O NORO
Zé
Perrelo era cabra dos matos, nascido no tórrido chão do sertão do Ceará, na
fazendo onde eram moradores os seus pais e, antes deles, seus avós. Teve a típica
formação dos sertanejos, solto nas veredas da caatinga, desde cedo acostumado à
lida do gado e da roça. Nas horas de folga, caçava passarinho e veado nas
matas, tomava banho no açude da fazendo, frequentava as noites de samba que
quando em vez aconteciam nas casas da redondeza.
Nesse
típico exemplo de vida sertaneja cresceu menino, se pôs jovem, enamorou-se de
Rosa, filha do vizinho Agostinho e ali mesmo, na dura realidade das longas secas
intercaladas por raros anos de chuvada e fartura, na mesma fazendo onde nascera
e crescera, também formou sua própria família. Rosa, sua mulher, era até
estudada para seu nível de formação, tanto que passara alguns anos estudando na
cidade, que na verdade era um pequeno povoado distante algumas léguas da
fazenda. Lá, no distrito conhecido por Ferreiro, em memória esquecida da
profissão de um antigo morador, era a única referência que tinha de urbe. Na
verdade, era um pequeno aglomerado de casas, capaz de formar apenas duas
pequenas e estreitas ruas, com uma pracinha e uma igreja, quase capela, ao centro.
Cidade grande mesmo, cheia de arranha céus e veículos engarrafados não sabia
como seria e, se visse, morreria de pânico.
Já
era pai dos três meninos que lhe dera Rosa quando o governo trouxe a energia
elétrica para a fazenda. E daí, junto a um tanto de benefícios, veio não
somente a geladeira e os bicos de luz para clarear as noites, mas também a
televisão, sintonizada através de uma enorme antena parabólica instalada no
pobre telhado de sua residência. Sempre achou discrepante aquela imagem vista
de longe: uma casa de taipa sem pintura, marrom da cor do barro batido para encher
as fendas da madeira entrelaçada na estrutura interna da construção; a cara da
pobreza e abandono do sertanejo e, paradoxalmente, aquela estrutura prateada e
de geografia circular perfeita no teto da morada.
Não
combinava nada, afinal, o colorido da modernidade com a secura cinzenta da vida
no sertão que, no máximo, permitia se enverdejar nos raros anos de chuva. Lhe
parecia antinatural a realidade apresentada na tela do aparelho, cheia de cidades
superpovoadas, com vizinhos que dividiam a mesma parede, o mesmo chão e o mesmo
teto dos minúsculos apartamentos dos enormes arranha céus; diferente da vida em
espaços largos do sertão, onde no correr do dia se encontrava com pouquíssimos viventes,
em geral, conhecidos de quem se sabia a ascendência e a descendência.
Especialmente lhe causava estranheza o estilo de vida daquelas pessoas urbanizadas,
indiferentes uns aos outros e de hábitos bem questionáveis. Era àquela cultura
propagada com furor e alegria através do aparelho de televisão a quem atribuía
seu desgosto.
Foi
o filho caçula de Zé Perrelo o mais influenciado pelo universo paralelo
apresentado pela televisão. Entendia o matuto que tudo era fruto da má
influência das novelas e filmes apresentados através da telinha, ensinando costumes
e valores bem diferentes dos que aprendeu dos pais e ensinou aos filhos. O fato
é que, enquanto os dois filhos mais velhos logo jovens se iniciaram nas artes
dos amantes, namorando as moças das redondezas, o mais novo sempre se mostrou
muito ensimesmado, cheio de timidez, avesse às danças e aos demais eventos
sociais da comunidade. Sempre preferiu ficar em casa, assistindo à programação
que não cessava nunca até alta madrugada, quando já todos da casa grassavam em
sono profundo. Por isso, achava Zé, Vicente, o Lôrim, como o chamavam os de casa,
nunca se interessou por namoro.
Já
contava com vinte e cinco anos o rapaz quando Zé estranhou uma amizade
excessiva de Lôrim com o filho de Joaquim, um vizinho próximo. Fato é que os
dois rapazes sempre estavam juntos, se encontravam diariamente, saíam para
tomar banho no açude sempre em par, preferiam evitar outras companhias. Não se
tocavam em público, mas houve certa ocasião em que Zé os flagrou no meio do
mato, fazendo não sabe bem o quê. A cara de desconfiança dos dois não deixou
muitas dúvidas sobre que artes andariam a fazer os jovens.
Transtornado
com a descoberta, foi ter com Rosa, que, ao final, disse já saber de tudo e que
ele não se metesse a besta porque hoje as pessoas eram livres, poderiam ser e
se relacionar como bem entendessem. Até o papa já dissera que não havia nada de
pecado nessas coisas e se nem Deus se opunha e esse estilo de vida, não haveria
de ser o ignoto Zé quem se atreveria a dizer nada. Tratasse de se conformar com
os gostos do filho e ai dele se dissesse um “a” que fosse contra o filho. Isso
não o tornava nem melhor nem pior que os outros. Tudo isso estava na televisão.
Todos são iguais, não importa a cor, o gênero ou as preferências. Era crime ter
preconceito contra o filho e ela mesma o denunciaria por qualquer mau trato.
Vergonha mesmo, alertou por fim Rosa, era os filhos terem seu pai preso.
As
palavras da mulher foram tão contundentes que, por mais que não aceitasse o estilo
de vida do filho, não teve jeito a dar. Se fosse o seu pai, sabia, encheria de
sarrafo o lombo do menino até ele se arrepender. Mas, com a mulher que tinha,
bem sabia que não poderia jamais fazer algo desse tipo. Depois, por mais que
reprovasse aqueles gostos, não conseguia deslembrar que Vicente sempre foi o
seu mais querido e apegado filho. Nada daquilo, no fundo, lhe atenuava o amor
que sentia ao descendente.
Por
tudo isso, trancou dentro de si a agonia que toda aquela situação lhe causava.
E, nesse silêncio, amaldiçoou o quanto pode a chegada da televisão em sua pobre
morada. Mesmo assim, não perdeu o hábito de assistir ao jornal nacional, já
sempre trôpego de sono, todas as noites.
Aos
poucos foi se acostumando com a presença de Vicente e seu amigo íntimo em todas
as ocasiões da família. Nos aniversários, na semana santa, nos finais de
semana, não importava. Sempre estavam lá os dois juntos, com as noras e, com o
tempo, os netos, filhos dos seus outros dois filhos. Era impossível não se habituar
àquele casal. Com o tempo, o próprio Zé já tratava com naturalidade o parceiro
do filho. Lhe incomodava mesmo, no entanto, eram os olhares e risinhos cheios
de sarcasmo dos vizinhos, escarnecendo às escondidas com o drama do pobre sertanejo.
Das
brincadeiras que lhe faziam, a que mais incomodava era quando perguntavam o
que, afinal, o filho do Joaquim era seu e de seu filho, porque até parecia
gente da família, dono de uma intimidade que só mesmo os de casa tinham. Foi em
uma dessas vezes, numa véspera de Natal, que Antônio de Deda, outro vizinho,
entabulou a pergunta de quem seriam os seus convidados para a ceia de Natal, ao
que Zé Perrelo respondeu que lá estariam seus três filhos, as esposas e Luiz, o
filho de Joaquim. Não podendo perder a deixa, de pronto Antônio indaga: mas e,
afinal, compadre, que diacho esse Luiz é seu, afinal toda reunião de família
ele tá sempre, não é mesmo?
Engolindo
a vergonha, Zé Perrelo decidiu acabar de vez com a chacota. De pronto disse
então: é meu “noro”, hora. E tu num já sabe! Deixa os meninos em paz!
Jorge Emicles
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