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sexta-feira, 13 de março de 2015


FUTUROS PARALELOS

                   Aconteceu naquele dia, como poderia ter acontecido em qualquer dia pretérito ou futuro de sua existência. Mas foi naquele momento preciso que as condições cósmicas e pessoais se conjugaram fazendo surgir em sua frente, de desopino, sem qualquer aviso prévio, sem nenhum sinal de que seria naquele instante. Simplesmente, diante de si surgiu a encruzilhada quântica de dois futuros paralelos e antagônicos entre si.
                   De um lado a vida mansa e certa, perene de um cotidiano que de tão repetitivo pareceria uma verdadeira eternidade. Acordar cedo, com o sol ainda escondido pela antecedência da aurora, já iminente, correr à padaria, comprar quitutes, voltar para casa, preparar o café da manhã, iniciar o trabalho já mecânico pela repetição, parar para o almoço, dormir a rápida sesta, seguir para novo expediente de trabalho, retornar à casa, tomar o merecido banho, cear a merecida refeição e gozar do merecido descanso até a hora pontual da chegada do sono, para mais uma serena e brilhante noite de regozijados sonhos, para tudo exatamente igual repetir por anos e décadas seguidos, até que a justa e bondosa morte o alcançasse em sua já cansada monotonia. Aquele futuro seria apaziguante, calmo, sem desacertos e imprevistos, regalado por uma bela mulher e carinhosos filhos que o acompanhariam até a última hora, chorosos e firmemente segurando suas mãos, quando diriam que, mesmo pesadas as saudades, tudo teria valido à pena pela simples graça de tê-lo acompanhado na existência. Uma vida perfeita, apesar de passada no âmago das incertezas da matéria.
                   De outro lado um turbilhão de experiências e aprendizados, uma busca quase insana à procura do sentido da vida, da razão das coisas e dos motivos da existência. Uma nova vivência a cada instante de existência, a cumulação de conhecimentos e da matéria à cata do conteúdo último de todos os saberes, na esperança, na maioria das vezes tênue, de que tal saber seria a chave da verdadeira felicidade. Busca de tal quilate, verificou, não era para muitos, pois como tudo na vida há um preço para a ciência das coisas. O sofrimento, a dor, a incompreensão e por fim a solidão seriam o valor cobrado. Verificou o quanto é dorido buscar a verdade e que este caminho necessariamente conduz à injustiça e à incompreensão. Compreender que no mundo da matéria não há jamais estabilidade, que esta é uma pueril ilusão alimentada pelos tolos e que leva ao sentimento de solidão com relação ao mundo, que na verdade significa uma consciência do estado de solitude em que vivem todos os humanos. Ao termo dessa existência estaria sozinho, isolado e mal avaliado por seus pares, porém seria um sábio. Como seria cônscio de sua posição ante as coisas do mundo visível e invisível, na hora final de sua existência não se auto apiedaria nem alimentaria qualquer sentimento de arrependimento. A solidão mesma que se lhe apresentaria seria também relativa e ilusória pois se auspiciaria do auxílio de invisíveis mestres. Não teria, porém, em sua companhia aquela terna mulher e aqueles adorados filhos e por isso precisamente sua memória seria legada ao infinito esquecimento.
                   Sabia que teria pouco tempo para avaliar e escolher por quais dos portais iria enveredar, assim como que a decisão haveria de ser irretratável. Não mais teria aquela oportunidade na existência. Logo, apesar de apressada, sua decisão deveria ser muito bem pesada e medida. A estabilidade do primeiro futuro lhe agradava, porque é para livrar-nos dos sofrimentos que vivemos; é para o mesmo propósito que acumulamos ao longo da existência as experiências. O que elas em última instância nos instruem é para buscarmos sempre o caminho melhor pavimentado, mais largo, iluminado e reto, pois são nas íngremes curvas da caminhada; nas pedras que se espalham por seu percurso e nos descaminhos e obscuridades que aparecem onde encontramos o sofrimento. Gozar sem dores as excelências da existência significa uma vida perfeita e feliz.
                   A consciência das coisas é que produz a infelicidade. Compreender as injustiças do mundo, as dores que alimentam a alma, as limitações tanto da matéria quanto do caráter humano é a principal fonte da infelicidade. Saber que existe a fome, que há a enfermidade e que a fortuna de poucos é construída desde a sofreguidão de muitos extirpa qualquer esperança de um mundo harmonioso e feliz. Não basta construir a felicidade própria, egoísta, privada. O destino de uma alma deverá ser compartilhado por todos e a única forma de reparar esta ausência de equidade é através do conhecimento, pois é ele que adequadamente informa a respeito de o que há a reparar e do que se precisa construir.
                   A felicidade deve ser um sentimento coletivo, para ser plena e verdadeira. Tudo o mais é egoísmo ilusório e vão.
                   Mas na hora derradeira, caso viesse a enveredar pelo futuro da sabedoria, seria triste, fria e longa. Não teria aquele apalpar na sua mão, firme e amoroso; não existiria as lágrimas de saudades nem uma descendência a lhe homenagear a memória; não haveria o calor do amor fraterno e incondicional dos amigos. E isso, nas horas de desprazer da existência é mais valioso que a pedra filosofal ou o elixir da longa vida, busca perpétua de todos os sábios alquimistas de agora e de alhures. Uma felicidade privada, ensimesmada ou uma consciência solitária, triste e desiludida de que se é impotente diante da grandeza do Universo...
                   Se enveredasse pelo futuro de paz e regozijo, no tempo da doença que lhe encerraria a existência, além do afeto familiar, seria regado pela atenção de complacentes médicos, a alimentar sua esperança na cura e na longevidade. Se escolhesse o futuro da sabedoria, não teria fé nos médicos, pois seus conhecimentos o informariam do quanto é relativo seus saberes; que a doença é antes de tudo o reflexo do estado da alma, que interagindo com a matéria compromete os órgãos e sistemas do corpo humano; que cada pessoa sofre de uma doença única e exclusiva, proveniente de fontes imateriais; que os remédios zelosamente administrados pelos médicos mais comprometem que ajudam na cura do doente; que a verdadeira cura é a espiritual. Mas de que valeria tanto conhecimento, se diante do desânimo da enfermidade a única coisa que se pretende de verdade é alimentar a esperança na tecnologia clínica e a fé na Onipotência Divina?
                   Lhe pareceu que talvez a busca verdadeira da humanidade não seja pela sabedoria, pelo conhecimento efetivo das coisas; mas a da esperança de realizar o que racionalmente seria impossível. O homem médio, diante da mesma encruzilhada, sem dúvidas preferiria o caminho da ilusão, porque mesmo que relativo e falacioso, o sentimento de paz, felicidade e completude que alimentaria na vida de regozijos seria tão realístico quanto se de fato fosse completo e realista. Não se importaria em se estar enganado, mas na fé que alimentaria na força da ilusão. Para ele, contudo, a consciência de o quanto poderia aprender da verdade; crescer em si mesmo e a simples alegria que sentiria em contemplar a verdadeira face do Universo e seu Criador seria suficiente recompensa para as dificuldades que a procura lhe impingiria. Mas seguia preso em sua consciência a revelação de que o segundo caminho o privaria do aperto de mão e das lágrimas amorosa dos que, mesmo antes de conhecer, já sentia tanto bem.
                   Não seria possível um caminho do meio; uma terceira via, que conciliasse a busca da sabedoria com o amor da família. Àquilo não teria direito. Haviam apenas dois caminhos possíveis e o tempo da reflexão já se tinha esgotado. Era preciso dar o passo seguinte, de imediato.
                   Deu um suspiro, cerrou os olhos. Em sua mente ultimou as derradeiras reflexões e inconcebivelmente decidiu que um futuro certo, inequívoco, inevitável e sabido de antemão não lhe aprazaria jamais, fosse ele um futuro de prazeres e paz com os outros, consigo mesmo e com todo o Universo; fosse ele frenético, de grandes conquistas e inconvenientes preços, mesmo que lhe revelasse a misteriosa verdade pretendida por todas as gerações humanas que o precederam. A graça e o sentido da vida está exatamente na incerteza do porvir, na possibilidade do fracasso e na esperança do sucesso. Não importa propriamente as coisas que venham a ser conquistadas pela luta do cotidiano, porque o verdadeiro valor se encontra na humana e tênue pretensão da incerta conquista. A incerteza, em si, é o valor da vitória. Então, para que enveredar seja por um caminho, seja pelo outro, se em ambos já estariam pré-determinadas as veredas e conquistas que alcançaria?
                   Logo, não era por nenhum dos caminhos que trilharia. Diante da inarredável certeza do que lhe ocorreria no futuro, a atitude mais digna que poderia ter seria preferir a morte imediata.

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto.

quarta-feira, 4 de março de 2015


A CAIXA PRETA DO PODER JUDICIÁRIO

                   É algo esdrúxulo ao senso comum que um magistrado, após haver no bojo da sua potestade de império, apreendido bens de um réu, utilizá-los para uso privado, como aconteceu no conhecido caso do Juiz Federal que foi flagrado dirigindo o possante auto de luxo do empresário Eike Batista. O caso em questão ganhou repercussão nacional exclusivamente porque o réu se trata de pessoa famosa e encontra-se assistido por renomado e diligente causídico. O que de fato frustra a sociedade brasileira, entretanto, é verificar que abusos praticados por magistrados são bem mais comuns e corriqueiros que o estapafúrdio exemplo divulgado pela imprensa.
                   Todos os dias, nos fóruns desse país, nossos magistrados, incumbidos Constitucionalmente de distribuir a justiça dando a cada um o que lhe pertenceria por direito, praticam absurdos atos claramente constituídos como exemplos de abuso de poder, improbidade administrativa e crimes das mais diversas ordens. Há réus que não conhecem os fatos que se lhe imputam, pois seus processos encontram-se acobertados por abusivo segredo de justiça, como se o processo penal não devesse ser público por natureza e como se aos advogados não fosse assegurado por lei federal a consulta aos respectivos autos dos processos crimes. Há exemplo de juízes que useira e vezeiramente praticam contravenções penais, afetos que são a rinhas e outros ilícitos, e o fazem sob o cúmplice silêncio de seus colegas magistrados e os membros do Ministério Público, seus colegas, que pela força do corporativismo fingem nada ver; nada saber. Existem inúmeros exemplos de juízes que praticam atos de corrupção, para em troca de favores ilícitos garantirem a impunidade de infratores das mais diversas ordens e ainda mais outros tantos de irregularidades são cotidianamente praticados nos luxuosos palácios que, ao revés, deveriam praticar equitativamente a mais lídima das justiças.
                   Na condição de seres humanos, que rinhosamente evitam em se reconhecer, os magistrados estão sujeitos a todas as fraquezas próprias da nossa espécie. Não é absurdo presumir-se que os juízes, assim como todos os agentes públicos desse país, encontram-se sujeitos às mesmas tentações de todos os outros e por isso são passíveis de praticar atos de corrupção e outros delitos do gênero. O que não se suporta é o energúmeno corporativismo praticado pelos seus colegas, que quando simplesmente não se calam, transmudando-se em cúmplices pela omissão, são absolutamente letárgicos na apuração e punição dos ilícitos. O juiz do caso Eike Batista foi afastado por suspeição da presidência do feito, porém não foi preso em flagrante por crime de peculato e muito menos denunciado pelo Ministério Público por esta ou qualquer outra infração penal. O costume forjado pelos casos precedentes é que quando os magistrados cometem faltas gravíssimas são severamente punidos pelos Tribunais respectivos com rigorosa pena de aposentadoria compulsória, mas raríssimamente são presos ou mesmo por outras formas apenados. Dessa forma o Poder Judiciário nos ensina que o crime compensa sim, mas somente quando praticado por altas autoridades, revestidas pelo sagrado mando do foro privilegiado. Enquanto isso, esses mesmos magistrados superlotam os nossos presídios, condenando com rigidez milhares de ladrões de galinhas e pequenos traficantes, coincidentemente todos pobres e alijados de serem defendidos pelos grandes e ricos escritórios de advocacia criminal.
                   É preciso se praticar uma séria faxina nas dependências do Poder Judiciário brasileiro, a começar pelo reconhecimento pelos Tribunais de que seus juízes são agentes públicos, passivos de cometer não apenas crimes próprios e impróprios contra a administração pública, como também atos de improbidade administrativa; bem como que o Judiciário somente possuirá a independência e autoridade moral imprescindíveis à moralização dos demais poderes da República, quando ele mesmo houver extirpado de seus quadros os maus exemplos que pululam de suas próprias fileiras. Não basta mudar a lei, como é a pretensão do novo Código de Processo Civil. É preciso, antes, mudarem os nossos juízes.


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto