INFERNO
Ele
se imortalizou como poeta, aquele que escreveu das epopeias talvez a mais
memorável. Capaz, senão de superar, igualar-se por certo à grandeza da Ilíada e da Odisseia de Homero, de quem por sinal toma emprestados vários
personagens na construção de sua prima obra, A Divina Comédia.
Dante é o autor e ao mesmo tempo personagem
principal da narrativa poética que em três livros descreve a aventurosa viagem
nas três dimensões da posteridade, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno,
respondendo ao questionamento mais elementar da vida consciente: o que existirá
no pós-morte?
Como possuía conhecimentos teológicos, não se
afasta em seu poema épico da tradição católica que dominou o seu tempo. Muito
embora não tenha propriamente sido o criador da ideia de Paraíso, Inferno e Purgatório,
lugares de expiações ou regozijos eternos, através de sua arte deu cores vivas
e temerosas a tais regiões, marcando de tal forma o imaginário coletivo a ponto
de qualquer descrição que se faça hoje desses sítios mitológicos serem inevitavelmente
reconstruções diretas ou indiretas de sua obra.
Quando aporta ao Paraíso, vê irradiarem do planeta
sol (é assim mesmo que ele trata o astro rei) sete raios luminosos, atribuindo
a cada um deles a personalidade de um filósofo. O primeiro deles é Tomas de
Aquino, a quem incumbe de apresentar os demais. O derradeiro é o Venerável Beda,
monge inglês de importância maior à cultura do seu povo, da obra de quem Borges,
em seus ensaios dantescos, conclui que inspirou várias passagens da Divina Comédia. Cita, a título de
exemplo, a história de Fursa, asceta irlandês, que pela grandeza de sua virtude
foi arrebatado ao paraíso, voltando para descrever a beleza e perfeição daquele
lugar. Durante a ascensão de Fursa, este avistou quatro fogos de vívido rubro, pelos
quais o mundo ainda haveria de ser consumido, sendo eles a Discórdia, a Iniquidade,
a Mentira e a Cobiça. Foi tranquilizado, contudo por anjos, porque não poderia
ser tocado pelos fogos, porque não o queimaria o fogo que não acendesse, numa
metáfora de que o justo não poderá ser consumido pelo pecado que não der
causa. Até que no futuro veio a ser queimado pelo fogo da cobiça.
Outra história de autoria do Venerável Beda que
francamente inspira Dante é a de Drycthelm, morto após uma enfermidade que,
porém, miraculosamente ressuscita à primeira noite enquanto era ainda velado
pela esposa. Aterrorizado com a visão que teve, resolve mudar completamente de
vida, dividindo seus bens em três partes (uma para a esposa, outra para os
filhos e a terceira para a pobreza), indo viver de penitência em um mosteiro
pelo restante da vida terrena. Em seu sonho mortuário, esteve no Purgatório,
tendo vislumbrado os dois caminhos que dele defluem, um áspero, fumegante e
quente, que leva ao Inferno, e outro angelical que vai até o Paraíso. É
exatamente esse o ambiente descrito por Dante em seu poema.
Nada, contudo, é mais aterrador que o Inferno, com
seus nove círculos de fogo perene, cada um dedicado a distintos pecados. Os
círculos representam exatamente a visão do universo daquela época, pois cria-se
que o mundo físico também estaria divido em círculos, estando a terra no centro
deles (Jerusalém, segundo a Divina
Comédia, era a porta de entrada para este outro mundo, pois foi lá que se
deu a queda de Lúcifer). As três dimensões da vida eterna, portanto, reproduzem
a mesma geografia que se imaginava para o mundo material. Indiretamente, talvez
mesmo sem plena consciência do que fazia, Dante dá testemunho de viva filosofia
hermética, conhecida da Tábua de Esmeralda, cuja origem mitológica conhecida remonta
à antiguidade egípcia, para a qual, o que está em cima, é como o que está em
baixo.
Dos personagens que Dante avista no Inferno, é
marcante a figura de Ulisses, aquele mesmo Odisseu da epopeia homérica, quem queimava
eternamente no círculo destinado aos falsários. Conta o personagem que nem
mesmo o amor e a fidelidade de sua doce Penélope fez arrefecer seu ímpeto
aventureiro (segundo a história de Homero, Penélope resiste às tentações dos
pretendentes cosendo e descosendo um sudário, na firme esperança de que seu
amado voltaria da guerra de Troia. Concluir o dito sudário, era a condição por
ela imposta a seu pai para aceitar a corte de novos pretendentes). Ainda assim,
Ulisses se joga, já velho, em novas aventuras, sendo enfim derrotado por uma tempestade
marítima.
O ápice de tudo, contudo, é quando Dante chega ao
Paraíso. É lá onde avista Beatriz, a eterna musa de sua vida real, a quem
jamais tivera e, além do mais, morrera prematuramente na flor da juventude. Inusitadamente,
quando a avista perde-se de Virgílio, seu guia durante toda a jornada. Borges
explica que enquanto Virgílio simboliza a razão, Beatriz é símbolo da fé. Onde
estiver uma não poderá estar a outra.
A opção do poeta é claramente pela fé, com a qual
associa o sentimento maior do amor. É lá, no que não seja propriamente
racional, onde haverá o amor; em que residirá a perfeição do Paraíso. No final
do poema, nem aí Dante consegue ficar com sua musa. Beatriz se afasta dele
deixando-o sozinho. Talvez isso simbolize que o verdadeiro amor e a perfeição
completa estarão sempre naquilo que nos seja inatingível.
Jorge
Emicles
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