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terça-feira, 2 de outubro de 2018


ESTADO DEMAGÓGICO DE DIREITO




                   Por todos os cantos da nação reverbera em um brado uníssono o sedutor canto da mãe democracia, convidando os súditos de todas as matizes ao exercício cívico do sufrágio. Venham, doces filhos da liberdade, brada-nos a voz suave da democracia, venham emprenhar com as suas soberanas vontades os destinos dessa rica pátria, de promissor e invencível futuro.
                   Por mais que seja o Brasil uma pátria dividida entre ricos e pobres; intelectuais e analfabetos funcionais; progressistas e conservadores; homofóbicos e heterossexuais; feministas e machistas; pretos, brancos, amarelos e mestiços; nortistas-nordestinos e centro-sulista e sulistas; ainda assim nos cantam na propaganda eleitoral, seja a dos candidatos e partidos políticos, seja a da própria Justiça Eleitoral, como uma nação unívoca, cuja libertação de todos os seus males acontecerá no âmago reservado da cabina indevassável, lugar em que depositarão os cidadãos seus votos. Afinal, ensina-nos a massificante propaganda oficial, somos uma pujante democracia. É das urnas que deverão sair as soluções para os nossos mais tenazes problemas!
                   Mas esquecem de explicar em que propriamente consiste essa tal democracia.
                   Pois tentemos humildemente lançar um pouco de luz sobre esse sistema tão intricado e de ampla difusão no ocidente.
                   Dêmokratia, do grego, significa literalmente poder do povo. Em Aristóteles, temos que democracia é “o Estado que os homens livres governam”. E diz bem o velho amigo do conhecimento, pois o poder pressupõe antes a liberdade, uma vez que sem esse substantivo não haverá meios para o exercício do poder.
                   Um velho professor de direito eleitoral, um daqueles sábios esquecidos pelos modernos estudiosos da matéria, ensina que a democracia somente poderá ser exercida em um estado de absoluta igualdade. Onde os homens por qualquer razão não forem iguais, ali não haverá uma democracia de verdade, mas uma corrupção dela. Esse velho professor a quem nos referimos ressaltava mais as dezenas de formas através das quais essa igualdade (que é o mesmo que dizer, parafraseando Aristóteles, liberdade) é corrompida: pelo abuso do poder em geral, seja ele o econômico, político, de propaganda, cultural, etc.
                   Portanto, não é apenas comprando o voto dos cidadãos que se corrompe a igualdade do sufrágio, pondo a perder todos os alicerceares da democracia, mas também por todas as demais formas que comprometam a isonomia entre os cidadãos, seja pelo abuso do poder político, fazendo a máquina do Estado trabalhar a favor de alguma candidatura; seja o abuso do poder de marketing, com a utilização de propaganda falaciosa; seja mesmo pelo abuso do poder cultural, criando vantagens a partir da apropriação de determinado conhecimento. Em uma palavra, é bem sutil e variável a quebra da igualdade entre os competidores no complexo jogo democrático.
                   E se os cidadãos que participam do processo de sufrágio não são verdadeiramente livres, não existirá democracia, mas uma corrupção ou simples aparência dela. Entre desiguais não existirá liberdade, afinal.
                   Desde o final da Segunda Grande Guerra, espraiou-se no ocidente o mito da democracia como sendo a salvação de todos os males da humanidade. É famosa e até hoje repetida a frase do inglês Churchill que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Mas a democracia possui seus riscos e sua corrupção pode causar perigosos danos a qualquer nação. Rever os fatos da história nos revela essa triste verdade.
                   A Alemanha do entre guerras fundou-se como uma República democrática. Foi através do sufrágio popular que buscou sair da pior crise econômica de sua história. Devassada pelos nefastos efeitos da Primeira Grande Guerra, foi através do voto que fez chegar ao poder a maior esperança de soerguimento de sua economia e orgulho nacionais. Foi pela porta da frente do regime democrático, portanto, que Adolf Hitler se transformou no Primeiro Ministro alemão, somente mais tarde vindo a dar cabo ao golpe de Estado que o tornaria soberano absoluto dos alemães. No mesmo período histórico os Italianos fizeram algo bem parecido. Foi a convite do rei constitucional que Mussolini entrou triunfante na cidade de Roma para assumir o cargo de Primeiro Ministro, só mais adiante vindo a se consolidar como ditador. Mais recentemente, na América Latina, Hugo Chavez chegou ao poder na Venezuela através do voto direto, se consagrando como um dos mais populares presidentes daquela nação. Com o titubeio da economia, reformou a constituição, adiou eleições em que perigava ser derrotado, prendeu as mais destacas lideranças da oposição para se livrar dos adversários e só saiu do poder depois da sua morte. Não, contudo, sem deixar sucessor ainda mais sedento de poder, que em nome da sua manutenção lançou o país na pior crise econômica, social e política de sua história.
                   Ainda mais gritante é o exemplo dos Estados Unidos da América do Norte, que fez chegar ao poder o famigerado Donald Trump, que se galgou candidato contra a vontade das mais influentes lideranças de seu partido (que restaram sem poder de ação diante da devassadora máquina de propaganda de que lançou mão –  lembra-se do abuso de poder de marketing?) e ainda por cima se sagrou vencedor em uma eleição na qual teve quase de três milhões de votos a menos que sua adversária, a democrata Hilary Clinton. Tudo, rigorosamente dentro das tradicionais regras da chamada maior democracia do mundo.
                   Muito embora de fato não se conheça regime melhor que o democrático, onde as liberdades possam ser concretamente respeitadas, os exemplos citados deixam à evidência que a democracia por si somente não é capaz de livrar-se das tendências de abusadores. Nefastos personagens que pela força do convencimento recebem o poder de mãos beijadas, aplaudidos pelo povo, a quem mais adiante irá oprimir e recusar a soberania. Se não chegamos ao ponto de negar a valia da democracia, advertimos a respeito de duas evidências históricas: a democracia tende naturalmente a se corromper; e é pelo sufrágio que se entregou o poder aos maiores tiranos da história.
                   Atenção especial ao atual momento da história nacional.
                   Ainda na antiga e clássica filosofia podemos identificar as razões que conduzem ao descalabro das democracias. Segundo Aristóteles a principal causa que as conduz ao degredo é o excesso de desigualdade. Se por um lado, não é possível construir uma sociedade absolutamente paritária, onde todos possuam a mesma fortuna e o mesmo grau de conhecimento, é inevitável que a democracia não consiga sobreviver onde os graus dessa desigualdade sejam exorbitantes. No caso brasileiro, compare-se o valor da menor remuneração permitida pelo ordenamento constitucional (o salário mínimo) com a maior admitida aos agentes públicos (Ministro do STF) e se aferirá o vício do excesso de desigualdade a corromper naturalmente a nossa pseudo democracia. Isso sem levar em conta que a menor remuneração existente é de fato bem inferior ao valor tolerado em lei, assim como a maior é bem superior à ditada na regra constitucional (segundo levantamento da imprensa, mais de setenta por cento dos juízes recebem acima do teto expresso na Constituição). Se falássemos da astronômica diferença entre os mais pobres e mais ricos, mais cultos e analfabetos, teríamos ainda mais clara essa perigosa evidência, uma das principais causas da corrupção da democracia no Brasil.
                   O excesso de desigualdade faz surgir, ainda segundo Aristóteles, o maior de todos os riscos à democracia. Segundo ensina, “a principal causa das mudanças é, nos estados democráticos, o atrevimento dos demagogos”, pois é exatamente o discurso fácil da demagogia que ilude o eleitorado, convencendo-o da existência de soluções simplistas para problemas complexos. Violência se combate com violência. A pobreza se enfrenta somente com políticas sociais. O Estado é quem deve produzir riquezas e gerar empregos. Contudo, estudos sérios denunciam as meias verdades contidas em cada uma dessas assertivas. Endurecer a lei penal apenas piorará o problema da superlotação do sistema prisional, que na medida em que agrava o desrespeito aos direitos mínimos de existência dos presos, alimenta a indústria do crime organizado, cuja matéria-prima é exatamente a massa de encarcerados, que se profissionaliza no crime e jamais é ressocializada. As políticas de fomento social combatem a miséria, mas não resolvem suas causas, que somente serão superadas por um sistema sério e eficaz de educação. Um Estado do modelo brasileiro jamais poderá produzir riquezas, mas apenas confisca-las por intermédio de tributos e consumi-las na prestação de serviços e na manutenção de sua cara máquina burocrática. Tudo isso sem falar nos custos incalculáveis da corrupção, inerente ao próprio Estado e não filha desse ou daquele partido político.
                   Todos esses são argumentos construídos na antiguidade clássica. Não formam uma teoria de momento que busca se adequar como uma luva à realidade nacional moderna. São retirados da obra de Aristóteles, reconhecido filósofo, que no século IV a.C. legou toda a humanidade com a reconhecida obra A Política, de onde retiramos os principais elementos teóricos utilizados nesse despretensioso artigo. Sua adequação à realidade nacional não deve ser mera coincidência, no entanto. Aliás, não acreditamos que coincidências existam, muito notadamente nos domínios da história.
                   Analisar as campanhas presidenciais postas nas ruas no ano presente, especialmente aquelas com maior chance de vitória, conforme os levantamentos estatísticos da quase unanimidade das pesquisas divulgadas, põe em evidência não somente a profunda desigualdade existente, mas principal e perigosamente, o nível de demagogia a que são capazes aqueles que encabeçam as respectivas candidaturas. Diante desse estado de coisas, a mais demagógica de todas as assertivas está em pretender que a solução para a crise estará no puro e simples exercício do sufrágio. Sendo assim, nenhum dos personagens do jogo democrático é mais demagógico que a própria Justiça Eleitoral.
                   Dizer isso não é advogar por uma ditadura, porque aí menor ainda será o grau de liberdade; maior o de desigualdade. Mas é advertir que o sistema democrático falhou por ter permitido a existência de candidaturas tão perigosas e inúteis à manutenção da própria democracia. Também é chamar a atenção para a necessidade de instituição de políticas de Estado, daquelas que estão acima dos partidos e mandatários de ocasião. E a principal delas necessariamente deverá ser a de educação. É preciso que se exerça o sufrágio, mas antes é necessário que o cidadão seja educado para o seu exercício. Logo, a primeira prioridade do Estado tem de estar na educação. Somente isso libertará o povo das amarras da desigualdade e da ignorância. Tudo o mais é discurso demagógico, apenas. Para concluir assim, bastaria ler Platão, pois é essa a principal suma de toda a sua rica obra.
                   Se é verdadeira a liberdade de que nós, cidadãos, dispomos no regime democrático, então o sistema terá que construir uma resposta adequada ao estado de coisas em que nenhuma das candidaturas postas e com real chance de vitória minimamente atenda às necessidades do sistema e aos anseios da população. Do contrário, a democracia não será o “governo dos homens livres”. Nesse contexto não é consciente votar no menos mal, para garantir a vitória de quem por motivos ideológicos ou pessoais odiamos. A democracia não é o sistema dos ódios, mas o da consciência. Se nenhum dos candidatos postos representa o ideário de Estado que buscamos, é plenamente legítimo o voto nulo, pois isso significa um protesto e uma denúncia contra o descalabro das coisas postas.
                   Faz muito mal (certamente não por inocência) a Justiça Eleitoral ao determinar que os votos nulos e brancos serão totalmente desconsiderados na totalização dos percentuais de votos, porque isso retira a possibilidade prática do voto de protesto. Tal regra, advertimos, não está inscrita em nenhuma lei da nação, mas em um mero regulamento editado unilateralmente pela própria Justiça Eleitoral. E desde quando, mesmo, é possível a edição de regulamentos autônomos, sem amparo expresso em lei, no direito brasileiro? Este é outro fator que faz desacreditar a democracia à brasileira.
                   A tese é a de que será possível construir uma revolução silenciosa, fazendo o sistema corrompido e irrecuperável da democracia brasileira ruir de dentro para fora, sem armas ou qualquer outro tipo de violência, simplesmente pela utilização do voto de protesto. Quando, por exemplo, mais de noventa por cento dos votos forem nulos nenhum governo será legítimo e naturalmente não conseguirá sobreviver. O sistema brasileiro, tal qual está construído jamais permitirá que um político honesto e bem intencionado chegue ao poder central. Portanto, o único caminho pacífico para a sua destruição é pelo voto de protesto. Votar no menos mal é outra maneira de legitimar o sistema posto, porque assim jamais haverá o bom de verdade.
                   A propósito dessa tese, recomendamos a leitura de uma obra lúcida e moderna, exatamente sobre a crise das democracias contemporâneas. Novamente não é uma obra de ocasião, que sequer mirou para o caso brasileiro. É uma crítica bem genérica à democracia como sistema. Referimo-nos ao livro Ensaio Sobre a Lucidez, do português, prêmio Nobel de literatura, José Saramago.
                   Fica a dica.
Jorge Emicles

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