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quarta-feira, 18 de julho de 2018


A TRAGÉDIA DE PRINCESA



                   De todos os períodos da rica historiografia do Cariri cearense, o que ganhou estudos mais profundos nos parece ser o da época dos coronéis, localizado na transição entre o fim do império e enraizado na primeira república. Foi exatamente este o período em que viveu e reinou a matriarca de Lavras da Mangabeira, Fideralina Augusto Lima, mulher de ascendência nobre, que através da força do bacamarte e de inigualável prestígio político reinou entre os coronéis de toda a região.
                   É mulher cantada e decantada, de presença viva não apenas nos livros de história, como mais ainda no imaginário popular e na tradição oral da região. É cantada por poetas famosos, como é o exemplo do Cego Aderaldo. Mas certamente a quadra que melhor desenha o tamanho da figura de d. Fideralina de Lavras é a de José Pinto Paes Barreto, quando descreve os donos do poder local dizendo:

                   O Belém manda no Crato
                   Padre Cícero em Juazeiro
                   em Missão Velha Antônio Róseo
                   Barbalha é Neco Ribeiro
                   Das Lavras Fideralina
                   quer mandar no mundo inteiro.

                   Não é mesmo possível tratar da história local daquela época sem abrir capítulo destacado à essa matriarca. Não apenas por ter sido mulher com poder de mando num universo machista e violento, onde a força bruta imperava, mas também pela influência elevada que exerceu sobre os demais mandatários da região. Numa época em que era a força das armas que ascendia e mantinha o poder, Fideralina reinou sem oposições. De todas as cidades invadidas naquele período, Lavras foi a única que resistiu. Isso em 1910, como tão brilhantemente narrou João Calixto em obra específica sobre esse episódio. Igualmente é marcante a participação de Fideralina na revolução de 1914, em que saiu deposto o Presidente do Estado, Franco Rabelo e consagrado na vida política nordestina o patriarca de Juazeiro, quem nutria estreita relação de amizade com Fideralina.
                   De toda sua rica história, é sem dúvidas o episódio de Princesa, então pequena vila paraibana, aquele que talvez mais tenha marcado sua vida, através do qual a velha matriarca transformou uma imensurável tragédia na sua mais definitiva consagração política. Tratou-se exatamente do assassinato de seu neto varão mais velho, a quem ela dedicou especial esmero. Era ele personagem central no seu plano de manutenção do poder familiar, através de quem pretendia ressaltar que o poder estava mudando de nuances. Na próxima geração, ela entendia que seria a caneta, não o bacamarte quem ditaria as relações de poder no país. E ela e sua família não estavam desprevenidos. Ildefonso Augusto de Lacerda Leite foi educado com primor desde suas primeiras idades e no final do século XIX formou-se médico na então capital federal, tendo sempre se destacado pela arguta capacidade intelectual e profundo conhecimento da profissão que abraçou.
                   Chegou, nos últimos dias do ano de 1900 na pequena vila de Princesa com a nobre missão de dar combate à peste que já havia devastado pelo menos metade da população local.  Não imaginava, contudo, que ali também encontraria paradoxalmente o amor e a morte, numa sina terrível que amalgamaria suas convicções humanitárias e a construção de uma nova família, com a terrível destruição de tudo isso através dos sentimentos de ódio, rancor e ciúmes, tudo bem temperado pela vingança, pela cobiça e pela política.
                   É essa a história magistralmente narrada por Cristina Couto em seu livro, A Tragédia de Princesa – o Caso Ildefonso Augusto de Lacerda Leite.
                   Num episódio cheio de maliciosidade, juntaram-se o padre e o mandatário político local para instigar o delegado da cidade a cometer o bárbaro assassinato do médico, tudo ante o conhecimento prévio do juiz e promotor oficiantes no sítio dos acontecimentos. A perseguição estendeu-se à família de sua esposa, cuja casa chegou a ser invadida e por muito pouco não homicidaram ainda seu sogro. A sogra não resistiu a tamanho acinte, falecendo poucos dias depois de mal cardíaco. A esposa de Ildefonso, a jovem, bela e doce Dulce Campos restou viúva, órfã de mãe (razão que a obrigou a assumir a guarda de toda a irmandade) e prenhe de oito meses de uma menina, mais tarde batizada por Cecília. Uma tragédia sem igual, mesmo no ambiente de franca violência que grassou no nordeste brasileiro ao tempo dos coronéis e cangaceiros.
                   Não reconheciam, contudo, os algozes do jovem Ildefonso a robustez de sua avó materna, d. Fideralina, que incontinente remeteu a Princesa um contingente de mais de cem homens bem armados e mandados, incumbidos de dar cabo à vida de todos os autores do horrível assassinato. Segundo a lenda reproduzida por diversas gerações no seio da família Augusto, de Lavras, os cabras de Fideralina ao aproximar-se de suas vítimas para lhes ceifar a vida apresentavam o recado dirigido a cada uma delas: “Taqui, que dona Fideralina mandou”. Ao final do intento, trouxeram como prova do sucesso de sua empreitada um rosário preenchido com as orelhas das vítimas. Nele, conta-se ainda na tradição oral familiar, a velha passou a adicionar as orelhas de suas próximas vítimas. Era nesse rosário, também diz essa mesma fonte, que ela costumava rezar.
                   O que é lenda, o que é verdade desse episódio dantesco restou por mais de cem anos misturado no limbo que separa o mito da história. Cristina Couto, em seu A tragédia de Princesa busca soluções ao entrave, tendo para tanto realizado profunda pesquisa historiográfica ao cabo da qual foi capaz de descobrir fontes perdidas dessa história, versões diferentes para os acontecimentos, tendo sido principalmente capaz de vislumbrar o intricado jogo de poder que fez mover as peças desse complexo xadrez da vida real. Para bem além das pessoas, eram instituições que se engalfinhavam por detrás dos tiros e facadas que deram cabo à vida de Ildefonso Augusto de Lacerda Leite. Era a maçonaria quem se pretendia alvejar; era a ciência laica que se quis apunhalar; eram as luzes e a racionalidade do positivismo quem foi atingido. Eram a Igreja Católica e o Estado viciado da oligarquia local os mentores e executores do intento criminoso.
                   O processo criminal aberto para a apuração dos fatos serve como um belo paradigma do que era o poder judiciário daquele tempo. Ah, mas nada de novo sob o sol, pois não melhoramos quase nada desde então. O jugo dos detentores do poder garantiu a impunidade dos autores intelectuais e executores do fato. Com o tradicional escudo dos intricados discursos jurídicos, não faltaram argumentos para apoiar o desejo do promotor e juiz oficiantes no feito nas suas odiosas teses de que os mandantes nada sabiam sobre aquilo que de fato teriam mandado. Como juristas, realmente, não nos admiramos com a hipocrisia e descarada serenidade com que mascararam a injustiça que cometeram, quase conseguindo fazer da vítima a responsável principal de sua própria morte. Em nada mesmo foram esses personagens melhores que os juízes e promotores da atualidade.
                   Nenhum deles, contudo, escapou ao julgamento da história. Através da brilhante obra de Cristina Couto, então, ressurgem os fatos e personagens marcantes que compuseram a tragédia de Princesa, recolocando cada um deles no lugar da verdade, por intermédio da qual se restabelece a justiça das coisas: Ildefonso foi um humanista visionário e corajoso. As lideranças políticas e eclesiásticas de Princesa energúmenas figuras. O Poder Judiciário cúmplice da iniquidade. Dulce, a doce Dulce, a figura da resiliência, que mesmo profundamente marcada pela dor de perder seus entes mais queridos, tratou de educar os irmãos e propagar o bem durante toda sua longa vida. E Fideralina Augusto Lima a mulher mais poderosa e inquebrantável de todo o nordeste brasileiro.
Jorge Emicles

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