LULA LIVRE!
A imprensa anunciou em polvorosa, como é da
natureza dos noticiosos jornalísticos, pois muito mais preocupados com a
divulgação escorreita e analítica dos fatos que se transformarão na posteridade
em material para os historiadores, que foi solto o ex-Presidente Lula. Alguns
disseram que ele saiu raivoso do cárcere, disposto a assumir a liderança da combalida
oposição das esquerdas. Ele está pronto, falaram, para um duro enfrentamento e
desde os seus primeiros passos rumo à liberdade, já planejava as ações tanto
para as eleições municipais do ano vindouro como, o mais importante, as
eleições presidenciais que acontecerão dois anos mais adiante. Já para outros
analistas, o petista veio com o tom correto, denunciando as mazelas do atual
desgoverno ao mesmo tempo em que prega o perdão, pois não busca vingança, mas justiça.
Os historiadores haverão de daqui a algumas
décadas requalificar todo esse discurso. O que dirão, porém, dependerá bastante
do rumo que os acontecimentos tomarem nos idos do presente. Se os jornalistas
não são neutros, porque sua condição humana os colore com visões de mundo de
diferentes espectros, que podem tanto ser de direita quanto de esquerda, como mesmo
de avante, os historiadores muito menos o poderão ser, pois se alimentam da exata
e mesma matéria espectral do sumo da sociedade. Todos somos humanos, não se
haverá, afinal, de negar essa condição primeva de qualquer análise em ciências
sociais, sejam as análises históricas, sociológicas, jornalísticas..., mas
também a dos juristas, não nos olvidemos, embora a respeito disso posterguemos
o tema até um outro artigo. Para a evidência, que diante dos tumultuados tempos
da presente pós-modernidade deve ter jeito e cheiro de denúncia, porque senão
será solenemente ignorada, o que quero deixar registrado é a parcialidade de todos
os analistas de todas as ciências, porque isso não é condição maniqueísta da
maldade humana, mas é fruto da natureza mesmo de ser vivente. É algo
insuperável para esses ávidos consumidores de oxigênio, de tecnologia e de
sonhos que somos nós e os outros.
Mas quem, afinal, saiu da cadeia após longos um
ano e sete meses de cárcere, naquela sexta-feira alegre, de tempo ameno, esperado
e aplaudido por muitos, rechaçado e xingado por outros tantos, ignorado por ninguém?
Era ele, então, o raivoso líder de uma oposição, a preparar as bases que
incendiarão as lutas sociais no Brasil, seguindo o rastro de quase toda a América
Latina? Era ele, talvez, o ardiloso líder de uma famigerada quadrilha, sedento
de poder, dinheiro e vingança, pronto para outra vez se utilizar das massas
para retomar as rédeas da combalida república?
Para mim, lamento dizer, não era nem um e nem outro.
Já cansado desse debate que compreendo como inútil que assola as bases mais
profundas da nossa sociedade, desgostoso por isso de qualquer opinião historiográfica
ou jornalística ou sociológica, ou mesmo antropológica que seja, me pus moco,
simplesmente isso, me pus moco a todas as versões divulgadas nos noticiosos ou
mesmo nas redes sociais. As opiniões encenadas diziam muito mais a respeito de
quem as emitia que dos fatos em si mesmos considerados. Líder com energias
renovadas para comandar seu povo nos rumos da liberdade? Chefe de um bando de
criminosos reincidentes?
Haverei de desgostar a todas as opiniões emitidas
e reenviadas pelas centenas de redes sociais possíveis, o que em si mesmo já
servirá como mérito, pois mesmo sem me apegar à cômoda neutralidade, não
agradarei por certo a nenhuma das possibilidades espectrais das duas grandes hordas
que povoam a humanidade, os do bem e os do mal. Falta apenas a eles se
entenderem melhor a respeito de quem é a força do positivo e quem a do negativo.
Um dia talvez, enfim, descubram que nenhum deles está certo, mas também ninguém
está errado. Coisas que só através do mentalismo universal hermético possam vir
a compreender. E tanto é pessoal e parcial essa minha opinião que conscientemente
abandono a conveniência e neutralidade do hipócrita discurso da primeira pessoa
do plural. Quem aqui fala; melhor, escreve, sou eu mesmo, o sujeito único e
inequívoco da primeira pessoa em singular.
Mas naquela sexta-feira em que intuí o sentimento
da alegria perpassando em vários cantos dessa desordem institucionalizada que
tantos chamam de nação, o que vi saindo da pena extrema da privação de
liberdade foi um senhor, combalido, cansado, traumatizado pelos extremos aos
quais sua vida lhe levou pendularmente, como também é da lei de Hermes. Vi
naquela tez maltratada o menino faminto que emigrou da fome da seca para a opressão
do patrão; o operário que virou líder de massas; o presidente quase analfabeto
que inspirou os maiores intelectuais; o arrogante poderoso que foi alçado da condição
de maior liderança de um país à de réu, condenado e penitenciário. Vi dor em
sua face, em razão das humilhações impostas e das perdas impingidas. Vi revolta
em sua voz, pelas injustiças que lhe administraram. Vi essa revolta mesmo
quando disse que em seu coração só cabe o amor. Vi aquela frase repetida mentalmente
em sua cabeça por quase dois anos e enfim libertada para os ávidos equipamentos
da mídia do mundo inteiro. Em uma palavra direi que vi um ser humano, como
seres humanos são todos os jornalistas, historiadores, antropólogos e juristas.
Em outra palavra direi que vi um ser profundamente solitário e sofrido, sôfrego
por se comunicar com o mundo, carente de dar e receber palavras e afetos, que
no canto mais profundo dos sorrisos distribuídos guarda ainda uma dor
indizível, da qual somente relatará a poucos outros seres de sua extrema
confiança. Vi quanto mal o poder humano pode fazer a outro igual, a quem o exerce
inclusive, e o quanto são desumanas as penalidades humanas.
Vi o que não estava exposto. Refleti a respeito do
que não foi questionado. Se aquele senhor setuagenário é culpado ou inocente
dos crimes que lhe atribuem, disso não perguntei. Se ele foi ou não o maior
benfeitor dos pobres dessa continental terra de quase ninguém, muito menos me
indaguei. O que vi de verdade foi a maldade de seus algozes que se utilizaram
da lei como vindicta. O caso daquele senhor é um ótimo exemplo da utilização do
direito criminal como instrumento de tomada do poder político. Mas também temos
exemplos desse mesmo instrumento para a sua manutenção. Mais que isso, vi os milhares
de pobres injustiçados que são levados e mantidos nos cárceres país afora, que
na mesma quantidade que aprisiona os bandidos mais perigosos também para lá
conduz uma corja de indefesos inocentes, que sem voz ou visibilidade como teve
Lula, são simplesmente misturados e esquecidos em meio aos verdadeiros estupradores,
homicidas e traficantes, lá permanecendo como cômoda mão-de-obra para a
indústria do crime organizado, que é quem de fato estrutura, comanda e lucra
com o sistema prisional brasileiro.
Se alguém, como aquele frágil senhor que se fazia
de forte e sábio para a luz mágica dos holofotes, a prisão foi uma experiência
tão combalida, mesmo a ele tendo sido dirigidos alguns privilégios e
dignidades, como estar em cela individual, receber visitas com regularidade, ser
assistido por um bom e combativo advogado, ter acesso a um mínimo de respeito à
sua condição humana, enfim, imaginei em que condições não saem dos presídios
aqueles submetidos à diária e regular tortura dos cubículos superlotados, à
opressão do crime organizado que é quem de verdade manda no ambiente interno
dos presídios, se obrigando a combater em uma guerra que não é sua, a servir de
massa de manobra para as orquestrações dos chefões desses grupos, indefeso, se
vendo obrigado a se submeter a um duro sistema paralelo de punição, onde há sim
a pena de morte e de cuja sentença não se admite qualquer recurso.
Por detrás de todo o pomposo debate travado pelos
ímpios constitucionalistas da nossa corte suprema, em que se digladiavam para
concluir se a Constituição de fato diz o que lá está grafado em sua literalidade;
para além do verborrágico discurso jurídico que às vezes não muito bem disfarça
o lugar de fala e as preferências ideológicas, às vezes as simples conveniências
de momento de seus prolatores; escondido no canto mais escuro das simbólicas
togas dos magistrados, que no âmago desse simbolismo remonta à opressão do
poder e não à composição restaurativa da justiça. Para além da serena figura
dos guardiões que deveriam ser todos do sistema constitucional que acima de
tudo promete buscar efetivar a dignidade suprema da pessoa humana. Acima mesmo
da justiça ou perseguição que fazem e continuarão fazendo a Lula, está a verdade
inapelável porque formada pelos dias de liberdade tolhidos, pelas vidas ceifadas
e banhadas por bastante sangue; a verdade de que a pena de morte existe nas
prisões e na periferia do Brasil; de que a tortura existe em todos esses
lugares; que seu praticante quando não é o próprio Estado, tem na sua cúmplice
indolência um partícipe histórico e fiel.
É preciso denunciar então, que mesmo que sejam
todos os milhões de prisioneiros do Estado culpados dos maiores crimes, mesmo
aqueles que estão presos à míngua de uma sentença condenatória porque não lhes
foi garantido um defensor; inclusive aqueles outros que são defendidos por uma mera
formalidade por assoberbados causídicos, que por esse e outros motivos não dedicam
o tempo necessário à uma profunda análise dos casos apresentados, renunciando
tantas vezes ao duplo grau. Ainda que nos cárceres somente existissem culpados
e fossem povoados exclusivamente pelos piores tipos possíveis. Mesmo que todos
eles, além de irrecorrivelmente culpados, fossem ainda irrenunciavelmente não recuperáveis.
Até se nos convencêssemos a todos os brasileiros que o cárcere é o melhor,
talvez único destino possível aos bandidos, quando não for mais conveniente
mandar-lhes direto ao cemitério ou quiçá às covas rasas das centenas de necrópoles
clandestinas que sabemos existir. Mesmo aí é imperioso denunciar, todos esses
incorrigíveis malfeitores seguiriam humanos. Mesmo aí é inevitável dizer que o
Estado que mata e tortura é criminoso. O Estado que se omite o é mais ainda. E o
que é cúmplice comete delito qualificado.
Mais que tudo isso, ousamos denunciar, o Estado
como ser de existência não existe. Simplesmente não existe, senão enquanto uma
ficção jurídica, convenientemente articulada e justificada por milhares de
tomos soberbos de discursos úteis, tudo feito para esconder as pessoas, estas
sim, as verdadeiras opressores, os verdadeiros delinquentes. O mundo não se
tornará melhor enquanto não restar claro a todos os estatistas de direita e de
esquerda que, no Brasil, comete crime contra a humanidade aquele que propõe ou
envia outro ser dessa desgraçada espécie entre os animais, que é a nossa, a
humana, ao cárcere. Porque fazê-lo é destiná-la à lenta tortura psicológica da
opressão e da peia física ou ao rápido aniquilamento da morte irrecorrível do
tribunal do crime.
Jorge Emicles
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