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sábado, 9 de julho de 2016

VIAGEM INSÓLITA - CONTO




                    Sentado ali na antessala daquela famosa feiticeira, passou em revista as razões e aparentes coincidências que o levaram até o lugar. Inicialmente movido pela curiosidade, aos poucos se permitiu envolver pelos achados e revelações trazidos pela mulher esbelta, bela e firme, vestida sempre com roupas longas e folgadas, que mesmo assim permitiam antever a beleza do corpo escondido por detrás delas. Ao mesmo tempo que era misteriosa, ela também se apresentava firme e sábia, mostrando-se conhecedora de verdades não reveladas inteiramente aos seus sempre atentos ouvintes.
                   Ele tremia profundamente sempre que ela lhe mirava nos olhos e especialmente naquele dia estava ansioso, pois guardava a promessa da derradeira visita, de que seria premiado com revelação inopinada. Tal pretensão, acaso vinda de uma farsante qualquer em definitivo não lhe abalaria os nervos, pois se tratava de homem feito e experimentado nas armadilhas da vida. Mas aquela mulher além de misteriosa era verdadeiramente temerosa. A seu respeito já ouvira boatos que era capaz de matar, ressuscitar e outra vez dar cabo de qualquer vivente, por mais guarnecido que fosse pelo mundo da espiritualidade. Além das coisas que a ouvira dizer e se realizar, igualmente temia pelas que já a vira fazer.
                   O ambiente era sóbrio. Não parecia ser o que realmente era. Aparentava uma espécie de consultório, o que afinal de contas acabava quase sendo, porque ali acorriam pessoas desesperadas, buscando diversas espécies de cura. Só que não pela alopatia, mas pela espiritualidade.
                   Chegou sua vez de ser atendido. Foi levado a um ambiente estranho, uma sala que não havia frequentado das outras vezes. Lá o ambiente era em penumbra e havia uma cadeira estofada, bem confortável e quase nada mais. A mulher entra e pede para que ele se sente na poltrona. Ela permanece de pé. Pronuncia algumas palavras em língua desconhecida, solicita que ele busque relaxar e lhe apresenta um copo com um líquido viscoso, cor de ferrugem. Diz que é para beber, porque ele ganhou o merecimento de ter com a espiritualidade pessoalmente, pois havia algo por demais importante que poderia somente a ele mesmo ser revelado. Obediente, ingeriu o líquido. Ela informa que sairá da sala e que ele permanecesse quieto, de olhos fechados. Logo começaria sua iniciação. Era importante que ficasse calmo.
                   Assim ele fez.
               Dali a poucos minutos começou a ouvir alguns zunidos. Inicialmente leves, depois bem estridentes. Teve a sensação insólita de que voava, alçando às alturas, dirigindo-se para bem distante de onde estivera até a pouco. Era algo profundamente real o que sentia, completamente diferente de um sonho, absolutamente oposto a qualquer alucinação. Parou em algum lugar desconhecido, que intuitivamente sabia não ser terreno. De repente, viu-se cercado por dezenas de formas, inicialmente humanoides que na medida em que ia se concentrando nelas ganhavam contornos e faces propriamente humanos. Com relação a uma delas em especial assustou-se, pois sabia de quem se tratava, bem como que ela não estava entre os vivos. Sentiu a palpitação acelerada de seu coração. Tentou retornar à realidade, mais eis que a realidade verdadeira, constatou, era aquela que testemunhava naquele momento. Ilusão era a sua vida na matéria, suas vastas propriedades, seu rico capital, sua formação intelectual, o respeito que aparentava ter das pessoas, mas que na verdade eram simples disfarces da ganância e da inveja. Realidade era o que ouviria daqueles seres naquele momento.
                   No mundo que adentrara não haviam palavras. Todos se comunicavam pelas sutis vibrações do pensamento. Na sua consciência, porém, eram palavras materializadas, que aparentemente reverberavam pelo vento que igualmente inexistia, o que lhe parecia chegar aos ouvidos. Os ouvidos físicos, porém, também estavam moucos, tal qual os olhos físicos cegos e o tato insensível. Ainda assim ouviu, viu e sentiu cada uma das palavras que lhe disseram aqueles seres fantasmagóricos, que não possuíam pés, os gestos que lhe fizeram e os sentimentos que lhes transmitiram.
                   Sem rodeios lhe afirmaram que havia ganhado o merecimento de saber a forma, os motivos e o momento da sua passagem da vida irreal que vivia na matéria para a vida real que seguiria vivendo na espiritualidade. Para tanto, contudo, deveria acertar sem delongas uma série de dívidas que contraíra na vida terrena, distribuindo o perdão aos inimigos, reparando os tantos mal feitos realizados contra seus semelhantes e praticando a caridade com discrição e em silêncio. Que o fizesse logo, pois a hora do acerto de contas estava já bem próxima.
                   O temor, com tão inopinada revelação, lhe dominou o espírito. Estava pronto para a partida, imaginava, pois sabia da sua inevitabilidade. Mas estava pronto para uma partida futura, distante, tão longínqua que a memória não seria capaz de alcançar. Diante dessa certeza, contudo, permitiu-se refletir sobre os seus praticados na matéria, descobrindo com isso o quanto em verdade estava despreparado para esse momento, que afinal é o único certo que todo ser vivente tem. Partir sem ter vivido um amor despregado de interesses carnais ou materiais; sem haver acalantado por toda uma noite um filho doente; sem ter sido despretensiosamente útil a algum espírito sofredor; sem haver dado um abraço em honra a uma verdadeira amizade? Toda a sua riqueza se tornava absolutamente desprezível, se revelando numa humilhante miséria, diante do tanto de coisas que deveria ter feito e não fez, porque a ganância do capital, a necessidade do lucro incessante, o egoísmo do amor próprio e a vaidade das honrarias jamais lhe permitiram. E se era irreparável aquela situação, a conclusão era de que tudo o que fizera fora inútil.
                   Dor maior que aquela não poderia haver. De que afinal teriam valido os tantos sacrifícios e as tantas lutas travadas em prol da construção do portentoso castelo no qual fizera repousar sua existência terrena, se dali a bem pouco tudo ruiria numa silenciosa e fria tarde de inverno, onde mesmo a despeito do desespero interior de seu ser, se recusando a partir, ainda assim o fato se daria porque não há recursos nem sofísticos nem tecnológicos contra a indelével e firme ação das leis da natureza. De logo compreendia que não haveria meios de reparar certos erros nem de construir determinados objetivos desejados, mas irresponsavelmente olvidados para futuro distante e incerto o qual, agora sabia, não aconteceria jamais. A dor que sentia consistia não propriamente nas coisas que não fizera, mas na compreensão de que jamais as poderia fazer adiante; que lhe fora conferida uma oportunidade única, para sempre perdida.
                   Aquele ser espiritual a quem reconhecera, aproximou-se então dele e, em pensamento lhe revelou que também ele, quando estivera próximo da passagem fora contemplado com o mesmo merecimento de saber com breve antecedência do fato inevitável. Esse era um merecimento mais comum que se imaginava, e que também se pusera a refletir sobre seus feitos. Descobriu diante de suas conquistas vividas na matéria que fora humilde, abrira mão do honor e da riqueza por uma vida em paz; que sua vida fora em silêncio, longe das homenagens; embora pudesse ter sido famoso preferira o anonimato; embora pudesse ter contrariado, com razão, muitos poderosos optou pela paz de espírito; e apesar de poder ter se apresentado como um sábio diante dos homens, optou pela verdadeira sabedoria da humildade, pois é a única que assim o é de fato. E disse-lhe aquele espírito que vivia meio triste, aperreado com a ignorância dos homens, incomodado com sua falta de capacidade de reconhecer o verdadeiro sábio e o líder de verdade até a revelação que teve, pois somente a partir dela, desde quando se pode ter a constatação do que verdadeiramente é útil, daquilo que de fato existe diante da eternidade, alijado da futilidade e protegido da ignóbil vaidade é que se compreende a infinitude e perfeição do amor sutil, silencioso e harmônico. De tudo o que construímos na matéria, as únicas coisas que podemos transportar para o mundo de verdade é o amor que plantamos, o conhecimento que colhemos e os sentimentos que regamos. Tudo o mais é ilusão grosseira da matéria.
                   Aquelas palavras lhe chocaram tão profundamente que foi arrebatado do lugar em que estava e transportado incontinente à sala em que havia sido deixado pela feiticeira. É como se tivesse sofrido uma queda desde altura imensa. E de fato o foi. Atordoado se levantou meio zonzo e um tanto desequilibrado partiu sem justificar-se a ninguém. Jamais retornou a ter com a feiticeira.
                   Ele não morreu em breve tempo, conforme lhe advertiram os espíritos. Viveu mais outros longos e promissores anos. Enriqueceu ainda muito mais do que já era. Mas desde aquele dia passou a viver cada instante de sua vida com intensidade profunda e responsável, tal qual fosse o último dela. Passou a amar as pessoas como se jamais houvesse de ter a oportunidade de fazê-lo com relação a mais ninguém. Ajudava ao próximo como se nenhuma outra oportunidade lhe fosse permitida no futuro. Respeitava os outros e revelava sua verdade com tanta mansidão, como se imaginando que aquela fosse a última oportunidade de se demonstrar humilde, sereno e sábio.
                   Foi feliz, como jamais até então houvera sido.

Jorge Emicles