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domingo, 10 de maio de 2015










CARTA EXTRAVIADA




                            Uma conversa tão adiada quanto esta; de tantos assuntos pendentes e de tantos fatos desconhecidos mutuamente, certamente deveria se iniciar por amenidades. Como estaria o tempo aí onde te encontras? Pelo que imagino do sol refletido em teu aberto sorriso, não duvido tenha estado firme e límpido por todos estes anos. Aqui a coisas foram mais enevoadas, cheias de alternâncias. Às vezes boas, outras nem tanto. Até lamento dizer, mas os momentos difíceis foram maioria. Bem... mas falemos primeiro das amenidades. Se tivesses a curiosidade de reaver nosso país, acharia tudo por aqui mudado; as coisas mais modernas, as pessoas melhor vestidas; as cidades mais apinhadas de gente. Mas seria pura ilusão. Na verdade tudo continua exatamente igual. O ano somente começa depois do carnaval, que continua sendo exatamente como sempre foi: cheio de pessoas vazias, exultantes de transbordante alegria de nada; céticos crentes de que deve festejar enquanto razão suficiente de viver, em embriagante esquecimento de todas as coisas e de todos os valores que realmente pesam. Ah, também pulei meus carnavais, e embora não me arrependa deles, também não lhes nutro saudade. Também todos os anos há a mesma comoção no futebol. Os mesmo times se engalfinham em campo, os mesmos idiotas se matam nas arquibancadas. A diferença é que agora acho que eles se matam de verdade. A violência urbana continua crescendo. Os personagens da política são outros, bem diferentes dos que conhecestes, mas os discursos mentirosos continuam os de sempre. Claro, temos uma mulher na presidência, que ante tua tez feminista me parecerá ser motivo de orgulho pessoal a ti. Parabéns, então, pois alguém do teu cioso gênero chegou ao poder por aqui. Por aí terá havido algo semelhante? Participastes neste movimento? Pergunto até como meio de me perquirir de que te ocupas por aí. Se deixastes todos os que amas aqui, então haverás de ter tempo para atividades extraordinárias, uma ocupação habitual que te serviria não somente de sustento, mas sobretudo de amparo emocional. Ou terias encontrado algum amor por aí? Afinal já fazem tantos anos. Claro, claro! Voltemos às amenidades, pois compreendo que os assuntos que realmente nos movem à corresponder-nos deverão ficar para pouco depois. Sei que é mais fácil assim.
                            Certo dia fui ao cinema. Sozinho, como é do meu costume. O enredo do filme não me lembro bem, mas sei que falava sobre o amor, este tema que tem de estar presente em todas as formas de criação humana, em todos os momentos das nossas vidas, em todos os nossos níveis de relação. Esse amor, enfim, que é o combustível que move o mundo conhecido e desconhecido. Pois foi diante desse sublime sentimento que me lembrei repentinamente de ti. Senti saudades, claro. Porém, ainda mais que isso, senti uma necessidade quase física de ter a ti ao meu lado; de segurar tua mão; por minha cabeça sob o teu ombro; de dizer que desde que partiste, ninguém mais pus em teu lugar. Não que a vida não me tenha oferecido outras companhias, porque de fato reneguei muitas oportunidades, mas por fiel e zeloso amor, persisti sozinho, alimentando a inarredável certeza de que haveríamos ainda de nos avistar um dia. Por todos os dias da minha vida alimentei esta certeza e assim será até o fim. Mas especialmente neste dia em que fui ao cinema, a necessidade de ti foi maior que a de todos os outros dias. Foi algo tão forte, que tive vontade de chorar; espernear; gritar em plena sessão quanta falta sentia de ti; tive o desejo de praguejar a Deus, por permitir tamanho sofrimento. Porém, como sempre, reservei-me ao silêncio, discretamente limpei as lágrimas, respirei fundo por várias vezes e ao final da exibição ninguém foi capaz de perceber absolutamente nada. Saiba, contudo, que não sou dado a estas exteriorizações. Busco reservar o sofrimento e a angústia dentro do meu silêncio. É ao mesmo tempo uma forma de tentar sofrer menos e também reservar este sentimento (para mim tão sublime) exclusivo teu. Perceba, logo, quão especial foi aquele dia no cinema. Na época do acontecimento estavam se passando coisas pavorosas em minha vida, nem sei se devo dizê-las. Mas, já que toquei no assunto, é porque quero revelá-las. Farei-o aos pouco, no entanto se a conveniência se apresentar. Estava solitário na época. Extremamente solitário, como penso jamais haver estado antes. Solitário, porém não sozinho, veja quanto paradoxal se apresenta a vida tantas vezes. Haviam até alguns do teu tempo, a quem sei, também dedicastes teu amor. Mesmo eles, no entanto, não me serviram de amparo. Sim. Eu os denuncio a todos, e conforme corra a inspiração da pena, quiçá até não lhes conte os pecados. Mas é sobre mim que quero falar. Da minha extrema solidão. Solidão tão abismática aquela, que de todas as pessoas do mundo, somente tu poderias me salvar dela. Depois de sair do cinema, iniciei passeio pelos corredores do shopping me pondo a imaginar que estavas ao meu lado. De que lojas gostarias? Que produtos te chamariam atenção? Que conversas entabularias? Será que gostarias da novela da moda? Ah, tinha que te fazer correr ao meu lado as prateleiras daquela grande livraria, disso não abriria mão, afinal ali encontrarias títulos imperdíveis! Mas então pus-me a perguntar se tu realmente gostarias de ler... não saberia a resposta... como não saberia qual tua cor preferida... qual teu estilo de roupa... qual ator de cinema a ti pareceria o mais belo... teu prato preferido... que bijouterias te apeteceriam mais... enfim, pus-me a questionar quão pouco te conhecia, e passados já tão longos anos, quanto menos te conheço no presente. Antes de tudo assim é para uma desconhecida que escrevo, assim como era uma desconhecida aquela personagem imaginária que corria as lojas comigo àquele dia. Ainda assim, não posso duvidar do amor que nutro. Que estranha essa sensação. Simplesmente inexplicável! Mas é assim o que sinto.
                            Tudo bem... não fujamos ao enredo e voltemos às amenidades. Perdoe o carrego dos sentimentos. Não quero, afinal, que esta carta te pareça piegas. Seria como uma morte que esta impressão te alimentasse. Contudo, hás de perdoar-me por simplesmente não deletar o parágrafo pretérito. Mesmo que posto fora de lugar, no momento da nossa conversa onde supostamente estaríamos ainda estreitando a reaproximação, logo, onde não se comportariam exageros dos tipos mesmo que cometi, ainda assim ali as deixarei incólumes, porque me seria impossível redizê-las em parágrafos futuros. O que escapuliu foi espontâneo demais para poder ser repetido. Mas tudo bem... tentarei retomar as amenidades. Para isto, talvez fosse útil falar do cotidiano depois de tua partida. O país modificou-se bastante, já te disse. Mas eu e todos aqueles com quem convivias mudaram muito mais ainda. Fizeste mal em não ter mais dado notícias. Ainda assim, houve uma certa noite que sonhei contigo. Lembro-me perfeitamente de tuas palavras, teus gestos, teu sorriso e teu olhar. Foi algo tão marcante que não posso qualificá-lo de mero fenômeno onírico. Não. Aquilo foi a mais pura realidade. Algo muito distante de um simples sonho. Logo, presumo que também tenhas consciência desta passagem e que aquela tenha sido tua singela maneira de alimentar-me de esperanças. Por isto exatamente jamais desisti de ti. És rara demais para isto. Aqueles que deixastes inocentes cresceram, como não poderia ser diferente. Porém, cresceram mau, cheios de necessidades não supridas, dores irreveladas, humilhações não defendidas, escárnios engolidos a seco, e tantas mais provações. Não fosse meu incondicional amor, à vista de tantos sofrimentos, até acusar-te-ia de omissão, por silentemente haver permitido tamanho degredo de almas, até então tão bondosas. Mas sei de teus sentimentos e por isto perdoo incondicionalmente qualquer falta que tenhas praticado, tanto quanto pretendo que perdoes as minhas, que afinal não foram tão poucas. Independente de culpas, o fato é que tua partida os tornou frios, secos, insensíveis às dores dos próximos, incapazes de ajudar a outrem, senão por razões egoísticas. Tento perdoá-los. Juro. Ao mesmo tempo que diuturnamente luto bravamente para não me tornar igual a eles. Às vezes sinto que estou ganhando a batalha, sempre árdua, e concebo a possibilidade de a vontade suplantar o trauma; a vibração se sobrepor à fria realidade. Mas nem sempre é assim. O fato é que tua partida deixou feridas nada fáceis de cicatrizar. Pois que esta epístola nos sirva a todos de bálsamo, é o que desejo.
                            Me repreenderás novamente, sei, porque teimo em fugir das amenidades. É irresistível para mim não agir assim. Perdoe, mas mesmo tendo cuidadosamente traçado os caminhos da aproximação, alimentando os indispensáveis cuidados para não cair no sentimentalismo barato, nem muito menos pretendendo te levantar qualquer libelo, coisa que somente nos afastaria, teimo em adentrar de vez nas razões verdadeiras destas linhas. Não te magoes se assim faço. Como disse, é algo irresistível. Quantos bites de informações já não emprenhei neste documento digital, que por simples tradição ainda chamamos de carta, sem que tenha enfocado a essência desta correspondência? Então, penso, seja melhor abandonar o plano original e ir direto ao assunto. Espero que consintas. Falando em bites de informações, percebo que estas maquininhas engraçadas, cada vez menores e mais potentes simplesmente não existiam no tempo em que partiste. Se esta carta fosse escrita nas pretéritas condições, o seria a mão ou à máquina de datilografia. Se assim fosse, já haveria de ter rasgado bastante folhas de papel nesta difícil empreitada de abrir meu coração a quem hoje me é uma estranha. Naqueles idos até houve uma ocasião em que escrevi tal carta. Jamais a enviei a ti, como afinal de contas não sei bem se enviarei a presente. Antes de por timidez, porque temo severamente qual seria tua reação. Ponho-me a imaginar a ti, hoje já uma senhora, de ar grave, abrindo a epístola, pondo os óculos de leitura, lendo com ar grave o conteúdo da mesma. Neste ponto, tenho dúvidas sobre como colocar em funcionamento minha imaginação, se pondo-te a chorar, a sorrir ou a meditar serenamente. Se a opção for pelo choro, se esse choro seria compulsivo ou cândido. Opto pela candura, porque é a lembrança mais certa que tenho de ti: a da candura nas ações, mas sobretudo no olhar. Enxergo assim na tela mental da imaginação teus olhos voltados para o vazio, refletindo serenamente sobre tudo o que aqui te digo. Serena, como é essa lembrança que o tempo não apagou de ti. O resultado de tuas reflexões, prefiro não imaginar, deixando-os a teu prudente juízo. Rogo, contudo, que peses o sofrimento, a angústia e o tamanho do desespero que me legaste com tua partida, e logo sejas parcimoniosa, mas não injusta, ao sentenciar estes meus pobres e desgastados sentimentos, ainda plenamente humanos, contudo. A meu favor, revelo que mutei a dor da despedida em coragem para lutar contra esta desterrante vida de agruras e martírios. Com tal bravura venci muitas batalhas. Em teu honor, quis ser grande e em tua memória travei duelos quase suicidas. Antes de por qualquer outro motivo que te possam apontar, confesso aqui sem temor algum que o mote de tão desdenhosas ações foi a esperança de que algum dia regressastes e pessoalmente testemunhasses a vitória que teria sido capaz de construir a partir da ausência e da saudade. Queria que tivesses orgulho da minha capacidade, mas também provar que a grandeza se constrói da dor. Foi a ti, confesso, a quem dediquei todas as minhas vitórias. Das pequenas e irrisórias às grandiosas e inimagináveis. Sempre foram para teu pessoal deleite que lutei. Sem este mote, é certo que não haveria sequer lutado.
                            Mas houve também o desterro. Se muitas dificuldades foram vencidas, outras tantos, no entanto, não. E as derrotas foram ainda mais amargas pela tua ausência. A verdade é que se te fiz presente nos momentos felizes, te acusei a triste ausência nos amargores da existência. Se te cantei no sorriso, te chorei na dor. Se de ti lembrei na alegria, de ti não consegui me esquecer no sofrimento. Tal qual naquela tarde do cinema, em todas as vezes que enfrentei a solidão e o padecimento (e percebas que não foram poucas) foi em tua ausência real, que a todo custo quis transmutar em uma presença imaginária, que me apeguei como a única tábua de salvação da esperança. Agora mesmo, convalescente como estou, sozinho como os teus me deixaram, é ainda em ti que me apego não somente como companhia, mas sobretudo enquanto motivo para desejar viver. Porque se não sou grande ainda; se não fui capaz de te legar a homenagem da minha vitória, logo é porque preciso continuar vivendo até o dia em que a tua inspiração seja capaz de me legar esta suprema superação, pois que será a ti a quem dedicarei o opúsculo de minha pobre existência. No epitáfio de meu túmulo pretendo mandar gravar algo mais ou menos assim: Foi por um instante somente. Fugaz e descuidado. Mas foi porque, quando nasci, o bebê que eu era não poderia compreender que seria a primeira e talvez última vez que poderia mirar aqueles olhos verdes de cândido encanto, já mortos, mais ainda assim transbordantes de amor, com o qual se alimentou pelo resto da sua existência. Pois que é a ti, mãe, a quem dedico o pobre livro de minha vida.

                          Não sei bem a que endereço enviar-te esta carta. Onde te encontras, se existe, desconheço a direção. Pois então, na esperança de te encontrar, envio, como faziam os antigos marujos, a epístola guarnecida em uma garrafa que será lançada ao mar. Também postarei na internet e, quem sabe até, faça publicar em algum livro estas palavras de amor, saudades, mas também de esperança.