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domingo, 9 de outubro de 2022

 



O BOM FASCISTA

 

                   Na antiga Roma, antes mesmo de se tornar o maior império de toda a história, por volta de quinhentos anos antes de Cristo, fundou-se a república, que literalmente significa o governo de todos (res, coisa; pública, de todos). Nesse tempo, o poder mesmo era exercido por um conjunto de magistrados, cujos maiores na hierarquia eram os cônsules. A cada ano a assembleia do povo elegia dois cônsules, outorgando a cada um deles um feixe de madeira, que simbolizava seu poder. A cada mês, um dos cônsules governava enquanto o outro fiscalizava o trabalho. Porém, em momentos de crise institucional, o cônsul que estivesse exercendo o poder poderia unir o seu feixe ao do outro, estabelecendo uma dictadura, que significava o poder total sobre todas as demais magistraturas. Essa ditatura, que deveria durar até o fim da crise que a justificara, deu origem à expressão fascismo, tão em moda nos dias contemporâneos.

                   Não há conceito universal para a expressão fascismo. Contudo, é comum relacioná-lo a governos autoritários e intolerantes com as minorias, associando-se sempre às trágicas experiências da Itália e da Alemanha na Segunda Grande Guerra. Assim, os melhores exemplos de fascismo se relacionam aos governos de Mussolini na Itália e de Hitler, na Alemanha. Porém, partindo-se desde as características gerais de governo ditatorial, centralizador e intolerante com pensamentos díspares, é irrecusável reconhecer essas mesas características a outros governos autoritários, como às claras nos aparece a ditadura de Stalin na extinta União Soviética. Com toda a vênia aos camaradas comunistas, damos razão a Hanna Arendt quando denuncia que tanto o fascismo clássico de Hitler e Mussolini, quanto a mortal ditadura de Stalin são repugnantes e destrutivas em iguais proporções. Os conceitos de direita e esquerda são relativos, variando ao longo do tempo, não sendo por isso absolutos para a aferição da definição de fascismo.

                   O Brasil já viveu ditaduras em diferentes épocas. Todas elas, nos parecem, são claramente fascistas. Assim, foi fascista o governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo, notadamente quando deflagrou ampla perseguição aos comunistas, cujo melhor símbolo foi a extradição de Olga Benário, judia alemã mandada impiedosamente, grávida, para morrer nos campos de concentração alemãs. Mas também vivemos o fascismo na ditadura militar iniciada em 1964 em que os generais passavam o feixe de poder de um para o outro. Nada seria mais autoritário, centralizador do poder e intolerante com as minorias que o famigerado Ato Institucional número 5, de história tão tenebrosa.

                   Também na época da Segunda Guerra Mundial, não devemos deslembrar a recepção glamorosa feita pelo Presidente Vargas ao genro do Duce (apelido popular de Mussolini), a campanha dos integralistas e a indisfarçável preferência da elite brasileira pelo ideário nazista da raça pura e superior. (Logo nós, filhos diletos da miscigenação das raças, advogando a superioridade da raça pura, por mais que estivéssemos amparados na firme doutrina do filósofo alemão Nietzsche).

                   Assim, como no restante do mundo, sempre houve uma importante parcela da população firmemente crédula dos benefícios de um governo autoritário, paladino da ordem e dos bons costumes, com firmeza suficiente para fazer uso de sua autoridade para impedir todas as deturpações de pensamentos e ações que sejam capazes de distorcer a reta doutrina do Cristo, morto na cruz para salvar toda a humanidade, sejam os bons, sejam os ímpios. Contudo, para os ímpios é preciso administrar a autoridade porque somente assim se lhes libertará das práticas nefastas e anticristãs tão próprias desses bárbaros.

                   A despeito de suas ideias talvez um tanto distorcidas sobre conceitos elementares na contemporaneidade, como os de democracia, liberdades de expressão, sexual e de credo e, notadamente, o necessário respeito às formas diferentes de interpretar o mundo, não são exatamente pessoas más. Se tratam de bons cristãos, que frequentam os cultos e a as missas aos domingos; são bons pais de família, pais e mães carinhosos que diligentemente acompanham os rebentos desde os primeiros passos até o grau universitário; tendem a pagar suas contas em dia e, em geral, fazem negócios honestos em pleno acordo com os costumes locais; auxiliam seus vizinhos quando em necessidade, curtem as fotografias fofas ou insinuantes que postam nas redes sociais, não esquecem de mandar os parabéns a nenhum aniversariante de seu ciclo; são obedientes aos chefes e tolerantes nas ordens que fazem emanar de seus postos de comando; praticam a caridade com esmero e não se acovardam na defesa das causas que lhes pareçam justas.

                   Andam pelas ruas cheias ou vazias das grandes e pequenas cidades, de cabeça erguida, postura em riste, mas sempre com um cândido sorriso a mostrar-lhes os dentes. Dão bons dias aos passantes, mesmo aos que identificam com avarias cognitivas e anticristãs, como os macumbeiros, espíritas, homossexuais ou comunistas, pois, a despeito de seus vícios morais enojantes, são sem dúvidas filhos do Deus único de Abraão e Isaac, dignos das corrigendas do purgatório, salvo, claro, os tenebrosos casos de condenação direta a qualquer dos círculos do inferno de Dante.

Jorge Emicles