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quinta-feira, 12 de julho de 2018


INFERNO



                   Ele se imortalizou como poeta, aquele que escreveu das epopeias talvez a mais memorável. Capaz, senão de superar, igualar-se por certo à grandeza da Ilíada e da Odisseia de Homero, de quem por sinal toma emprestados vários personagens na construção de sua prima obra, A Divina Comédia.
                   Dante é o autor e ao mesmo tempo personagem principal da narrativa poética que em três livros descreve a aventurosa viagem nas três dimensões da posteridade, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno, respondendo ao questionamento mais elementar da vida consciente: o que existirá no pós-morte?
                   Como possuía conhecimentos teológicos, não se afasta em seu poema épico da tradição católica que dominou o seu tempo. Muito embora não tenha propriamente sido o criador da ideia de Paraíso, Inferno e Purgatório, lugares de expiações ou regozijos eternos, através de sua arte deu cores vivas e temerosas a tais regiões, marcando de tal forma o imaginário coletivo a ponto de qualquer descrição que se faça hoje desses sítios mitológicos serem inevitavelmente reconstruções diretas ou indiretas de sua obra.
                   Quando aporta ao Paraíso, vê irradiarem do planeta sol (é assim mesmo que ele trata o astro rei) sete raios luminosos, atribuindo a cada um deles a personalidade de um filósofo. O primeiro deles é Tomas de Aquino, a quem incumbe de apresentar os demais. O derradeiro é o Venerável Beda, monge inglês de importância maior à cultura do seu povo, da obra de quem Borges, em seus ensaios dantescos, conclui que inspirou várias passagens da Divina Comédia. Cita, a título de exemplo, a história de Fursa, asceta irlandês, que pela grandeza de sua virtude foi arrebatado ao paraíso, voltando para descrever a beleza e perfeição daquele lugar. Durante a ascensão de Fursa, este avistou quatro fogos de vívido rubro, pelos quais o mundo ainda haveria de ser consumido, sendo eles a Discórdia, a Iniquidade, a Mentira e a Cobiça. Foi tranquilizado, contudo por anjos, porque não poderia ser tocado pelos fogos, porque não o queimaria o fogo que não acendesse, numa metáfora de que o justo não poderá ser consumido pelo pecado que não der causa. Até que no futuro veio a ser queimado pelo fogo da cobiça.
                   Outra história de autoria do Venerável Beda que francamente inspira Dante é a de Drycthelm, morto após uma enfermidade que, porém, miraculosamente ressuscita à primeira noite enquanto era ainda velado pela esposa. Aterrorizado com a visão que teve, resolve mudar completamente de vida, dividindo seus bens em três partes (uma para a esposa, outra para os filhos e a terceira para a pobreza), indo viver de penitência em um mosteiro pelo restante da vida terrena. Em seu sonho mortuário, esteve no Purgatório, tendo vislumbrado os dois caminhos que dele defluem, um áspero, fumegante e quente, que leva ao Inferno, e outro angelical que vai até o Paraíso. É exatamente esse o ambiente descrito por Dante em seu poema.
                   Nada, contudo, é mais aterrador que o Inferno, com seus nove círculos de fogo perene, cada um dedicado a distintos pecados. Os círculos representam exatamente a visão do universo daquela época, pois cria-se que o mundo físico também estaria divido em círculos, estando a terra no centro deles (Jerusalém, segundo a Divina Comédia, era a porta de entrada para este outro mundo, pois foi lá que se deu a queda de Lúcifer). As três dimensões da vida eterna, portanto, reproduzem a mesma geografia que se imaginava para o mundo material. Indiretamente, talvez mesmo sem plena consciência do que fazia, Dante dá testemunho de viva filosofia hermética, conhecida da Tábua de Esmeralda, cuja origem mitológica conhecida remonta à antiguidade egípcia, para a qual, o que está em cima, é como o que está em baixo.
                   Dos personagens que Dante avista no Inferno, é marcante a figura de Ulisses, aquele mesmo Odisseu da epopeia homérica, quem queimava eternamente no círculo destinado aos falsários. Conta o personagem que nem mesmo o amor e a fidelidade de sua doce Penélope fez arrefecer seu ímpeto aventureiro (segundo a história de Homero, Penélope resiste às tentações dos pretendentes cosendo e descosendo um sudário, na firme esperança de que seu amado voltaria da guerra de Troia. Concluir o dito sudário, era a condição por ela imposta a seu pai para aceitar a corte de novos pretendentes). Ainda assim, Ulisses se joga, já velho, em novas aventuras, sendo enfim derrotado por uma tempestade marítima.
                   O ápice de tudo, contudo, é quando Dante chega ao Paraíso. É lá onde avista Beatriz, a eterna musa de sua vida real, a quem jamais tivera e, além do mais, morrera prematuramente na flor da juventude. Inusitadamente, quando a avista perde-se de Virgílio, seu guia durante toda a jornada. Borges explica que enquanto Virgílio simboliza a razão, Beatriz é símbolo da fé. Onde estiver uma não poderá estar a outra.
                   A opção do poeta é claramente pela fé, com a qual associa o sentimento maior do amor. É lá, no que não seja propriamente racional, onde haverá o amor; em que residirá a perfeição do Paraíso. No final do poema, nem aí Dante consegue ficar com sua musa. Beatriz se afasta dele deixando-o sozinho. Talvez isso simbolize que o verdadeiro amor e a perfeição completa estarão sempre naquilo que nos seja inatingível.
Jorge Emicles

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