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domingo, 21 de julho de 2019


LEGADO DO PORVIR



                   O que de melhor poderíamos legar à próxima geração, em especial aos filhos, senão a posteridade de um futuro pacífico e próspero, pleno de boas colheitas. O futuro é filho do presente, sua consequência direta, de modo que se há pretensão em construir um legado do porvir à seguinte geração, é no agora que se deve alicerçar os fundamentos desse tempo que haverá de alvorecer para ser testemunhado pela descendência humana.
                   Através das sucessivas gerações nos fazemos eternos, especialmente por intermédio da descendência direta. Nossos filhos são mais que a continuação da vida na matéria, representam a sequência de nosso próprio existir. Há um legado que herdamos da ascendência e repassamos aos sucessores. Essa é uma, senão a mais importante, das formas de o ser humano se eternizar, porque existe um elo que nos liga desde o primeiro homem até o derradeiro, passando necessariamente por cada um de nós, sendo a cultura quem liga cada qual desses quase infinitos elementos.
                   Zelar da descendência é cuidar de si próprio, mas também de toda a humanidade, pois somente assim poderemos sobreviver na matéria, seja enquanto espécie, seja enquanto indivíduos. Sejamos bons pais, então.
                   Aristóteles, um dos maiores entre os gregos, era acima de todas as outras coisas um educador. Como bem ciente dessa irrenunciável missão dos ancestrais em face da sua descendência, tratou de legar a seu filho, Nicômacos, um dos mais completos conjunto de conselhos. O melhor que um pai poderia fazer a seu filho. Uma de suas obras mais famosas, Ética a Nicômacos, são na verdade as lições de um pai à sua descendência.
                   Eis um bom exemplo a seguir.
                   Porquanto não possuímos a profunda visão de mundo aristotélica, embora dela bebamos ainda hoje nas tantas e vãs tentativas de compreender o caos da modernidade, ainda assim não nos desobrigamos do compromisso de afirmar valores necessários à posteridade.
                   Mas que poderíamos dizer a algum suposto filho ainda não nascido? Que mundo a humanidade do presente haverá de legar à humanidade do futuro? Na visão de quem consome o oxigênio do hoje, um mundo caótico, no mínimo.
                   Mas, se pretendemos alicerçar um futuro grandioso, primeiro teremos que  compreender o presente tumultuado em que habitamos, pois é somente a partir da consciência que poderemos alterar a atualidade.
                   Para a nossa posteridade, legamos o nosso presente, porque é somente a partir dele que minimamente podemos tecer alguma compreensão, rudimentar que seja. E esse mundo não é fácil de sobreviver, muito menos de ser compreendido.
                   Daqui falam, talvez em demasia, da verdade, da ética, do que é politicamente correto. Se ensina os valores da ecologia, a necessidade de um consumo consciente e sustentável e de um crescente elevo espiritual. As pessoas aparentam ser livres para falar e agir como bem lhes aprouver. A Constituição Cidadão nos garante. Mas isso só no visor da televisão ou nos monitores dos computadores e smartfones, porque a verdade mesma, a do cotidiano; a que vivemos e sentimos nos corredores dos prédios públicos e privados ou nas calçadas, praças e outras vias é bem distinta. É a do preconceito, da penúria de espírito e da intolerância. Os professores não podem falar a sua verdade se ela não for a imposta pelo opressor. Mais que nunca, a educação vem tomando caminhos tirânicos e alienantes. O consumo irresponsável é cada vez mais estimulado. As práticas religiosas são o mote para a perseguição do que é diferente, porque parece que Deus voltou a ser aquela Criatura enciumada e perseguidora que lançou pragas aos egípcios e arrasou exércitos de inimigos.
                   Ainda pior que esse comportamento idiossincrático é compreender que assim é não por conta de alguma droga alienante, de um algum novo meio de hipnose coletiva, que abobalha as pessoas, fazendo-as ceder ingenuamente à maldade de um novo e insólito ditador. Nada disso. As pessoas agem como são em essência. Revelam sua maldade, preconceito e intolerância. Se matam os homossexuais porque se os odeia. Se nega a miséria humilhante da fome porque os pobres e inválidos precisam ser eliminados, vez que não podem consumir. Se proíbem as reflexões sociológicas porque é mais fácil amansar as massas quando são incultas.
                   Os culpados não são os governantes, mas os ímpios que os elegeram e os aplaudem. O maior dos erros da Segunda Guerra foi imaginar que Hitler alienou todo um povo. Nada disso. Assim como os alemães apoiaram todas as atrocidades nazistas; os italianos as dos fascistas; e os russos as dos stalinistas, também a contemporaneidade apoia os facínoras de plantão. Os norte-americanos são contra a migração porque não se rebelam contra os muros da perseguição. Os europeus são racistas porque seguem elegendo os mesmos governos que fecham os portos e as fronteiras aos refugiados das guerras africanas e orientais, de cujas raízes mais remotas são os derradeiros responsáveis. Os brasileiros são misoneístas, sexistas, preconceituosos aos nordestinos, contra a educação de qualidade e mandam às favas a consciência ecológica e a preservação das riquezas naturais pelos mesmos motivos. Querem ser governados por déspotas, que administram para o umbigo e para a família. Acham que os seus governantes, os magistrados em especial, podem e devem abusar do poder e mentir impunemente, desde que o façam com o propósito de eliminar do poder os inimigos. Se indignam apenas contra a corrupção da esquerda vermelha, pois não se incomodam nem um pouco com o abuso praticado pelos algozes da enegrecida corrupção rubra.
                   E tudo isso se faz mundo afora em nome da verdade. Hipocrisia seria o outro nome da nossa espécie?
                   Não pensamos iguais, claro. Também há os americanos ecológicos, os europeus caridosos e os brasileiros progressistas. É outro engodo da metafísica (ou se preferimos, da arrogante ciência moderna) a de nos unificar em estanques compartimentos, como se de verdade, enquanto povo, tivéssemos as mesmas raízes, cultura e progresso. Somos no mundo inteiro castas diferentes, de valores bem distintos que, grosso modo, nos dividimos entre os vencidos e vencedores da guerra original que fundou o Estado. Os famosos opressores e oprimidos, patrícios e plebeus, aristocratas e provo, burgueses e proletário, burocratas e cidadãos, dominantes e dominados. São todos nomes distintos para a mesma subjugação historicamente repetida em ciclos regulares, que se destroem e renovam para continuar no mesmo. O hoje é uma simples repetição desse processo.
                   Conscientizar o futuro dessa tragédia quase invencível é a esperança única de que no porvir o novo se construa de fato, sem maquiagens ou engodos, como é no presente.
                   Nosso conselho ao futuro incerto da posteridade, vista ela desde esta cambaleante realidade é de denúncia, sim, mas também de consciência. Não de revolta, mas da compreensão de que as coisas precisam se dar com sofreguidão, pois a clareza necessita das trevas para ser distinguida e reconhecida por seu valor intrínseco.
                   Que ao menos nossos filhos, pelo nosso exemplo, aprendam a como não proceder, a praticar a verdade e a reconhecer que não somos povos distintos que habitam o mesmo planeta, mas uma só e inseparável comunidade, que só quando unida atingirá o esplendor da felicidade.

Jorge Emicles

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