MAGUS
MAGISTER
Após prolongada meditação, postou-se Ricardo
Buendia de olhos abertos diante de seu pequeno altar de meditação, onde regularmente
exercitava a contemplação, estudos e práticas relativas a seus altos
conhecimentos. Era um raro iniciado, detentor do grau de magus magister da ordem dos Iluminati,
de origem, propósitos e até mesmo existência objeto de controversos debates no restrito
círculo dos empolgados estudiosos do tema. Aos que compreendiam a ordem dos
graus e os dons a eles relacionados, sabia-se que aquele título atribuía ao seu
detentor poderes taumaturgos, inconcebíveis ainda hoje à ciência oficial. Se
tratava, portanto, de pessoa de elevada reputação e influência no permeio da magia.
Diante do espelho do altar, insolitamente foi
habitado por pensamentos que não lhe eram tão usuais. Para que propósito,
afinal, lhe serviriam de fato os tão elevados conhecimentos e consequentes
poderes, paulatinamente adquiridos ao longo de toda a sua vida de rotineiros e
extenuantes estudos e práticas? Era capacitado a mover objetos pelo poder do
pensamento, a influenciar a consciência de terceiros através de suas auras, pressentia
energias e presenças ocultas em todos os lugares, adivinhava o pensamento e os
sentimentos de pessoas próximas e distantes e tantas outras coisas efetivamente
dignas do título que possuía, o de mágico mago. Ainda assim estava sujeito a todas
as fraquezas e vicissitudes de todos os seres humanos em geral. Seu
conhecimento e implicado poder não o livrava de dias tristes, desilusões amorosas,
decepções com os que lhe são próximos e mesmo de nenhum outro problema que
desde a origem dos tempos assola os seres mortais. A mortalidade mesmo lhe
pertencia na mesma medida que a qualquer de nossa espécie.
Bem ao contrário. Estava plenamente cônscio da lei
cósmica da responsabilidade, explicitada na ideia de que quanto maior o
conhecimento, maior o poder, mas também a responsabilidade de seu titular.
Assim, o alto conhecimento que possuía garantia uma consequência bem mais
severa em face das ações praticadas. Aqui, sabia ser a aplicação de outra lei,
a da causa e efeito, bem conhecida na física, porém de ampla aplicação na vida
psíquica das pessoas. Uma vez que alguém conhecesse amiúde as consequências de
determinada ação, o Cósmico lhe exigia responsabilidades superiores à daqueles
que agissem acometidos pela ignorância. O próprio mestre Jesus, em passagens do
texto canônico, através de parábolas, faz referência e este distinto grau de
responsabilidade, como de fato se observa no Evangelho de Lucas que “de todo
aquele a quem muito é dado, muito será requerido e daquele a quem muito é
confiado, mais ainda lhe será exigido”.
Adquirir tais conhecimentos, mais que um honor,
além dos poderes implicados, era uma profunda responsabilidade, vez que
obrigava seu detentor a agir com cauteloso esmero, total concentração e
redobrada atenção. Porque um mínimo desvio na adequada aplicação das leis
cósmicas importava em severas consequências. As práticas relacionadas aos
poderes recebidos importavam na sua utilização exclusivamente para finalidades altruístas,
de propósitos concretamente benéficos à humanidade. Não cabia a um magus como ele a alegação de boa fé na
realização de um malogro. Seu elevado grau de conhecimento importava o dever de
cuidado e consciência. Como se disse, o erro implicava em consequências
severas. Acontece que, tanto quanto um mendigo ignoto, despido pelo azar da
possibilidade de alcançar qualquer conhecimento, e por isso sujeito a reprimenda
cósmica infimamente menor que a de um iniciado, era tão humano quanto Ricardo.
Se era princípio de justiça, que é outra importante lei cósmica, a
responsabilização de acordo com o grau de consciência, a sabedoria exigia de
Ricardo Buendia redobrado cuidado.
Mesmo assim, sua humanidade não o abandonava, nem haveria
mesmo como, pois ser um humano é da própria essência de todos eles. Os erros
por isso eram absolutamente inevitáveis. Especificamente naquele momento, o
pensamento de Ricardo recaía sobre a figura de Aristida. Pela memória,
vislumbrou sua esguia e bela figura. Era uma mulher alta, de brancura leitosa,
cabelos de um negro fechado, corpo perfeito e de face sutil e profunda. Não
seria verdadeiro negar que a amara. Nem também o quanto foi intenso e
avassalador aquele fogo que os consumiu tão inteiramente, que quase uniu em um
somente ser suas duas existências. Os magos também amam e foi em Aristida onde
Ricardo Buendia encontrou o mais sublime desse sentimento. Quiçá pela fraqueza
do ciúme, em certa ocasião permitiu-se cegar pela cólera contra determinada
atuação de sua amada, o que foi motivo de seu definitivo afastamento. Sem
dúvida pela ignomínia do orgulho despediu-se definitivamente de seu par. Pela
podridão do medo, a grandiloquência de seu poderoso ego não permitiu a
reaproximação. Agora, dissera-lhe a espiritualidade no decorrer da meditação recém
encerrada, chegara a pesada conta que teria de pagar. Isso, já passado um bom
bocado de anos desde a ocorrência dos acontecimentos, porque o cósmico sempre
tem seus tempos e suas razões de agir.
Revendo os fatos pretéritos pela tela de sua
memória, claramente compreendia o sem sentido de tudo o que fizera. Prenhe
pelos negativos sentimentos que permitiu povoarem seu ser naquele tempo,
contudo, a compreensão que teve foi a da rigorosa, mas necessária aplicação da
lei da justiça, afinal os erros necessitavam ser corrigidos e os agravos punidos,
sob pena de perigosa quebra da harmonia cósmica. Mais que tudo, convenceu-se
pelo ego estar cumprindo um dever, não praticando um abuso contra sublime
perfeição de um amor. De pronto, recordou-se da história de Exupéry, em que uma
mentira inocenta da flor induziu o Pequeno Príncipe a duvidar dela e por isso
abandoná-la ao leu em seu pequeno planeta. Somente a morte corrigiu o mal
provocado pelo príncipe e permitiu a reaproximação dele e sua flor única,
dentre tantos milhões delas que encontrou no planeta Terra.
A perspectiva futura para Ricardo Buendia era um
tanto nefasta, talvez tão delicada e perigosa quanto à do príncipe ao tardiamente
descobrir pela raposa a inevitabilidade de um sentimento único e exclusivo tão
divino. Sua condição de magus lhe
impingiria perigo de morte, pois a elevação dos conhecimentos que recebera lhe
imprimiria um retorno bem mais severo que o que um ignoto e irresponsável
amante qualquer. No que pese a inquestionável condição humana de Ricardo e do
personagem comparativo imaginado.
Dias escuros e tenebrosos o aguardavam, pensou por
fim, ao tempo em que dava uma profunda e lenta respiração. Em seguida,
levantou-se e saiu cabisbaixo, adivinhando o porvir.
Jorge
Emicles
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