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sábado, 10 de dezembro de 2016


CARTA DE UM BRASILEIRO

                   Desde quando o ufanismo nos habita? A partir de que instante, teríamos sido invadidos pelo sentimento de superioridade a propósito de todas as demais nações, nos fazendo crer servos de um povo altivo, soberano e independente? Será que a partir do ventre de nossas mães carnais já não seríamos embebidos do discurso patético do amor à pátria, do sentimento de unidade enquanto povo e de sacrifício em nome do Estado? Pelo menos, de tenra idade já nos ensina o hino nacional que “um filho teu não foge à luta/ nem teme, quem te adora, a própria morte”. E em nome desse profano sentimento nacionalista tantos dos nossos irmãos brasileiros já praticaram asneiras ignóbeis, heroísmos patéticos e barbáries cruéis... e tantos outros já encontraram a prematura morte nas inúteis lutas pelo poder. Mas assim também se passa com todos os povos, de todas as nações, de todos os rincões do planeta, que desde imemorável tempo inutilizam suas vidas e sacrificam suas mortes na defesa desse etéreo ser sem face, cheiro ou cores que nos acostumamos a chamar por Estado.
                   Jamais se contabilizaram os índios assassinados pelos colonizadores, nem os escravos torturados até a morte e nem os operários vítimas da violência dos insalubres locais de labor, nem muito menos os trabalhadores acometidos da mortandade bélica das centenas de favelas país afora. Quando não foi o Estado que praticou essas mortes, as autorizou ou pelo menos se insensibilizou por sua cúmplice omissão. Os sobreviventes desse genocídio quase perpétuo e tolerado, quando não perpetrado pela “idolatrada” pátria brasileira, ainda são coagidos a declarar-lhe incondicional amor. Se não são cooptados pelos símbolos nacionais e líderes políticos, fraquejam diante do hino cantado na abertura das partidas da copa do mundo, afinal, a mídia ensina que cada qual de nós é “brasileiro, com muito orgulho e muito amor”!
                   Mas, e quantos de nós já parou para refletir a sério a respeito de quem de fato seria esse poderoso Estado? Ou de que propriamente se trata esse monstro? Os juristas repetem a incansável versão de que tudo é fruto de um grande e harmonioso acordo, por onde uns se permitiram ser dominados por outros em busca da paz e liberdade geral, acordo esse chamado de contrato social. Os dominantes são representantes do povo, pois este voluntariamente se fez representar pela minoritária elite econômica e política, que governa em nome da felicidade geral de todos.
                   Para os historiadores e sociólogos mais sagazes, contudo, há algo torpe e ideologizante em toda essa malbaratada história. Por isso a verdade é que tudo é fruto de incessantes guerras, onde a elite dominante é composta pelos sucessores dos vencedores originais e todos os demais são os perdedores da carnificina gênese social. Não existiu o ingênuo homem primitivo do contrato social, que estabeleceu uma unanimidade original, mas o bárbaro, que através da guerra, dominou, estuprou e saqueou os dominados, o que continua a fazer por intermédio dos tentáculos invisíveis do Estado. O Estado é o pacificador dessa guerra originária, que substitui as armas pela política, que igualmente serve para manter a mesma equação de forças original: a elite mandando, o povo sendo dominado. Tudo através das sutis artimanhas do direito.
                   A pessoa etérea, chamada de Estado, que somos ensinados a amar, respeitar e doar nossas próprias vidas em seu favor, é na verdade uma complexa teia de relações interpessoais, por meio da qual se mantém e reproduz o modelo de dominação da minoria pela maioria. Essa teia de relações é bem mais poderosa, por sinal, que o puro domínio das armas, pois acima de tudo compreende as facetas da ideologia, mecanismo capaz de convencer que é natural a exploração e necessário o sacrifício da maioria; coisas que a força jamais seria capaz, convenha-se. Não se pode negar a genialidade oriunda da vida social humana. A propósito, há estudos complexos na seara da história e da sociologia, que desmistifica em detalhes essa evidência, como é o exemplo da referencial obra de Norbert Elias, sequenciada por dezenas de outros geniais pensadores.
                   Apesar de chocante, compreender o Estado como um elemento de dominação ajuda a entender a intricada realidade nacional. Não se trata, esclareçamos, propriamente de um domínio de certas pessoas, mas o fruto necessário da intricada rede de inter-relações existente entre todos os habitantes da sociedade (no mundo globalizado, poderíamos dizer, de todo o planeta, quase). As relações de poder, a legitimidade da representação, a ideia de democracia e a necessidade de instituições que personalizem o Estado são tudo isso fruto dessa teia.
                   O fato é que, por esse prisma se consegue enfim apreender que o Congresso Nacional, o Presidente da República e seu staff, e mesmo os juízes da Suprema Corte nacional não são, nem poderão ser, nem se pretenderam de fato a ser jamais os representantes da populaça, humilhada e derrotada pelo poder que detém desde as mais remotas origens da história. Representam para a nação posições que de fato não defendem e ao cabo somente pretendem manter os privilégios que desde sempre foram titulares.
                   É preciso moralizar o país, mas não à custa do fim dos supersalários do judiciário, e jamais proibindo as relações incestuosas existentes entre políticos e empresários (as teias de relações entre a elite política e econômica). É preciso dar combate à crise econômica não, contudo, cortando privilégios dessas minorias, mas reformando o sistema de previdência social e proibindo o aumento de investimentos naquilo que é tão necessário ao desenvolvimento dos mais pobres, como a saúde e a educação. É imprescindível enfrentar a violência urbana crescente, mas não dando emprego, educação e dignidade às favelas, mas aumentando o rigor da lei penal, ampliando a superlotação dos presídios e isolando os bolsões de violência dos pitorescos bairros de elite nas grandes cidades do país.
                   Todas essas coisas (no sentido técnico, políticas públicas aplicadas à nossa realidade nacional) bem mais que a maldade da elite, que se vale desses pretextos para reforçar os laços históricos de dominação, são atos do próprio Estado, que claramente aduz suas preferências a respeito de quem deverá ser sacrificado nos momentos de crise. E a isso todos devemos aceder docilmente, afinal é desde de bem jovens que somos repetidamente ensinados sobre a importância da soberania, a inquestionabilidade a respeito da santidade do Estado e a necessidade do sacrifício individual em defesa do interesse de todos.
                   Bibliotecas inteiras já foram escritas com esses ensinamentos. Amemos, então, sem qualquer pudor, a nossa pátria “mãe gentil”.


Jorge Emicles