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quarta-feira, 26 de setembro de 2018


TOTA



                   Quantas seriam as maneiras possíveis de se fazer caridade? O ideal básico, construído das experiências cristãs é, sem dúvidas, dar alimentos, agasalhos e um teto aos miseráveis. A figura lembrada no imaginário global talvez seja a da benfazeja madre Tereza de Calcutá. No Brasil, falariam por certo da humilde irmã Dulce. Sem dúvidas, pessoas que legaram toda a vida à causa dos pobres. Não se poderá mesmo duvidar do quase infindável número de pessoas que foram socorridas por essas almas caridosas no momento mais tormentoso de suas vidas. É inegável que praticaram grandes e importantes atos de caridade, o que os destaca como santos e mártires católicos.
                   No nordeste brasileiro, no tórrido chão do sertão, naquelas regiões quase esquecidas pelo poder público e tantas vezes ignoradas pela máquina eclesiástica da igreja católica a figura mais notória sem dúvidas será a do missionário padre Ibiapina, que abandonou as míopes letras da magistratura e da advocacia pela peregrinação errante, terras secas adentro, a fundar tanto quanto pode as inumeráveis casas de caridade. Eram organizações dotadas de uma hierarquia leiga, formada por irmãs não ordenadas, a quem incumbia o padre de organizar os serviços educacionais e caritativos da instituição, que eram o de dar alimento e educação básica à população carente da localidade. O Crato ganhou uma das mais afamadas Casas de Caridade do padre Ibiapina.
                   Mesmo convidado o padre pela diocese do Ceará a abandonar as terras alencarinas, seguiu funcionando por muitos anos a Casa de Caridade do Crato, mantendo vivos os princípios e propósitos de seu benemérito fundador, que jamais em vida voltou a visitar nenhuma das Casas de Caridade fundadas na diocese do Ceará.
                   Ali, pelos idos dos anos setenta do século passado chega uma jovem freira, de idade curta, mas de experiência avançada nas artes da educação, a quem se entregou a administração da Casa de Caridade do Crato. Jamais foi seu propósito, mas parece que quis o destino que sua vocação seria o exercício da caridade através da educação. Eis que a sorte da vida lhe legou uma turma de crianças que por falta de vagas estavam preteridas de outras escolas da cidade. Ela, determinada freira, não poderia deixar aquelas crianças sem as lições básicas da educação a que estava já tão habituada como ex-diretora do centenário Colégio Santa Tereza, em Crato. Recebeu as crianças com destemor, mesmo sem a anuência do bispo. Ao termo de seis meses, aquele minguado punhado de crianças já era em número de cinquenta. Com menos de um ano era imperioso fundar nas dependências da Casa de Caridade de Crato uma nova escola, porque era cada vez mais numerosa a procura da nova clientela. Foi inevitável aquilo tudo, dado o magnético carisma da jovem madre Feitosa, primeira e até hoje única diretora do Colégio Pequeno Príncipe, atualmente um dos mais renomados do Cariri.
                   Mesmo dividindo as dependências da antiga construção tomada a efeito pelo padre Ibiapina com a nova escola, continuaram por longos anos sendo assistidos os miseráveis que procuravam madre Feitosa. Nunca lhes faltou o de comer, como também jamais lhes foi negado abrigo, afeto e orações. A expressão madre vem do latim mater e significa mãe. Pois poucas mulheres mereceriam esse substantivo mais que aquela freira, que mesmo sem jamais parir foi mãe de dezenas, quiçá centenas de almas desvalidas, a grande maioria delas pobres que encontrou no transcurso de sua missão à frente da Casa de Caridade. Tota, era como aqueles seus filhos postiços tratavam a caridosa mãe com a qual Deus lhes havia acudido na sofrida vida.
                   Porém, ela não foi somente a mãe dos pobres, pois entre os melhores validos também encontrou o sofrimento e a penúria do desamor, do abandono e de diversas outras formas de desespero. Ela não olhou a quem, tendo servido indistintamente a todos que lhe pediram socorro. Compreendeu como poucos que talvez a mais hábil das caridades que se pode fazer a outro é a de lhe alimentar o espírito pelos frutos do conhecimento e pelos caminhos iluminados da educação. Pois também se conta às centenas o número de pobres que tiveram a possibilidade de estudar no colégio da madre Feitosa. Sem custos, mas com os mesmos direitos dos que tinham a possibilidade de pagar. Talvez tenha sido esse o maior mérito do Colégio Pequeno Príncipe nos seus primeiros anos de existência.
                   Orginalmente eram os mesmos os corredores do colégio e da Casa de Caridade, de paredes largas, ares meio sombrios e muitas histórias de sofrimento impregnadas na energia daquela antiga construção. Era a mesma a capela em que as turmas de crianças eram educadas no catecismo e que, décadas antes, fora aprisionada e interrogada a beata Maria de Araújo no famoso processo eclesiástico que apurou o milagre de Juazeiro. Foi ali mesmo que a beata disse ao inquisidor, humilde, mas com firmeza, que o padre Alexandrino, presidente do processo, não estava em estado de graça, o que a impedia de operar o milagre em sua presença. A primeira geração de alunos do Colégio Pequeno Príncipe viveu ali, impregnada da história mais viva e contundente do Cariri cearense. Testemunhando sem saber os mais decisivos conflitos acontecidos que tinha havido entre a hierarquia eclesiástica de Roma e os santos consagrados pelo povo. Primeiro o padre Ibiapina, depois o padre Cícero, seu legítimo sucessor.
                   Madre Feitosa sempre foi alheia a tudo isso. Soube respeitar a visão dos historiadores, dos teólogos e da tradição popular. O que de fato sempre importou a ela foi a realização da caridade. Todos os pobres que a procuravam estariam alimentados e acolhidos? Todas as crianças que recebia diariamente estavam felizes e devidamente instruídas? Que bons conselhos poderia dar a uns e outros? Como poucos, soube a freira se apropriar do sentido de amor encontrado na clássica obra que deu nome a seu colégio. Eres responsável por aquele a quem cativa. Tudo deveria ser simples assim, sem debates ideológicos ou julgamentos históricos. O que o Cristo prega é o amor. Pois é dever de cada cristão praticá-lo com intensidade e destemor. Foi o que ela fez e continua fazendo mesmo superadas mais de nove décadas de vida terrena.
                   E assim, ao longo de décadas de simplicidade abnegada legou pelo seu exemplo a seguidas gerações as lições do Cristo, que é amor, acolhimento, respeito e dedicação.
                   Merecido o reconhecimento popular dela como uma santa encarnada.

Jorge Emicles

Um comentário:

  1. Comungo de seus sentimentos, meu dileto amigo, pois como você também fui agraciada pelo amor de nossa querida Tota. Bjs Katia Rejane Moreira

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