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quinta-feira, 14 de novembro de 2019


LULA LIVRE!



                   A imprensa anunciou em polvorosa, como é da natureza dos noticiosos jornalísticos, pois muito mais preocupados com a divulgação escorreita e analítica dos fatos que se transformarão na posteridade em material para os historiadores, que foi solto o ex-Presidente Lula. Alguns disseram que ele saiu raivoso do cárcere, disposto a assumir a liderança da combalida oposição das esquerdas. Ele está pronto, falaram, para um duro enfrentamento e desde os seus primeiros passos rumo à liberdade, já planejava as ações tanto para as eleições municipais do ano vindouro como, o mais importante, as eleições presidenciais que acontecerão dois anos mais adiante. Já para outros analistas, o petista veio com o tom correto, denunciando as mazelas do atual desgoverno ao mesmo tempo em que prega o perdão, pois não busca vingança, mas justiça.
                   Os historiadores haverão de daqui a algumas décadas requalificar todo esse discurso. O que dirão, porém, dependerá bastante do rumo que os acontecimentos tomarem nos idos do presente. Se os jornalistas não são neutros, porque sua condição humana os colore com visões de mundo de diferentes espectros, que podem tanto ser de direita quanto de esquerda, como mesmo de avante, os historiadores muito menos o poderão ser, pois se alimentam da exata e mesma matéria espectral do sumo da sociedade. Todos somos humanos, não se haverá, afinal, de negar essa condição primeva de qualquer análise em ciências sociais, sejam as análises históricas, sociológicas, jornalísticas..., mas também a dos juristas, não nos olvidemos, embora a respeito disso posterguemos o tema até um outro artigo. Para a evidência, que diante dos tumultuados tempos da presente pós-modernidade deve ter jeito e cheiro de denúncia, porque senão será solenemente ignorada, o que quero deixar registrado é a parcialidade de todos os analistas de todas as ciências, porque isso não é condição maniqueísta da maldade humana, mas é fruto da natureza mesmo de ser vivente. É algo insuperável para esses ávidos consumidores de oxigênio, de tecnologia e de sonhos que somos nós e os outros.
                   Mas quem, afinal, saiu da cadeia após longos um ano e sete meses de cárcere, naquela sexta-feira alegre, de tempo ameno, esperado e aplaudido por muitos, rechaçado e xingado por outros tantos, ignorado por ninguém? Era ele, então, o raivoso líder de uma oposição, a preparar as bases que incendiarão as lutas sociais no Brasil, seguindo o rastro de quase toda a América Latina? Era ele, talvez, o ardiloso líder de uma famigerada quadrilha, sedento de poder, dinheiro e vingança, pronto para outra vez se utilizar das massas para retomar as rédeas da combalida república?
                   Para mim, lamento dizer, não era nem um e nem outro. Já cansado desse debate que compreendo como inútil que assola as bases mais profundas da nossa sociedade, desgostoso por isso de qualquer opinião historiográfica ou jornalística ou sociológica, ou mesmo antropológica que seja, me pus moco, simplesmente isso, me pus moco a todas as versões divulgadas nos noticiosos ou mesmo nas redes sociais. As opiniões encenadas diziam muito mais a respeito de quem as emitia que dos fatos em si mesmos considerados. Líder com energias renovadas para comandar seu povo nos rumos da liberdade? Chefe de um bando de criminosos reincidentes?
                   Haverei de desgostar a todas as opiniões emitidas e reenviadas pelas centenas de redes sociais possíveis, o que em si mesmo já servirá como mérito, pois mesmo sem me apegar à cômoda neutralidade, não agradarei por certo a nenhuma das possibilidades espectrais das duas grandes hordas que povoam a humanidade, os do bem e os do mal. Falta apenas a eles se entenderem melhor a respeito de quem é a força do positivo e quem a do negativo. Um dia talvez, enfim, descubram que nenhum deles está certo, mas também ninguém está errado. Coisas que só através do mentalismo universal hermético possam vir a compreender. E tanto é pessoal e parcial essa minha opinião que conscientemente abandono a conveniência e neutralidade do hipócrita discurso da primeira pessoa do plural. Quem aqui fala; melhor, escreve, sou eu mesmo, o sujeito único e inequívoco da primeira pessoa em singular.
                   Mas naquela sexta-feira em que intuí o sentimento da alegria perpassando em vários cantos dessa desordem institucionalizada que tantos chamam de nação, o que vi saindo da pena extrema da privação de liberdade foi um senhor, combalido, cansado, traumatizado pelos extremos aos quais sua vida lhe levou pendularmente, como também é da lei de Hermes. Vi naquela tez maltratada o menino faminto que emigrou da fome da seca para a opressão do patrão; o operário que virou líder de massas; o presidente quase analfabeto que inspirou os maiores intelectuais; o arrogante poderoso que foi alçado da condição de maior liderança de um país à de réu, condenado e penitenciário. Vi dor em sua face, em razão das humilhações impostas e das perdas impingidas. Vi revolta em sua voz, pelas injustiças que lhe administraram. Vi essa revolta mesmo quando disse que em seu coração só cabe o amor. Vi aquela frase repetida mentalmente em sua cabeça por quase dois anos e enfim libertada para os ávidos equipamentos da mídia do mundo inteiro. Em uma palavra direi que vi um ser humano, como seres humanos são todos os jornalistas, historiadores, antropólogos e juristas. Em outra palavra direi que vi um ser profundamente solitário e sofrido, sôfrego por se comunicar com o mundo, carente de dar e receber palavras e afetos, que no canto mais profundo dos sorrisos distribuídos guarda ainda uma dor indizível, da qual somente relatará a poucos outros seres de sua extrema confiança. Vi quanto mal o poder humano pode fazer a outro igual, a quem o exerce inclusive, e o quanto são desumanas as penalidades humanas.
                   Vi o que não estava exposto. Refleti a respeito do que não foi questionado. Se aquele senhor setuagenário é culpado ou inocente dos crimes que lhe atribuem, disso não perguntei. Se ele foi ou não o maior benfeitor dos pobres dessa continental terra de quase ninguém, muito menos me indaguei. O que vi de verdade foi a maldade de seus algozes que se utilizaram da lei como vindicta. O caso daquele senhor é um ótimo exemplo da utilização do direito criminal como instrumento de tomada do poder político. Mas também temos exemplos desse mesmo instrumento para a sua manutenção. Mais que isso, vi os milhares de pobres injustiçados que são levados e mantidos nos cárceres país afora, que na mesma quantidade que aprisiona os bandidos mais perigosos também para lá conduz uma corja de indefesos inocentes, que sem voz ou visibilidade como teve Lula, são simplesmente misturados e esquecidos em meio aos verdadeiros estupradores, homicidas e traficantes, lá permanecendo como cômoda mão-de-obra para a indústria do crime organizado, que é quem de fato estrutura, comanda e lucra com o sistema prisional brasileiro.
                   Se alguém, como aquele frágil senhor que se fazia de forte e sábio para a luz mágica dos holofotes, a prisão foi uma experiência tão combalida, mesmo a ele tendo sido dirigidos alguns privilégios e dignidades, como estar em cela individual, receber visitas com regularidade, ser assistido por um bom e combativo advogado, ter acesso a um mínimo de respeito à sua condição humana, enfim, imaginei em que condições não saem dos presídios aqueles submetidos à diária e regular tortura dos cubículos superlotados, à opressão do crime organizado que é quem de verdade manda no ambiente interno dos presídios, se obrigando a combater em uma guerra que não é sua, a servir de massa de manobra para as orquestrações dos chefões desses grupos, indefeso, se vendo obrigado a se submeter a um duro sistema paralelo de punição, onde há sim a pena de morte e de cuja sentença não se admite qualquer recurso.
                   Por detrás de todo o pomposo debate travado pelos ímpios constitucionalistas da nossa corte suprema, em que se digladiavam para concluir se a Constituição de fato diz o que lá está grafado em sua literalidade; para além do verborrágico discurso jurídico que às vezes não muito bem disfarça o lugar de fala e as preferências ideológicas, às vezes as simples conveniências de momento de seus prolatores; escondido no canto mais escuro das simbólicas togas dos magistrados, que no âmago desse simbolismo remonta à opressão do poder e não à composição restaurativa da justiça. Para além da serena figura dos guardiões que deveriam ser todos do sistema constitucional que acima de tudo promete buscar efetivar a dignidade suprema da pessoa humana. Acima mesmo da justiça ou perseguição que fazem e continuarão fazendo a Lula, está a verdade inapelável porque formada pelos dias de liberdade tolhidos, pelas vidas ceifadas e banhadas por bastante sangue; a verdade de que a pena de morte existe nas prisões e na periferia do Brasil; de que a tortura existe em todos esses lugares; que seu praticante quando não é o próprio Estado, tem na sua cúmplice indolência um partícipe histórico e fiel.
                   É preciso denunciar então, que mesmo que sejam todos os milhões de prisioneiros do Estado culpados dos maiores crimes, mesmo aqueles que estão presos à míngua de uma sentença condenatória porque não lhes foi garantido um defensor; inclusive aqueles outros que são defendidos por uma mera formalidade por assoberbados causídicos, que por esse e outros motivos não dedicam o tempo necessário à uma profunda análise dos casos apresentados, renunciando tantas vezes ao duplo grau. Ainda que nos cárceres somente existissem culpados e fossem povoados exclusivamente pelos piores tipos possíveis. Mesmo que todos eles, além de irrecorrivelmente culpados, fossem ainda irrenunciavelmente não recuperáveis. Até se nos convencêssemos a todos os brasileiros que o cárcere é o melhor, talvez único destino possível aos bandidos, quando não for mais conveniente mandar-lhes direto ao cemitério ou quiçá às covas rasas das centenas de necrópoles clandestinas que sabemos existir. Mesmo aí é imperioso denunciar, todos esses incorrigíveis malfeitores seguiriam humanos. Mesmo aí é inevitável dizer que o Estado que mata e tortura é criminoso. O Estado que se omite o é mais ainda. E o que é cúmplice comete delito qualificado.
                   Mais que tudo isso, ousamos denunciar, o Estado como ser de existência não existe. Simplesmente não existe, senão enquanto uma ficção jurídica, convenientemente articulada e justificada por milhares de tomos soberbos de discursos úteis, tudo feito para esconder as pessoas, estas sim, as verdadeiras opressores, os verdadeiros delinquentes. O mundo não se tornará melhor enquanto não restar claro a todos os estatistas de direita e de esquerda que, no Brasil, comete crime contra a humanidade aquele que propõe ou envia outro ser dessa desgraçada espécie entre os animais, que é a nossa, a humana, ao cárcere. Porque fazê-lo é destiná-la à lenta tortura psicológica da opressão e da peia física ou ao rápido aniquilamento da morte irrecorrível do tribunal do crime.

Jorge Emicles

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