LEGADO DO PORVIR
O que de melhor poderíamos legar à próxima
geração, em especial aos filhos, senão a posteridade de um futuro pacífico e
próspero, pleno de boas colheitas. O futuro é filho do presente, sua
consequência direta, de modo que se há pretensão em construir um legado do
porvir à seguinte geração, é no agora que se deve alicerçar os fundamentos
desse tempo que haverá de alvorecer para ser testemunhado pela descendência
humana.
Através das sucessivas gerações nos fazemos
eternos, especialmente por intermédio da descendência direta. Nossos filhos são
mais que a continuação da vida na matéria, representam a sequência de nosso
próprio existir. Há um legado que herdamos da ascendência e repassamos aos
sucessores. Essa é uma, senão a mais importante, das formas de o ser humano se
eternizar, porque existe um elo que nos liga desde o primeiro homem até o
derradeiro, passando necessariamente por cada um de nós, sendo a cultura quem
liga cada qual desses quase infinitos elementos.
Zelar da descendência é cuidar de si próprio, mas
também de toda a humanidade, pois somente assim poderemos sobreviver na
matéria, seja enquanto espécie, seja enquanto indivíduos. Sejamos bons pais,
então.
Aristóteles, um dos maiores entre os gregos, era
acima de todas as outras coisas um educador. Como bem ciente dessa
irrenunciável missão dos ancestrais em face da sua descendência, tratou de
legar a seu filho, Nicômacos, um dos mais completos conjunto de conselhos. O
melhor que um pai poderia fazer a seu filho. Uma de suas obras mais famosas,
Ética a Nicômacos, são na verdade as lições de um pai à sua descendência.
Eis um bom exemplo a seguir.
Porquanto não possuímos a profunda visão de mundo
aristotélica, embora dela bebamos ainda hoje nas tantas e vãs tentativas de
compreender o caos da modernidade, ainda assim não nos desobrigamos do
compromisso de afirmar valores necessários à posteridade.
Mas que poderíamos dizer a algum suposto filho
ainda não nascido? Que mundo a humanidade do presente haverá de legar à
humanidade do futuro? Na visão de quem consome o oxigênio do hoje, um mundo
caótico, no mínimo.
Mas, se pretendemos alicerçar um futuro grandioso,
primeiro teremos que compreender o
presente tumultuado em que habitamos, pois é somente a partir da consciência
que poderemos alterar a atualidade.
Para a nossa posteridade, legamos o nosso
presente, porque é somente a partir dele que minimamente podemos tecer alguma
compreensão, rudimentar que seja. E esse mundo não é fácil de sobreviver, muito
menos de ser compreendido.
Daqui falam, talvez em demasia, da verdade, da
ética, do que é politicamente correto. Se ensina os valores da ecologia, a
necessidade de um consumo consciente e sustentável e de um crescente elevo
espiritual. As pessoas aparentam ser livres para falar e agir como bem lhes
aprouver. A Constituição Cidadão nos garante. Mas isso só no visor da televisão
ou nos monitores dos computadores e smartfones, porque a verdade mesma, a do
cotidiano; a que vivemos e sentimos nos corredores dos prédios públicos e
privados ou nas calçadas, praças e outras vias é bem distinta. É a do
preconceito, da penúria de espírito e da intolerância. Os professores não podem
falar a sua verdade se ela não for a imposta pelo opressor. Mais que nunca, a
educação vem tomando caminhos tirânicos e alienantes. O consumo irresponsável é
cada vez mais estimulado. As práticas religiosas são o mote para a perseguição
do que é diferente, porque parece que Deus voltou a ser aquela Criatura
enciumada e perseguidora que lançou pragas aos egípcios e arrasou exércitos de
inimigos.
Ainda pior que esse comportamento idiossincrático
é compreender que assim é não por conta de alguma droga alienante, de um algum
novo meio de hipnose coletiva, que abobalha as pessoas, fazendo-as ceder
ingenuamente à maldade de um novo e insólito ditador. Nada disso. As pessoas
agem como são em essência. Revelam sua maldade, preconceito e intolerância. Se
matam os homossexuais porque se os odeia. Se nega a miséria humilhante da fome
porque os pobres e inválidos precisam ser eliminados, vez que não podem
consumir. Se proíbem as reflexões sociológicas porque é mais fácil amansar as
massas quando são incultas.
Os culpados não são os governantes, mas os ímpios
que os elegeram e os aplaudem. O maior dos erros da Segunda Guerra foi imaginar
que Hitler alienou todo um povo. Nada disso. Assim como os alemães apoiaram
todas as atrocidades nazistas; os italianos as dos fascistas; e os russos as
dos stalinistas, também a contemporaneidade apoia os facínoras de plantão. Os norte-americanos
são contra a migração porque não se rebelam contra os muros da perseguição. Os
europeus são racistas porque seguem elegendo os mesmos governos que fecham os
portos e as fronteiras aos refugiados das guerras africanas e orientais, de
cujas raízes mais remotas são os derradeiros responsáveis. Os brasileiros são misoneístas,
sexistas, preconceituosos aos nordestinos, contra a educação de qualidade e
mandam às favas a consciência ecológica e a preservação das riquezas naturais
pelos mesmos motivos. Querem ser governados por déspotas, que administram para
o umbigo e para a família. Acham que os seus governantes, os magistrados em
especial, podem e devem abusar do poder e mentir impunemente, desde que o façam
com o propósito de eliminar do poder os inimigos. Se indignam apenas contra a
corrupção da esquerda vermelha, pois não se incomodam nem um pouco com o abuso
praticado pelos algozes da enegrecida corrupção rubra.
E tudo isso se faz mundo afora em nome da verdade.
Hipocrisia seria o outro nome da nossa espécie?
Não pensamos iguais, claro. Também há os
americanos ecológicos, os europeus caridosos e os brasileiros progressistas. É
outro engodo da metafísica (ou se preferimos, da arrogante ciência moderna) a
de nos unificar em estanques compartimentos, como se de verdade, enquanto povo,
tivéssemos as mesmas raízes, cultura e progresso. Somos no mundo inteiro castas
diferentes, de valores bem distintos que, grosso modo, nos dividimos entre os
vencidos e vencedores da guerra original que fundou o Estado. Os famosos
opressores e oprimidos, patrícios e plebeus, aristocratas e provo, burgueses e
proletário, burocratas e cidadãos, dominantes e dominados. São todos nomes
distintos para a mesma subjugação historicamente repetida em ciclos regulares,
que se destroem e renovam para continuar no mesmo. O hoje é uma simples
repetição desse processo.
Conscientizar o futuro dessa tragédia quase
invencível é a esperança única de que no porvir o novo se construa de fato, sem
maquiagens ou engodos, como é no presente.
Nosso conselho ao futuro incerto da posteridade,
vista ela desde esta cambaleante realidade é de denúncia, sim, mas também de
consciência. Não de revolta, mas da compreensão de que as coisas precisam se
dar com sofreguidão, pois a clareza necessita das trevas para ser distinguida e
reconhecida por seu valor intrínseco.
Que ao menos nossos filhos, pelo nosso exemplo,
aprendam a como não proceder, a praticar a verdade e a reconhecer que não somos
povos distintos que habitam o mesmo planeta, mas uma só e inseparável comunidade,
que só quando unida atingirá o esplendor da felicidade.
Jorge Emicles
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