ESTADO
DEMAGÓGICO DE DIREITO
Por todos os cantos da nação reverbera em um brado
uníssono o sedutor canto da mãe democracia, convidando os súditos de todas as
matizes ao exercício cívico do sufrágio. Venham, doces filhos da liberdade,
brada-nos a voz suave da democracia, venham emprenhar com as suas soberanas
vontades os destinos dessa rica pátria, de promissor e invencível futuro.
Por mais que seja o Brasil uma pátria dividida entre
ricos e pobres; intelectuais e analfabetos funcionais; progressistas e conservadores;
homofóbicos e heterossexuais; feministas e machistas; pretos, brancos, amarelos
e mestiços; nortistas-nordestinos e centro-sulista e sulistas; ainda assim nos
cantam na propaganda eleitoral, seja a dos candidatos e partidos políticos,
seja a da própria Justiça Eleitoral, como uma nação unívoca, cuja libertação de
todos os seus males acontecerá no âmago reservado da cabina indevassável, lugar
em que depositarão os cidadãos seus votos. Afinal, ensina-nos a massificante
propaganda oficial, somos uma pujante democracia. É das urnas que deverão sair
as soluções para os nossos mais tenazes problemas!
Mas esquecem de explicar em que propriamente
consiste essa tal democracia.
Pois tentemos humildemente lançar um pouco de luz
sobre esse sistema tão intricado e de ampla difusão no ocidente.
Dêmokratia,
do grego, significa literalmente poder do povo. Em Aristóteles, temos que
democracia é “o Estado que os homens livres governam”. E diz bem o velho amigo
do conhecimento, pois o poder pressupõe antes a liberdade, uma vez que sem esse
substantivo não haverá meios para o exercício do poder.
Um velho professor de direito eleitoral, um
daqueles sábios esquecidos pelos modernos estudiosos da matéria, ensina que a
democracia somente poderá ser exercida em um estado de absoluta igualdade. Onde
os homens por qualquer razão não forem iguais, ali não haverá uma democracia de
verdade, mas uma corrupção dela. Esse velho professor a quem nos referimos
ressaltava mais as dezenas de formas através das quais essa igualdade (que é o
mesmo que dizer, parafraseando Aristóteles, liberdade) é corrompida: pelo abuso
do poder em geral, seja ele o econômico, político, de propaganda, cultural,
etc.
Portanto, não é apenas comprando o voto dos
cidadãos que se corrompe a igualdade do sufrágio, pondo a perder todos os
alicerceares da democracia, mas também por todas as demais formas que
comprometam a isonomia entre os cidadãos, seja pelo abuso do poder político,
fazendo a máquina do Estado trabalhar a favor de alguma candidatura; seja o
abuso do poder de marketing, com a utilização de propaganda falaciosa; seja
mesmo pelo abuso do poder cultural, criando vantagens a partir da apropriação
de determinado conhecimento. Em uma palavra, é bem sutil e variável a quebra da
igualdade entre os competidores no complexo jogo democrático.
E se os cidadãos que participam do processo de
sufrágio não são verdadeiramente livres, não existirá democracia, mas uma
corrupção ou simples aparência dela. Entre desiguais não existirá liberdade,
afinal.
Desde o final da Segunda Grande Guerra, espraiou-se
no ocidente o mito da democracia como sendo a salvação de todos os males da
humanidade. É famosa e até hoje repetida a frase do inglês Churchill que “a
democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Mas a
democracia possui seus riscos e sua corrupção pode causar perigosos danos a
qualquer nação. Rever os fatos da história nos revela essa triste verdade.
A Alemanha do entre guerras fundou-se como uma
República democrática. Foi através do sufrágio popular que buscou sair da pior
crise econômica de sua história. Devassada pelos nefastos efeitos da Primeira
Grande Guerra, foi através do voto que fez chegar ao poder a maior esperança de
soerguimento de sua economia e orgulho nacionais. Foi pela porta da frente do
regime democrático, portanto, que Adolf Hitler se transformou no Primeiro
Ministro alemão, somente mais tarde vindo a dar cabo ao golpe de Estado que o
tornaria soberano absoluto dos alemães. No mesmo período histórico os Italianos
fizeram algo bem parecido. Foi a convite do rei constitucional que Mussolini
entrou triunfante na cidade de Roma para assumir o cargo de Primeiro Ministro,
só mais adiante vindo a se consolidar como ditador. Mais recentemente, na
América Latina, Hugo Chavez chegou ao poder na Venezuela através do voto direto,
se consagrando como um dos mais populares presidentes daquela nação. Com o
titubeio da economia, reformou a constituição, adiou eleições em que perigava
ser derrotado, prendeu as mais destacas lideranças da oposição para se livrar
dos adversários e só saiu do poder depois da sua morte. Não, contudo, sem
deixar sucessor ainda mais sedento de poder, que em nome da sua manutenção
lançou o país na pior crise econômica, social e política de sua história.
Ainda mais gritante é o exemplo dos Estados Unidos
da América do Norte, que fez chegar ao poder o famigerado Donald Trump, que se
galgou candidato contra a vontade das mais influentes lideranças de seu partido
(que restaram sem poder de ação diante da devassadora máquina de propaganda de
que lançou mão – lembra-se do abuso de
poder de marketing?) e ainda por cima se sagrou vencedor em uma eleição na qual
teve quase de três milhões de votos a menos que sua adversária, a democrata
Hilary Clinton. Tudo, rigorosamente dentro das tradicionais regras da chamada
maior democracia do mundo.
Muito embora de fato não se conheça regime melhor
que o democrático, onde as liberdades possam ser concretamente respeitadas,
os exemplos citados deixam à evidência que a democracia por si somente não é
capaz de livrar-se das tendências de abusadores. Nefastos personagens que pela
força do convencimento recebem o poder de mãos beijadas, aplaudidos pelo povo,
a quem mais adiante irá oprimir e recusar a soberania. Se não chegamos ao ponto
de negar a valia da democracia, advertimos a respeito de duas evidências
históricas: a democracia tende naturalmente a se corromper; e é pelo sufrágio
que se entregou o poder aos maiores tiranos da história.
Atenção especial ao atual momento da história
nacional.
Ainda na antiga e clássica filosofia podemos
identificar as razões que conduzem ao descalabro das democracias. Segundo
Aristóteles a principal causa que as conduz ao degredo é o excesso de
desigualdade. Se por um lado, não é possível construir uma sociedade
absolutamente paritária, onde todos possuam a mesma fortuna e o mesmo grau de
conhecimento, é inevitável que a democracia não consiga sobreviver onde os
graus dessa desigualdade sejam exorbitantes. No caso brasileiro, compare-se o
valor da menor remuneração permitida pelo ordenamento constitucional (o salário
mínimo) com a maior admitida aos agentes públicos (Ministro do STF) e se aferirá
o vício do excesso de desigualdade a corromper naturalmente a nossa pseudo
democracia. Isso sem levar em conta que a menor remuneração existente é de fato
bem inferior ao valor tolerado em lei, assim como a maior é bem superior à ditada
na regra constitucional (segundo levantamento da imprensa, mais de setenta por
cento dos juízes recebem acima do teto expresso na Constituição). Se falássemos
da astronômica diferença entre os mais pobres e mais ricos, mais cultos e
analfabetos, teríamos ainda mais clara essa perigosa evidência, uma das
principais causas da corrupção da democracia no Brasil.
O excesso de desigualdade faz surgir, ainda
segundo Aristóteles, o maior de todos os riscos à democracia. Segundo ensina, “a
principal causa das mudanças é, nos estados democráticos, o atrevimento dos
demagogos”, pois é exatamente o discurso fácil da demagogia que ilude o
eleitorado, convencendo-o da existência de soluções simplistas para problemas
complexos. Violência se combate com violência. A pobreza se enfrenta somente
com políticas sociais. O Estado é quem deve produzir riquezas e gerar empregos.
Contudo, estudos sérios denunciam as meias verdades contidas em cada uma dessas
assertivas. Endurecer a lei penal apenas piorará o problema da superlotação do
sistema prisional, que na medida em que agrava o desrespeito aos direitos
mínimos de existência dos presos, alimenta a indústria do crime organizado,
cuja matéria-prima é exatamente a massa de encarcerados, que se profissionaliza
no crime e jamais é ressocializada. As políticas de fomento social combatem a
miséria, mas não resolvem suas causas, que somente serão superadas por um
sistema sério e eficaz de educação. Um Estado do modelo brasileiro jamais
poderá produzir riquezas, mas apenas confisca-las por intermédio de tributos e consumi-las
na prestação de serviços e na manutenção de sua cara máquina burocrática. Tudo isso
sem falar nos custos incalculáveis da corrupção, inerente ao próprio Estado e
não filha desse ou daquele partido político.
Todos esses são argumentos construídos na antiguidade
clássica. Não formam uma teoria de momento que busca se adequar como uma luva à
realidade nacional moderna. São retirados da obra de Aristóteles, reconhecido
filósofo, que no século IV a.C. legou toda a humanidade com a reconhecida obra A Política, de onde retiramos os
principais elementos teóricos utilizados nesse despretensioso artigo. Sua
adequação à realidade nacional não deve ser mera coincidência, no entanto.
Aliás, não acreditamos que coincidências existam, muito notadamente nos
domínios da história.
Analisar as campanhas presidenciais postas nas
ruas no ano presente, especialmente aquelas com maior chance de vitória,
conforme os levantamentos estatísticos da quase unanimidade das pesquisas divulgadas,
põe em evidência não somente a profunda desigualdade existente, mas principal e
perigosamente, o nível de demagogia a que são capazes aqueles que encabeçam as
respectivas candidaturas. Diante desse estado de coisas, a mais demagógica de
todas as assertivas está em pretender que a solução para a crise estará no puro
e simples exercício do sufrágio. Sendo assim, nenhum dos personagens do jogo
democrático é mais demagógico que a própria Justiça Eleitoral.
Dizer isso não é advogar por uma ditadura, porque
aí menor ainda será o grau de liberdade; maior o de desigualdade. Mas é
advertir que o sistema democrático falhou por ter permitido a existência de
candidaturas tão perigosas e inúteis à manutenção da própria democracia. Também
é chamar a atenção para a necessidade de instituição de políticas de Estado,
daquelas que estão acima dos partidos e mandatários de ocasião. E a principal
delas necessariamente deverá ser a de educação. É preciso que se exerça o
sufrágio, mas antes é necessário que o cidadão seja educado para o seu
exercício. Logo, a primeira prioridade do Estado tem de estar na educação.
Somente isso libertará o povo das amarras da desigualdade e da ignorância. Tudo
o mais é discurso demagógico, apenas. Para concluir assim, bastaria ler Platão,
pois é essa a principal suma de toda a sua rica obra.
Se é verdadeira a liberdade de que nós, cidadãos,
dispomos no regime democrático, então o sistema terá que construir uma resposta
adequada ao estado de coisas em que nenhuma das candidaturas postas e com real
chance de vitória minimamente atenda às necessidades do sistema e aos anseios
da população. Do contrário, a democracia não será o “governo dos homens livres”.
Nesse contexto não é consciente votar no menos mal, para garantir a vitória de
quem por motivos ideológicos ou pessoais odiamos. A democracia não é o sistema
dos ódios, mas o da consciência. Se nenhum dos candidatos postos representa o
ideário de Estado que buscamos, é plenamente legítimo o voto nulo, pois isso
significa um protesto e uma denúncia contra o descalabro das coisas postas.
Faz muito mal (certamente não por inocência) a
Justiça Eleitoral ao determinar que os votos nulos e brancos serão totalmente
desconsiderados na totalização dos percentuais de votos, porque isso retira a
possibilidade prática do voto de protesto. Tal regra, advertimos, não está
inscrita em nenhuma lei da nação, mas em um mero regulamento editado
unilateralmente pela própria Justiça Eleitoral. E desde quando, mesmo, é
possível a edição de regulamentos autônomos, sem amparo expresso em lei, no
direito brasileiro? Este é outro fator que faz desacreditar a democracia à brasileira.
A tese é a de que será possível construir uma
revolução silenciosa, fazendo o sistema corrompido e irrecuperável da democracia
brasileira ruir de dentro para fora, sem armas ou qualquer outro tipo de
violência, simplesmente pela utilização do voto de protesto. Quando, por exemplo,
mais de noventa por cento dos votos forem nulos nenhum governo será legítimo e
naturalmente não conseguirá sobreviver. O sistema brasileiro, tal qual está construído
jamais permitirá que um político honesto e bem intencionado chegue ao poder
central. Portanto, o único caminho pacífico para a sua destruição é pelo voto
de protesto. Votar no menos mal é outra maneira de legitimar o sistema posto,
porque assim jamais haverá o bom de verdade.
A propósito dessa tese, recomendamos a leitura de
uma obra lúcida e moderna, exatamente sobre a crise das democracias contemporâneas.
Novamente não é uma obra de ocasião, que sequer mirou para o caso brasileiro. É
uma crítica bem genérica à democracia como sistema. Referimo-nos ao livro Ensaio Sobre a Lucidez, do português, prêmio
Nobel de literatura, José Saramago.
Fica a dica.
Jorge
Emicles
Nenhum comentário:
Postar um comentário