MARRANO - CONTO
A maior parte do conteúdo deste relato aprendi através
da descendência do coronel Leandro Bizerra Monteiro. Segundo ouvi desde menino
descalço, apreciador atento que fui das histórias contadas ao redor das
fogueiras, acesas até altas madrugadas nos terreiros das casas grande, se conta
que em tempos de memória quase esquecida por aqui habitavam valentes índios,
batizados pelos brancos de Cariris, em razão da triste e séria expressão facial
que possuíam. A extensão de seus domínios era marcantemente grande, chegando
até as proximidades do rio São Francisco, já nos confins da distante Bahia.
Em algum tempo, cuja data precisa não me chega à
memória, os Cariris aprisionaram um escravo negro, propriedade de algum senhor
de terras das margens do já então velho Chico. O negrinho adaptou-se com
bastante facilidade ao modo de vida dos selvagens, passando a ser reconhecido
como um dos seus. Viveu em paz e harmonia com seu novo povo, até que os Cariris
tiveram que enfrentar séria guerra com a tribo Cariú, chegando a posição de
franca desvantagem, a ponto de amargar iminente derrota.
A fim de salvar seu povo, o negro retornou às suas
origens em Juazeiro, Bahia, indo ter com os chefes da já famosa Casa da Torre,
integrada pela descendência do lendário Diogo Alves Correa, o Caramuru, com o
intento de guia-los em entrada até as desconhecidas terras de dentro dos
Cariri, em risco de serem perdidas para a tribo inimiga, prometida aos
exploradores como um oásis fértil e úmido a guarnecer toda a sequidão do
restante do sertão ao derredor. E, de fato, não exagerou na pujante beleza e
riqueza do lugar. Foram estes pioneiros os primeiros habitantes brancos da
região e guardam até o presente o sangue de Caramuru na linhagem das famílias
mais antigas que a habitam.
Os exploradores chegaram ainda a tempo de salvar
os Cariris. Violentamente reprimiram e massacraram os seus inimigos, invadindo
impiedosamente seus povoados e matando sem qualquer piedade todos os aborígenes
que ali encontraram. Aos Cariri foram doadas terras onde estabeleceram a Missão
do Miranda, tendo sido obrigados a receber os signos cristãos através da firme
direção de Frei Carlos Maria de Ferrara, frade capuchino. É deste povoado que
mais adiante surgiria a Vila Real do Crato.
Antes desse episódio, lá pelo ano da graça de 1646,
atendendo a reclamações do governador da Bahia, Antonio Teles da Silva,
familiar do Santo Ofício, como eram conhecidos os leigos integrantes da
inquisição portuguesa, que por força desta e de outras reclamações recebidas
enviou ordem ao bispo da Bahia D. Pedro da Silva convocando toda a população de
Salvador a dar conta da atuação dos cristãos novos da província. Já tive a
curiosidade de pesquisar em dezenas de livros de história, de épocas, autores e
escolas bem distintas. Todos, contudo, negam a veracidade da história que estou
a narrar, pois ensinam simplesmente que no Brasil colonial nunca houve
inquisição, nem nunca houveram judeus. Não é esta, contudo, a versão que
aprendi da descendência do coronel Leandro Bizerra, que vem a ser a mesma do
próprio Caramuru.
A história que sei é a de que, na península
Ibérica, após a consolidação do domínio dos reis cristãos e expulsão dos árabes
daquela região, passou a ser cada vez maior a resistência à figura dos judeus,
a ponto de serem expulsos de Portugal por ordem do rei D. Manuel I, no ano de
1496, da mesma forma que já haviam sido expulsos antes do reino de Castela. Com
as novas navegações às recém descobertas terras da américa, a ida para o novo
continente foi o caminho seguro preferido por muitos dos refugiados. Assim,
desde os primeiros aportamentos nas terras brasileiras já haviam judeus
embarcados nas naus portuguesas. O que não eram era confessos seguidores de
Moisés, pois haviam sido obrigados à conversão forçada nas terras da Europa,
como condição para não serem queimados nas fogueiras dos autos de fé da
inquisição. Eram os cristãos novos, escrachados pela população simplesmente
como marranos, que é uma expressão perniciosa para designar os porcos.
Os motivos à perseguição aos judeus, a inquisição atribuía
aos pecados supostamente por eles cometidos contra Cristo em sua crucificação,
pois teriam sido os judeus, segundo a tradição católica, os responsáveis pela
prisão e crucificação do Ungido. Como se o próprio Jesus não houvesse
professado a fé na Torá, sido circuncisado e frequentado o templo de Salomão. A
verdade, contudo, é que foi o destaque social e as riquezas acumuladas pelo
povo escolhido que despertou a ganância dos cristãos velhos. A inquisição foi
simplesmente o pretexto para tomar-lhes todo o patrimônio acumulado com justiça
e trabalho. A cultura judaica sempre incentivou as famílias a investirem na
educação de seus filhos. Não por vaidade, mas por ser o conhecimento o único
patrimônio que não poderia ser tomado pelos governantes, sem embargo das
notórias facilidades e posições que a erudição sempre propiciaria alcançar. Os
judeus, apesar de toda a perseguição e preconceito, sempre foram destacados na
administração pública da península Ibérica e no desenvolvimento das grandes
navegações, sem dizer de outros importantes feitos para a ciência e a política.
Não é a ocasião de inventariar a vasta
contribuição do judaísmo à ciência, mas não seria correto se não esclarecesse,
por exemplo, que enquanto os cristãos relutavam em aceitar a forma ovalada da
terra, o Zhoar Hebreu já afirmava que a terra girava sobre seu eixo, como uma
bola, e enquanto na metade do globo era dia, na outra havia escuridão. Foram os
judeus que criaram ou aperfeiçoaram os mais importantes instrumentos de
navegação, como as cartas marítimas, o astrolábio e outros mais. São
conhecidas, mesmo que com reservas, as ligações estreitas de Colombo e os
judeus. Mas não é disso que deve tratar o presente relato. A história que quero
contar é a da perseguição aos judeus já em terras brasileiras, iniciada em
Salvador, mediante ordem da inquisição portuguesa do ano de 1646.
O método da investigação era o mais sórdido e
simples possível. Bastava alguma delação, sem qualquer fundamento ou
minimamente que fosse robustecida pela convicção mais elementar, para que um
cidadão de bem fosse denunciado por crime de judaísmo. Eram simples boatos,
tantas vezes mal disfarçados de vindicta ou inveja, suficientes, contudo, a
levar à prisão e ao desterro famílias inteiras. Principalmente as de maior
sucesso financeiro.
Uma vez preso pela representação da santa
inquisição, a única escapatória possível era a confissão da prática secreta dos
costumes e tradições judaicas. Os que assim procediam, mesmo não o tendo feito
jamais, poderiam retomar à vida comunitária, muito embora quase sempre
despojados de suas propriedades e obrigados a utilizar o famigerado sambenito,
hábito penitencial que acusava publicamente a condição de penitenciado em auto
de fé. Aos que não confessassem, caberia a infâmia da dorida morte na fogueira.
Em muitas ocasiões, o crime consistia simplesmente em ter tido um ancestral
judeu ou mesmo não ser capaz de provar de forma robusta não possuir tal
ascendência. Mesmo entre os convertidos, eram bem poucos os que de verdade praticavam
as regras em segredo. Pior que isso, eram seres céticos, que não acreditavam na
fé católica; que iam às missas para dar a necessária satisfação social, simplesmente,
mas que ao mesmo tempo haviam se perdido das festas e tradições judaicas.
Estavam no mundo sem de fato habitá-lo.
Só que não importava de verdade se eram
judaizantes ou não. O que valia era o seu prestígio e patrimônio que seriam
sumariamente usurpados, juntamente com sua dignidade. Neste período foram
vários os senhores de engenho e comerciantes notáveis, de bom trânsito na
sociedade local, que de tudo foram despojados por conta da terrível denúncia de
marranismo. Mesmo os que sobreviveram, nunca mais foram felizes e jamais
recuperaram quaisquer de suas muitas perdas. Quase sempre, morreram na
indigência e no esquecimento.
A única solução a este estado de coisas era a urgente
fuga. Outra vez, buscar lugares esquecidos da civilização onde, de alguma
maneira, fosse possível recomeçar a vida novamente. As famílias ameaçadas foram
para diferentes localidades. Buscando na genealogia de vários lugares
distintos, encontrei descendência dos marranos em Sergipe, Paraíba, Rio Grande
do Norte e até em Pernambuco, estes últimos de linhagem distinta de outros
judeus que chegaram juntamente com o conde Maurício de Nassau e mais adiante
foram os pioneiros de Nova York.
Uma linhagem especial veio ter em Juazeiro, às
margens do Rio São Francisco. Mais tarde integrou-se ao clã da Casa da Torre e
vários deles acompanharam a entrada, guiados pelo negro índio Cariri, que veio
dar na Missão do Miranda de que já falei. Minha ascendência é dessa linhagem, o
que não sei bem se faz de mim um judeu, um marrano, um cristão novo ou um
cético simplesmente.
Pelos meus ancestrais, de alguma maneira cheguei
nas terras conhecidas como o Cariri com seus primeiros descobridores. Por isso,
estou ligado às suas raízes mais remotas. Há outras famílias marranas que
também vieram pela mesma época. Quase nenhuma praticava de fato o judaísmo, mas
ainda assim estavam marcadas pela pecha de ser seguidor do mestre Moisés. Como
se fosse pecado aceitar e cumprir os dez mandamentos da lei de Deus. Era
preciso esquecer e ao mesmo tempo preservar a história da nossa e das outras
famílias que fundaram o Cariri. Já naquele tempo não possuíamos mais a cultura
judaica, não sabíamos exatamente a época e o significado das festas; já não
repetíamos as antigas orações hebraicas. Apenas guardávamos reminiscências de
uma cultura esquecida. Gostávamos de descansar aos sábados, varríamos as casas
de dentro para fora e ao mesmo tempo em que exibíamos as estátuas católicas,
guardávamos discretamente o símbolo de Salomão em lugares secretos de nossas
casas.
Íamos às festas de Nossa Senhora da Penha, participávamos
das quermesses, mas não éramos capazes de contar nossos verdadeiros segredos
aos padres, antes das confissões obrigatórias que precediam as novenas dos
santos. Nem éramos mais judeus, nem fomos capazes de nos tornar verdadeiros
cristãos. Éramos um povo sem identidade quase nenhuma. Sobreviventes da ignomínia
humana, simplesmente.
Como a origem dessas famílias não poderiam ser
registradas, sob pena de atrair o indesejável olhar da inquisição, aos poucos
nossas raízes foram sendo perdidas. Nas primeiras gerações, muito preservou-se
na oralidade, mas na medida em que elas se renovaram, as histórias começaram a
ser esquecidas. As coisas que ouvia nas fogueiras da casa do coronel Leandro
Bizerra Monteiro eram entendidas pela mocidade que as escutava atentamente mais
como lendas que como acontecimentos verdadeiros. Principalmente porque nunca
foram corroboradas pelos livros de história. A única memória que ainda hoje
remanesce a respeito dos antigos marranos que povoaram o Cariri é que, para
marcarem por definitivo sua origem, passaram a usar nomes de família associados
a árvores. E é assim a única forma de sabermos quem foram estes desconhecidos
personagens que habitaram as terras dos Cariri, sucedendo aos índios, cuja
história é tão triste quanto a deles próprios.
Jorge
Emicles
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