Os militares no poder
eram o verdadeiro sinônimo de ordem e progresso, símbolo último da nossa
pátria. Os ideais positivistas não seriam derrotados pelas anárquicas ideias
dos subversivos. Logo, acreditava que as coisas retornariam a ser como antes,
sem eleições e sem badernas nas ruas. Piamente acreditava que aquele era
somente um mau momento, um instante de fraqueza do comando militar e nada além.
Por isso era melhor cuidar do que lhe parecia
serem os verdadeiros problemas, que seriam suas conquistas amorosas. Como se
poupara da leitura das obras que o poriam a par dos intricados movimentos
da dialética, não compreendia que a
história é um caminhar para a frente; que nesse processo não existem
retrocessos; nem muito menos que as concessões do governo eram consequência de
sua falta de força e não de equívocos. As engrenagens da história já haviam
sido postas em movimento e agora era absolutamente impossível a qualquer que fosse
barra-la. Seria para ele um absurdo completo imaginar que aquele repugnante
barbudo que comandara uma série de greves em São Paulo alguns anos antes; que
para ele merecia ser amansado ao velho estilo do pau de arara, ainda seria
eleito, aclamado e reconhecido como o Presidente do Brasil. Para ele, felizmente
as coisas aconteceram aos poucos, mudando paulatinamente ano a ano, de maneira
que pôde com o tempo se acostumar, ou talvez apenas aceitar com reservas aquela
esdrúxula ideia de ver as forças armadas batendo continência a um pueril
operário, que nem formação superior possuía. A qualquer interlocutor que acaso
o abordasse naquele esquecido ano de 1983, diria com absoluta veemência e
convicção que seria impossível algo como aquilo vir a acontecer no Brasil em
qualquer tempo que fosse. Sobretudo, porque confiava na competência das elites
nacionais.
Então melhor mesmo seria se dedicar às mulheres,
cada vez mais belas na exata medida em que melhor se dedicavam ao cuidado com o
corpo, mais desenvoltas se tornavam nas práticas sexuais, havendo abandonado definitivamente
o tabu da virgindade. Foi das suculências da carne do que tratou em todos os
anos seguintes, conhecendo mais e mais mulheres que cada vez se tornavam mais
libertinas, selvagens e animalescas. A carreira era algo burocrático, do que
precisava cuidar apenas como meio de subsistência. Mal percebeu as profundas
mudanças que se deram nas casernas. Aos poucos foram sendo evitadas as
conversas a respeito de política, os milicos cada vez mais foram se excluindo da
vida nacional até que compreendeu que havia mesmo era uma espécie de vergonha
em pertencer às forças armadas. Os civis no poder traíram a confiança dos
salvadores da pátria e então a memória da revolução que salvou o país dos
comunistas foi sendo substituída pela dos torturadores que usurparam o poder;
que mataram friamente parlamentares, jornalistas e cidadãos comuns.
Indenizações foram pagas às vítimas que antes eram o terrível e subversivo
inimigo, até que resolveram falar de uma tal comissão da verdade, que cuidou de
denigrir ainda mais a imagem dos que no ano de 1983 eram a síntese do poder, do
desenvolvimento e da ordem nacional.
Ainda naquele tempo gostava de sair na rua de
farda mesmo quando não estava de serviço, exibindo seu orgulho de pertencer ao
que lhe pareciam ser a mais inevitável das verdades: somente a ordem das
casernas; apenas o poder organizado e hierarquizado poderia conduzir ao
verdadeiro progresso. Coisa atingível apenas pela organização militar. Mais de
trinta anos passados, já com poucos cabelos pousados sobre o couro cabeludo,
quase todos alvejados pela idade; novamente passeando pelo calçadão da mesma
praia, mas agora bem diferente não somente pelas seguidas reformas que ali
fizeram sucessivos governos civis, como também pelo preocupante avanço do
oceano Atlântico sobre a orla local; ali, naquele mesmo lugar onde antes
desejou todas as mulheres formosas que lhe cruzassem; onde de tantas delas lhes
fez suas amantes, já não tinha mais orgulho algum da farda que ostentou, porque
o tempo lhe corroera o viço da juventude; os músculos típicos da boa forma que
apresentava, mas também a própria juventude se fora. As mulheres já não olhavam
com interesse para ele, muito embora fossem ainda mais bonitas que naquele
longínquo tempo que lhe voltara à memória nesse dia do presente.
Somente agora, já vencido pelos anos; já alcançado
pela velhice; já desiludido pelas quimeras se dera conta de que todas as
decisões que tomou foram erradas; o conduziram à solidão tormentosa do
presente; o relegaram ao esquecimento, mas ao pior deles, que é o esquecimento
ainda em vida. Bem poderia ter se valido da viçosa juventude; da invejável forma
física para se permitir relacionar de verdade com uma mulher, qualquer delas
das talvez centenas que conhecera, fazendo-a de sua companheira e quiçá cuidadora
e amiga da velhice. Poderia ter se permitido ler livros outros, que tratassem
de ideias diversas das que estreitamente se permitia estudar, e quem sabe assim
seria capaz de entender algo desse inóspito mundo que à sua revelia lhe chegara
ao presente; um mundo estranho e temeroso, onde a sexualidade é livre, onde a
censura não existe e no qual a velhice não é premiada como reconhecimento da
sabedoria e do respeito dos mais jovens; onde a sua condição de idoso era
somente um fardo, sem qualquer bônus que o acompanhe. Poderia ainda ter
respeitado o diferente e o novo, antevendo que os oprimidos do presente serão
os poderosos do futuro, e talvez assim pudesse ver beleza e esperança em todas
as coisas da política moderna.
Porém, fizera as escolhas erradas e por isso
somente as únicas coisas que lhe restavam eram a saudade do passado e a desesperança
do presente. A morte chega a ser um prêmio almejado face um estado d’alma de
tamanho desalento...
Jorge Emicles Pinheiro Paes
Barreto
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