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domingo, 29 de setembro de 2019


SALKANTAY



Partiu a procura de algo
Que já levava na bagagem:
Eis o que há mais insólito
Sobre a busca de si mesmo.

                   Desde bem pequeninas as crianças nascidas em Urubamba, povoado quase esquecido do Peru, ouvem falar da Montanha Selvagem, a montanha sagrada dos Inkas - Salkantay, lugar de veneração e devoção às forças da natureza; lugar de aprender sobre a grandeza e delicadeza da Criação, onde estão resumidos todos os princípios de Pachamama. Pelo menos é assim para os descendentes do povo Quéchua, aqueles que deram fortaleza e fama aos renomados Inkas, maiores dentre todos os habitantes da América do Sul em todos os tempos.
                   Para o menino Herber foi mágico o primeiro avistamento daquela montanha. Embora dela tenha ouvido falar desde a mais remota infância, foi a partir de Cusco, lugar que conheceu já quase adulto, quando para lá foi estudar, que pôde ver aquele pequenino triângulo pintado de branco contrastando com o verde, às vezes cinza, predominante da vegetação local. Como pode, há de se ter perguntado aquele menino miúdo e desimportante, invisível para tantos, dada a sua aparência tão comum, como pode algo infinitamente minúsculo ser comentado com tanta grandiosidade entre seus ancestrais? Como poderia aquela pintinha branca no céu ter chamado a atenção dos grandes reis, habitantes do Umbigo do Mundo, a antiga Kosko, capital do Império dos Inkas?
                   Mas a própria Cusco que conheceu o menino quase adulto de quem falamos igualmente era imensamente distinta daquela que fora o Umbigo do Mundo, significado da palavra Kosko, nome original do lugar. No tempo do Inka Atahualpa a parte central da cidade era destacada pelo imenso palácio imperial, defronte a uma praça toda coberta de fina areia do mar, trazida por ordem do Inka do litoral do Pacífico, distante mais de mil quilômetros dali. A Cusco que avistou Herber era uma cidade cosmopolita, querendo imitar as grandes cidades ocidentais, cheia de prédios e gente desvairada, repleta de miséria, principalmente a dos descendentes dos Quéchuas, todos quase iguais a Herber, na aparência e na falta de um futuro promissor. Porém, por mais que Cusco desejasse ser igual às demais metrópoles do mundo, com sua indiferença ao sentimento das pessoas que as habitam, com pressa de seguir, não sabe para onde, não sabe para quê, jamais poderá se assemelhar a nenhuma delas. Seja por conta de sua arquitetura, tão cheia da presença dos Inkas, por mais que séculos de dominação colonial tenham tentado destruir essa marca; seja pela inconfundível cultura ainda tão plena das marcas pré-colombianas; seja mesmo pela aparência de seu povo, que por mais que intente disfarçar ou mesmo negar, é marcadamente composta dos descentes Quéchuas. Quantos Inkas não poderão haver entre os pobres e anônimos passantes das ruas centrais da Cusco contemporânea? Quantos deles não estariam servilmente a atender aos milhares de turistas que diariamente enchem o lugar com sua curiosidade excêntrica, típica dos ocidentais; mas também com seu bem-vindo dinheiro estrangeiro? Os Inkas não eram o povo inteiro, mas os seus reis, para alguns, a sua nobreza. Aqueles sábios que deram ciência, prestígio e notoriedade aos vales andinos; aqueles que os espanhóis dominaram e até hoje exploram, de início tomando-lhes o ouro, modernamente se aproveitando da curiosidade dos turistas.
                   Conforme foi se aprofundando nos estudos e no exame da cultura Inka, o jovem Herber aumentou aos poucos seu conhecimento a respeito da sabedoria de que era herdeiro, especialmente da Montanha Selvagem, que mais e mais lhe fascinava. Os Inkas a consideravam sagrada não somente porque era avistável já em Kosko, apesar da distância considerável, mas especialmente pelo seu formato triangular. Representava a própria divindade criadora e sagrada, a Pachamama. Até que houve o momento em que lhe foi possível subir à sagrada montanha. Foi só então que Salkantay se revelou inteiramente a ele.
                   O sentimento que Herber teve na sua primeira expedição foi muito próximo ao que os milhares de turistas que se aventuram na escalada experimentam. Igual ao daquele mediano grupo de brasileiros que conduz na atual viagem. Por isso os compreende tão bem. Tudo para Herber já é conhecido, afinal é ele o guia de todos. Para os forasteiros, no entanto, cada passada é uma novidade, às vezes uma difícil jornada. A caminhada é longa, durará alguns dias. Será preciso testar as capacidades físicas e emocionais dos viajantes. Os inaptos desistirão ao longo da jornada, numa clara evidência da supremacia das leis da natureza sobre as convenções humanas. Não serão os mais ricos nem os mais influentes que aportarão andando a Machupicchu dali a quatro dias, mas os mais preparados. Não necessariamente os mais condicionados aerobicamente chegarão primeiro, porque durante a jornada deverão vencer não apenas às forças exteriores da natureza como também a um inimigo talvez ainda mais implacável: a compreensão que têm de si mesmos e de seus limites, o que é também vencer a natureza, mas agora a natureza interna e infinita que em cada qual de nós habita. O pequeno Quéchua sabe que a jornada será extenuante, mas paradoxalmente renovadora.
                   No primeiro dia todos estão excitados e felizes pela aventura começante. Riem em abundância, falam mais ainda, param em demasia para sacar fotografias porque tudo é novo e deslumbrante. Já no primeiro pouso para o almoço se percebe o quanto se distanciaram uns dos outros. A longitude da jornada deixa mais evidente a diferença entre as passadas do grupo. Uns foram afoitos e chegaram à frente, sem se conscientizar, contudo, que o trecho mais duro ainda está por vir. Outros já se esgotaram na primeira manhã da viagem, se arrependendo em silêncio de mais não haverem se preparado para a dura caminhada. Para esses, somente a dor ensinará da necessidade de planejar e executar com rigor os preparativos para a grande jornada. Jornada que não é aquela, a de Salkantay, mas a da vida, que exige ainda maior esforço e empenho para ser superada.
                   Herber sabe que subir a montanha não é simplesmente chegar ao topo de um cume elevado. Para chegar a Salkantay é necessário se elevar espiritualmente, descobrir a divindade da montanha, mas também o merecimento de poder contemplá-la dentro de si mesmo. Aqueles passeantes aventureiros e felizes da primeira parte da jornada, contudo, ainda não descobriram isso. É preciso subir, extenuar os músculos, testar as condições do coração e dos pulmões e, sobretudo, o tamanho e a intensidade da vontade sincera, para chegar ao descobrimento mágico do qual já é sabedor Herber.
                   O começo da jornada propriamente é o que virá a seguir. Há uma visita à laguna de Humantay. A Cabeça da Montanha, outro cume elevado dos Andes, vizinho a Salkantay, onde repousa uma lagoa gelada, cuja fonte que a abastece provém do degelo dos picos mais acima. Subir a Humantay parece fácil, exceto para quem se aventura na jornada. O que inicialmente era uma charmosa figura branca vai crescendo a cada passo do viajante. A grande montanha se torna não apenas maior, mas também mais opressora. A cada passo se agiganta o monstro rochoso, pintado de branco. Um branco incomum, de uma tonalidade que os pixels das telas não conseguem imitar. Não adianta fotografar ou filmar a jornada. Sua verdadeira dimensão somente pode ser compreendida para quem a faz. Porque, além da grandiosidade do cenário, sempre deslumbrante, tão belo e tão grande que não caberá jamais no quadro de um fotógrafo, há também o peso da montanha, que massacra a cada novo passo com maior volúpia o írrito corpo do caminhante, tornando-o cada vez menor, disforme e sem forças. E não haverá jamais lente ou tecnologia que capte a intensidade dessa relação de força que esmaga não somente  o corpo, como a vontade toda do viajante.
                   Aquilo que há mais de cem quilômetros de distância era um simpático ponto branco que enfeitava o topo de uma montanha supostamente bem elevada, agora é um gigante de pedras a irradiar toda a sua poderosa massa contra aqueles que se atrevem a desvendá-la. Dali, daquele passo da trilha disforme, composta por vários caminhos, todos levando para o alto, para o mesmo destino, é que é possível compreender a verdadeira dimensão do mito da esfinge. Ou o caminheiro decifra o segredo da montanha ou ela o absorverá, anulando completamente sua existência. Herber já sabe como desvendar o mistério. Os viajantes não, pois aprenderão apenas os que seguirem tentando. O segredo é exatamente o tamanho da vontade. Tudo é muito simples, pensa o Quêchua ao mirar o esforço, resignação e até o desespero dos seus protegidos, todos heroicamente travando uma penosa e quase perdida batalha para conseguir dar o próximo passo. Eles ainda pensam que estão lutando contra a força da montanha, contra os efeitos do ar já bem rarefeito àquela altura ou mesmo contra a gravidade ao lhes empurrar pesadamente para baixo quando o que desejam é chegar à esplendorosa altitude do lago gelado. Os que insistirem com essa batalha inglória inevitavelmente perderão, pois não se vence ao poder da natureza. Querer assim, é como se o homem pretendesse ser maior que Deus; mais perfeito que Pachamama. Impossível lutar contra as forças da natureza, mas sempre é viável dominá-las através do respeito e da consciência. Foi isso o que fizeram os Inkas, conforme provam suas inexplicáveis construções, todas repletas de toneladas de pedras cujos métodos de manuseio e transporte até hoje são desconhecidos da ciência moderna. Dentro do seu silêncio atento, Herber sabe que somente aqueles que perceberem que a luta não é contra o mal estar que sentem, seja a falta de ar, ausência de forças ou tontura; mas sim contra sua própria vontade é que conseguirão chegar ao destino.
  
                É importante chegar a Humantay não só pela lagoa em si que é recipiente do sagrado elemento da água. Mas pela autoconsciência da potência da vontade. É esse o verdadeiro teste a que submete Herber seus protegidos sem que eles o saibam. É uma prova deles contra si mesmos. Através da vontade, contudo, todos poderão vencer a batalha. O Quêchua não conhece Schopenhauer, famoso filósofo alemão, que se notabilizou pela sistematização da força da vontade na natureza. A verdadeira potência de todas as coisas é a da vontade, seja na natureza, seja na fenomenologia humana. Mesmo assim, nosso personagem conhece melhor que todos os eruditos com quem já tenha tratado dessa importante ciência. Toda a erudição do mundo, todas as centenas de milhares de tomos já escritos, todos os séculos de estudo acumulados pela humanidade inteira são um mero enfado, talvez quase uma inutilidade na altitude de Humantay. A verdadeira sabedoria está com Herber, que a aprendeu diretamente de Pachamama, sem a necessidade de uma letra ou dígrafo sequer. Tanto que os intelectuais ficaram pelo caminho, presos sob o pesado escombro de tantos saberes. Só puderam vislumbrar a laguna aqueles que se valeram das silenciosas lições do seu guia, que só pelo mirar insistente lhes dizia para seguirem, para darem apenas um passo por vez; a não terem pressa, mas seguirem insistentes. A eles, que inconscientemente apreenderam a lição que talvez nem Schopenhauer tenha compreendido em toda sua intensidade, foi conferido o grande mérito de contemplar a água azul, refletindo a enorme geleira acima na mágica luz do entardecer. Não haverão lentes nem tecnologias, repetimos, que sejam capazes de descrever a imensurável grandeza daquele momento único. Muito menos existirão palavras para refletir os pulsantes sentimentos que povoaram os corações dos poucos presentes àquele instante.

                   Por mais bela que fosse a paisagem, o frio convenceu todos a descer. Muitas vezes a descida é mais penosa que a subida. E aquela foi para tantos. Agora, a cada novo passo do caminhante, ao mesmo tempo em que se sentia vitorioso pelo objetivo alcançado, lhe pesava a incerteza da manhã a seguir, que o convidava a superação ainda maior. Do teste passaram, mas a verdadeira caminhada era chegar a altitude ainda maior, a do topo de Salkantay. Não havia comemorações a fazer. Não ainda, porque os aguardava a todos uma gelada noite no acampamento, seguida por uma penosa trilha de um dia inteiro, com subidas ainda mais íngremes e perigosas; com descidas arriscadas, cheias de pedras em falso. Valeria o sacrifício? Se perguntavam os caminhantes. Valeria sim, respondia Herber no silêncio de seu meigo e simpático sorriso, como se adivinhasse o temeroso pensamento contido em todos.
                   Dormir em temperatura quase glacial não é fácil para ninguém. Mas sobrevivem os que consigam se agalhar devidamente. Logo pela manhã, teve início a parte mais importante da jornada. Aos poucos, o pico de Humantay foi se afastando dos viajantes e na mesma velocidade veio se aproximando um gigante maior ainda, que devagarinho foi se apresentando em sua verdadeira grandeza. A meio caminho do topo da montanha todos compreenderam que, de fato, a aventura da véspera foi um simples teste, talvez uma broma pregada por seu guia, porque todo o esforço desempenhado então nada seria perto do novo desafio. São menos de quinhentos metros a diferença de um cume para o outro. Mas os abismos da nova trilha, a consciência da imensurável altitude, à beira de um enorme vale andino, tornou a jornada ainda mais temerosa. Aquela sim, era uma jornada que exigiria um autoconhecimento ainda mais profundo; uma potência de vontade muito maior. Mas também como na véspera, não adiantavam os livros. A verdadeira sabedoria está em fazer. A maior das superações é ousar e conseguir dar um passo a mais em direção àquela gigante, que pelo ângulo que se avizinhava, parecia mesmo maior que toda a cordilheira da qual fazia parte.
                   A imensidão das montanhas fazia a todos terem consciência da pequenez individual de cada qual. É impossível a seres tão rasteiros, mesquinhos, egoístas, desprezíveis até, como somos nós da espécie humana, conseguir atingir o topo de uma perfeição da natureza, como Salkantay. Ela é enorme. Não haverá palavras em língua nenhuma capaz de descrever sua perfeição, grandiosidade e beleza. Talvez só os Quéchuas mesmo tenham sido capazes dessa descrição. Salkantay: Montanha Selvagem, quase inexplorável. Inacessível à maioria dos mortais. Detentora dos mistérios de Pachamama. Símbolo da sabedoria dos Inkas... Mas também um ser hostil, imensamente poderoso, que bafeja sua potência contra aqueles ínfimos seres que a almejam explorar, contra eles impondo a potestade de suas incalculáveis forças, oprimindo-os a seres ainda mais míseros e desimportantes que de fato são. Mirar a grandiosidade da montanha de tão perto é se autoconscientizar de quanto individualmente somos pequeninos, desimportantes e desinteressantes. Pachamama parecerá grande demais para perder tempo com seres tão sem significação. Que somos nós perto da infinitude do universo? Senão nada à potência infinita? Salkantay nos prova fisicamente essa irrefutável verdade.
                   Até dá tristeza aos caminhantes se perceberem tão desimportantes diante da grandeza da natureza e de Deus. Herber vislumbra, quando em vez, a tez de desassossego de seu grupo. Mas se cala, porque também aquilo é parte do aprendizado. O pensamento que povoa a muitos dos peregrinos é a vontade de desistir, pois qual o sentido de seguir diante da consciência de tamanha pequenez individual? Quanto maior se torna a montanha, menores ficam seus exploradores. Mas novamente a vontade é a chave para a nova descoberta. Aos que seguirem, o cume da montanha guarda importante segredo. E, no seu silêncio, o Quéchua estimula todos  a continuar sua jornada, que como se pode logo perceber, não é em rumo ao pico de uma montanha gelada, mas na direção da altitude do próprio ser e do próprio Deus.
                   O que poderia mover aqueles viajantes a jornada tão insalubre? Todos, afinal, eram pessoas bem nutridas, por isso adequadamente alimentadas, que de acordo com suas vestes e tezes poderiam presumir-se de bom nível de vida, assentadas em rotinas plácidas e cheias de conforto. Exercitar-se era um lazer e não uma necessidade. Por que, então, se aventurariam na insólita e perigosa aventura de subir um cume tão elevado e inóspito? Herber não conhecia a literatura portuguesa, porque a conveniência da língua o educara na poesia escrita em castelhano. Não ouvira ainda falar em Fernando Pessoa nem em seu heterônimo Ricardo Reis. Mesmo assim, como fez José Saramago, de quem também não conhecia a obra, saberia responder que as razões que levavam seus conduzidos a seguir montanha acima com tanta perseverança eram as mesmas que motivaram Ricardo Reis a visitar a sepultura de Pessoa. Mas como pode a criatura sobreviver ao criador? É que, diria Herber se acaso lhe questionássemos, a criatura tem vida própria e independente, possui sentimentos que são só seus; compreensões que lhes são únicas. Todos nós, continuaria o guia, todos nós esses seres ínfimos, ainda mais diante da grandeza de Pachamama, aqui, defronte a insuperabilidade de Montanha Selvagem, somos como a criatura de Pessoa, senhoras de nossos sentimentos e desejos, por isso independentes. Mesmo assim, frutos de uma fonte única, que é capaz de comportar em si todas as diferenças da existência possível ou impossível. E, por mais diferentes que sejamos uns dos outros e da nossa própria fonte, ainda assim seguiremos sendo partes apenas de um todo bem maior que nós. A montanha não é nossa inimiga. Apesar da aparência, não nos é inóspita. Ela é a própria Pachamama, da qual fazemos parte, de onde provimos. Como Ricardo Reis quanto a Fernando Pessoa, somos míseras criaturas da Mãe Natureza. Mesmo ínfimas, únicas, insubstituíveis e de importância ímpar. Eis o segredo que pode conduzir o caminhante ao alto da montanha, pois não se luta contra a montanha. Se integra a ela formando um novo ser único e indivisível.
                   E assim, na medida em que os caminhantes iam se conscientizando da sagrada lição da selvagem montanha iam, cada qual a seu ritmo, devagarinho, aportando a seu cume. Um a um foram chegando todos. Alguns chegavam sozinhos outros em pequenos grupos. Todos em silêncio. Tal qual é a vida da espécie, que segue adiante sempre, mas em velocidade e com significado diferente para cada qual dos viventes, aventureiros incônscios da sofisticada aventura da existência carnal. Para todos foi sempre emocionante a chegada, pois compreendiam, sem exceção, que haviam vencido. Não uma rochosa e gelada montanha, mas a si próprios. Houve os que choraram, houve os que sorriram, houve também os que congelaram a face, embora fervilhassem bem lá dentro, onde pulsa o coração valente.
                 
  Com a chegada do derradeiro, reuniu então Herber todo o grupo. Era chegada a hora do ritual de agradecimento. Postou-os em semicírculo aberto na direção do cume, distribuiu a cada qual três folhas de coca e uma pedra em tamanhos variados. Disse que, conforme a cultura Quéchua, ali estavam diante de uma montanha sagrada, símbolo de todo o poder da Criação. Para seu povo, poder representado por Pachamama. Pachamama, continuou, não é somente a terra que nos apoia, mas toda a natureza. Portanto, também o vento, a água, o fogo, assim como igualmente as energias e sentimentos que a tudo habitam ao nosso redor. Era assim que compreendiam ao próprio Deus Criador. Naquele momento, diante da grandeza da Criação, representada pela imensidão da montanha gelada que miramos, é uma oportunidade tanto para agradecermos quanto para pedir auxílio à Mãe Natureza. Assim, segurem com firmeza as folhas de coca que têm nas mãos e em silêncio façam sua veneração. Conforme queiram, agradeçam pelo que tenham conquistado e aprendido ou mesmo peçam algo importante, para si ou alguém por quem tenham afeto. Peçam saúde, prosperidade ou sabedoria, conforme seja a necessidade de cada um. Sempre em silêncio. Após alguns instantes seguiu dizendo: agora ponham cada um as suas folhas de coca sob a pedra que têm na mão, formando um conjunto de pedras que deve ter a forma de um triângulo, próximo ao formato de Salkantay. E então, a sagrada montanha lhes atenderá o desejo.
                   Foi com profundo amor que Herber conduziu o ritual. Compreendia perfeitamente que aqueles turistas representavam a exploração a qual seu povo fora submetido historicamente desde mais de quinhentos anos passados. Primeiro os espanhóis lhes tomaram a liberdade e o ouro. Lhes tentaram matar a cultura, que mesmo assim conseguiu sobreviver em silêncio e em segredo na intimidade dos lares Quéchuas. Somente graças a essa resistência heroica é que ele mesmo podia agora repetir com os estrangeiros o ritual que aprendera de seus ancestrais, que por sua vez o aprenderam dos próprios Inkas, que segundo se conta na tradição oral de seu povo, ainda mais uma vez retornarão para libertá-los. Mas Herber não guardava qualquer mágoa por essa dominação. Não se incomodava pelo fato de ninguém do grupo o haver questionado a razão de ele, um autêntico Quéchua, haver sido batizado com um nome de origem alemã. Se perguntado fosse, diria que fora um antídoto de sua mama contra o preconceito que sempre recaiu contra os seus. Dar um nome estrangeiro era uma forma de diminuir a opressão. Por isso estavam quase esquecidos entre os seus os nomes tradicionais de sua gente. Por isso não se chamava, por exemplo, Kusi Qoyllor, que quer dizer Estrela Feliz ou mesmo Inti, que significa Sol. Não contou, embora teria dito com honor se acaso perguntado, que sua filhinha fora batizada com um nome da tradição, que ela era chamada por Ima Sumac, a Mais Doce, o que de fato era. Mas tudo aquilo, pensou Herber, era passado. O que vale de verdade é o presente, é a possibilidade de ser útil e praticar o bem. Era esse o propósito da existência, era essa a lição de Pachamama. Em nome do seu povo, sinceramente perdoava todos os excessos praticados pelos dominadores. O que era preciso de verdade era construir um tempo de união e igualdade. Por isso que se entregou totalmente às energias do ritual, como faziam os xamãs Inkas do passado.
                   E esse sentimento deixou seu coração leve como uma pena de condor, que por isso o permitia flutuar sob todo o mar de desgraças que já se abateu sob aquela terra, sem, contudo, se contaminar com a angústia e sofrimento que já povoou aqueles lugares. Tudo era passado. A paz voltara a reinar. Depois de haverem tomado parte naquele ritual e após terem se empoderado das valiosas lições da viagem, pensou o guia, dali a vários anos adiante, a morte os ceifará com maior candura.

Jorge Emicles