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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

 

O SÍRIO E A CORONELA








Em homenagem a Jorge Dummar Pinheiro

 

                            Desde garoto ainda, sua compleição física chamava a atenção de todos, mas especialmente das mulheres. Era alto, cabelos pretos bem escuros, rosto afilado e proporcional, mas, sobretudo, eram os seus olhos azuis, da cor do céu, quase transparentes o que mais se destacava na figura esbelta, máscula e atraente. Tudo isso era patrimônio natural da herança materna, de uma imigrante síria fugida da guerra e desembarcada no porto de Fortaleza ainda bem jovem. Também de beleza incomum, Adélia Dummar logo atraiu a atenção e cativou o amor de um filho de senhor de engenho do Cariri, com quem casou e teve cinco filhos. Jorge Dummar, o tão bem afamado e garboso entre as mulheres, era o terceiro rebento dessa união.

                            Jorge nunca se fazia de rogado quando percebia as facilidades e os favores ilícitos que sua beleza poderiam lhe regalar. Diziam, por exemplo, à boca miúda, que quando o jovem ia à boate de Glorinha, mais conhecida como cabaré mesmo, as funcionárias da casa digladiavam-se para serem a precursora no atendimento àquele cliente tão cobiçado e, não poucas vezes, ficavam tão extasiadas após a consumação de seu ofício que sequer cobravam por ele, dizendo que, se fossem justas, elas é que deveriam fazer a paga.

                            Era cobiçado com igual fervor também pelas jovens donzelas da elite local, que sempre passavam mais lentamente por ele que pelos demais frequentadores da praça Siqueira Campos, em Crato, num ritual de acasalamento bem próprio dessa comuna do Cariri do Ceará. O costume consistia na prática de que os homens, necessariamente os solteiros, sentavam-se em grupos nos bancos da praça enquanto as damas, nos seus melhores trajes circulavam a praça. Daí é que surgiam as paqueras, depois os bilhetes apaixonados e, enfim, o pedido formal de namoro, noivado e casamento ao pai da afortunada.

                            Jorge, na condição de semideus sírio da localidade poderia escolher quem daquelas jovens, belas e ricas moças quisesse para se casar. Na verdade, quase todas, porque entre as frequentadoras da praça Siqueira Campos havia uma que especialmente não lhe dava nenhuma atenção, passava durante o ritual de paqueras quase que o desprezando. Foi exatamente por isso que aquela moça, a única que lhe parecia impossível entre todas, foi por quem Jorge se apaixonou loucamente, perdendo totalmente o interesse por todas as outras.

                            Em suas incursões de desesperado amor, descobriu preocupado que a moça se tratava de uma neta da famigerada Fideralina Augusto, que fora chefe política da vizinha Lavras e de cuja fama de valente e intolerante não tivera fim nem mesmo após sua morte. A fama de valentões agora era extensiva a toda a família Augusto. Como o amor, por costume, desafia principalmente o impossível, nem as notícias horríveis referentes ao destino dos mancebos que tentaram desfortunar o bom nome das moças da família, às vezes até mesmo quando se prestavam a reparar o erro através do casamento, demoveu o enamorado de seu propósito. O moço não arredou pé de sua intenção de conhecer e se casar com a moça. Primeiro lhe enviou destemidas cartas de amor, mesmo diante da hipótese quase certa de ser descoberto, inclusive pela denúncia da própria moça, que bem poderia não corresponder às investidas.

                            Quis o destino, entretanto, que a moça de enamorasse do mancebo. Ao final, a harmoniosa figura daquele jovem, somado às belas palavras escritas nas missivas, que na verdade eram de autoria do irmão mais jovem de Jorge, surtiram o efeito desejado e eis que a bela, casta e séria Risalva respondeu dizendo que aceitava o pedido de namoro, desde que tudo fosse feito da maneira correta e oficial, a começar pela autorização e benção paterna.

                            Assim, em menos de um ano, os jovens noivaram e casaram-se. Como uma espécie de dote, costume fora de uso àquela época, o pai da noiva delegou ao novo genro a missão de assumir a administração do Sítio Tatu, que havia sido a sede do mandonismo da velha Fideralina e que, por conta de uma guerra de família acontecida alguns anos antes, estava abandonada. Aceita a missão, lá se foi o destemido Jorge retomar a posse dos Augustos sobre o casarão da matriarca, com os açudes, capela e vasta extensão de terras.

                            Logo no primeiro dia se apresentou aos moradores do sítio, divulgou-lhes os planos gerais de sua administração, dizendo quais os trabalhos seriam prioritários e quais os programados para as semanas seguintes e logo foi se alojar na antiga casa da matriarca. Era um típico casarão de sede de fazenda, alpendrado, com cômodos amplos e pé direito altíssimo. Arrumou uma velha moradora do sítio para lhe servir de cozinheira, quem aceitou o encargo sob a condição de que não queria dormir no local. Prometia chegar bem cedo, antes da chegada do sol e sair a hora da noite que fosse necessária, mas sob nenhum pretexto se permitiria dormir naquela velha casa. Sem entender bem o porquê, aceitou a proposta.

                            Por isso, naquela primeira noite, após se aproveitar de uma bem servida refeição, se viu já nas primeiras horas da noite sozinho na casa. Como estranhamente os moradores vizinhos não lhe vieram ter um dedo de prosa à noite, como era o costume dos vizinhos no sertão, resolveu que iria dormir cedo. Armou sua rede exatamente onde fora o quarto da matriarca da família e sem receios nem assombros, dormiu sono profundo e terno. Lhe pareceu que sonhava sonhos bons, talvez relacionados aos trabalhos que havia dirigido durante o dia e também aos que deveria desenvolver nos dias seguintes, de maneira que estava contente com seu feito, especialmente porque achava que iria cair em bom crédito junto ao sogro.

                            Até que, de repente, se acordou com uma série violenta de sacudidas em sua rede. Eram supostamente causadas não pelas mãos delicadas e frágeis de uma mulher, mas revelavam a força, talvez, de mais que um homem forte. Todas as luzes da casa estavam apagadas, por isso era de se esperar um breu total, especialmente naquela noite sem lua, mas o fato é que quando o jovem abriu os olhos, assustado pelas sacudidas, se deparou com um vulto luminoso, quase branco, que certamente era a causa de tudo aquilo. Ficou paralisado não sabe bem por quanto tempo. Mas tão logo conseguiu ter um mínimo controle sobre os movimentos, não titubeou um segundo, se pondo de pé em um pulo e correndo em direção à saída da casa.

                            A aurora o flagrou acocorado no terreiro da casa, aparentemente calmo, mas no fundo profundamente assustado, sem entender o que houvera. A velha governante estranhou ver o jovem patrão tão cedo já fora de casa, especialmente porque o viu despenteado e com cara de assustado. Jorge não negou o que lhe havia acontecido e, a partir de seu relato, cada morador do sítio acrescentou sua observação especial ao episódio, mesmo não o tendo presenciado.

                            Assim, até hoje, os visitantes do velho casarão, hoje outra vez abandonado pela família, contam que as noites ali são povoadas pelo espírito da própria Fideralina, sempre pronta a defender a posse sobre o lugar, mas também pelos escravos e cabras que a velha homicidara na sua insana luta pelo poder, como fizeram, afinal, todos os coronéis de seu tempo. Contam que se pode ouvir os gritos das torturas, o som dos ossos quebrados pelas pancadas dos torturadores e dos crâneos espocados pelas balas. Dizem também que no centro da construção há um cubículo, cujo único acesso é através do quarto da matriarca e que era lá onde aconteceram todos esses episódios.

 

Jorge Emicles

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