CATARSE
Éramos
ainda crianças que arriscavam os primeiros vislumbres da idade adulta, que
teimava em não vir na brevidade reclamada pela inquietação daquela época tão
cheia de hormônios e incertezas e mesmo assim já nos arvorávamos senhores dos
saberes mais intricados da política e da filosofia. Contávamos exatos dezesseis
anos e já nos era oferecida pela história a possibilidade de votar para o
Presidente da República Federativa do Brasil. Aquela seria apenas uma das
muitas novidades apresentadas pelos coloridos anos oitenta que teriam desfecho
magnânimo com o retorno da plenitude democrática brasileira, representada com
tanta grandiloquência por aquela eleição.
Tínhamos no Brasil uma nova Constituição, cujo
significado simbólico e suposto poder normativo somente teríamos condições de
vislumbrar anos depois, no curso da futura formação jurídica que haveríamos de
ter, muito embora àquele longínquo ano tivéssemos outros propósitos de formação
acadêmica. O que importava mesmo era o merecimento de com tão tenra idade já
sermos senhores do soberano poder de eleger o Chefe máximo do nosso Estado.
Rousseau nos parecia definitivamente com a razão, pois sua célebre frase era
explicitamente reproduzida na própria Constituição. O poder dali em diante era
emanação do povo, somente em seu nome podendo ser legitimamente exercido. As
parcas leituras de sociologia da época nos davam a vã impressão de que a
história somente anda para a frente e que, por isso, retrocessos não são
possíveis em seu curso. Assim, se éramos uma democracia jamais retrocederíamos
a outro estágio menos elevado.
Permitir que as massas cegas e surdas à razão da
ciência e à irrefutabilidade do método necessariamente as conduz a decisões não
apenas equivocadas, mas também extremamente perigosas. Nosso primeiro voto foi
regalado ao velho caudilho, que de lenço vermelho sob os ombros vociferava com
destemor os abusos do decaído regime autoritário como também os riscos da
candidatura que representava seus ainda vívidos interesses. O mesmo capital
espúrio e dominante que apoiou a ditatura agora financiava a candidatura do
caçador de marajás, que pela sua tez jovial, expressão valente e corpo atlético
não permitia qualquer comparação ao ancién
régime brasileiro.
Tais atitudes não valeram tanto, afinal. Sagrou-se
vencedor o pensamento neoliberal do Estado mínimo, do desprestígio aos valores
nacionais e do desrespeito às lutas sociais históricas. Era de se perdoar
aquela massa de analfabetos, que iludida pelo encanto da sereia do marketing
eleitoral votou no produto de embalagem mais collorida, sem reparar bem no
projeto de nação que precisava ser erguida a partir daquela eleição. A
democracia brasileira deveria ser jovem demais para negar o poder a
aventureiros demagógicos. Ficou vívida a certeza de que dali a trinta anos
coisas como aquela não seriam mais possíveis. Era preciso insistir na fórmula
da democracia.
Um governo sem apoio parlamentar, sem raízes em
movimentos sociais e sem conexão com a história nacional poderia dar em que,
afinal? Em nada diferente do que deu aquele filho da primeira eleição direta
para Presidente do Brasil em quase trinta anos. Uma palavra específica,
importada da língua inglesa, começou a fazer sentido entre nós tupiniquins. Foi
da ruína daquele governo que o impeachment
passou a ser compreendido como a salvação nacional. Tudo deu na construção de
um novo governo de centro direita, que fundou o marco da estabilidade econômica,
na eleição e reeleição de um projeto de nação liberal e sem compromisso com a
dignidade humana, a igualdade plena e efetivação de importantes direitos
fundamentais.
Os cara
pintadas até saíram às ruas, mostrando a face de uma juventude cheia de
sonhos e esperanças em uma nação mais unívoca em um destino comum de direitos e
oportunidades. Mas aquela era apenas uma parcela de uma juventude muita mais
complexa e diferente, cujo desfecho para a história não foi tão feliz quanto
prometia. Aliás, os desfechos raras vezes são nas mesmas cores da quimera.
Foi no sufocamento do modelo econômico de
potencialização da mais valia em detrimento da realização da dignidade da massa
da população favelada, explorada e torturada pelas mais diferentes formas que
ascendeu enfim ao poder o operário, demonstrando que as letras bem desenhadas
da academia muito antes de transformar uma sociedade, tendem a manterem
inalteradas as estratificações do poder, pois também a intelectualidade faz
parte da divisão das castas.
A promessa foi a da erradicação da fome, da
ascensão social e fim de privilégios. O resultado foi a irresponsabilidade
fiscal, a quebra da economia e repetidos escândalos de corrupção. Tudo bem
maquiado por programas caros e antagônicos aos verdadeiros propósitos de
isonomia nacional.
Esse tema é bem presente ainda na história
nacional. A nós parece não ser possível ainda fazer uma análise clara e
imparcial desse momento histórico. As cores vibrantes das últimas três eleições
nacionais terão ainda suas marcar profundamente fincadas em qualquer análise
séria sobre o tema. Mesmo assim, enquanto cronistas, nos embrenhamos nele, pois
que é do cotidiano de que tratam os cronistas. São riscos inevitáveis aos
historiadores do momento presente, que ainda no calor dos acontecimentos tentam
dar algum tipo de significado a eles.
Plenamente cientes desse risco dizemos que aquele
projeto incialmente apresentado por quatro eleições seguidas de um país
igualitário e solidário, que garantisse os plenos instrumentos de
desenvolvimento humano de seus cidadãos foi transmudado com a chegada ao poder.
Dizendo ainda mais, aduziríamos que é condição da chegada ao poder a corrupção
dos seus pretendentes. O sistema não permitirá jamais a vitória de pessoas
honestas, sóbrias e firmes de propósitos éticos e puros. Juntamente com o
poder, o operário tratou de construir mecanismos que garantissem a sua
manutenção, de preferência perpétua. Um richer
de mil anos não seria uma coisa impensável àqueles egocêntricos noviços na
estrutura do poder estatal.
A corrupção que se instalou não foi simplesmente
fruto da ganância do enriquecimento pessoal de alguns. Se tratou mesmo de um
projeto de perpetuação no poder, cujo propósito último era a continuação do
mesmo grupo por seguidas gerações. Contudo, nada que não tenha já sido feito
por castas de empoderados anteriormente. Os canais utilizados não eram qualquer
novidade aos conhecedores dos meandros dos palácios brasilienses. Para os que
pretendem vislumbrar a verdadeira dimensão dos acontecimentos históricos que
tiveram vez na primeira década do século vinte e um no Brasil, é preciso
reconhecer que a corrupção se trata de estratégia recorrente para a
consolidação e manutenção do poder. Para ficarmos exclusivamente no caso
brasileiro, bastaria lembrar as peripécias da República Velha, que
recorrentemente fraudava eleições e onde grassavam diferentes práticas
corruptivas; o governo de Getúlio Vargas, que abusou da manipulação, das
mentiras e da perseguição para se manter no poder por quinze anos consecutivos;
e da própria ditadura militar, reconhecidamente a maior colaboradora do
endividamento externo que conduziu o país à crise financeira das décadas de
oitenta e noventa do século pretérito.
O operário não inventou a corrupção, mas seu
governo a praticou de maneira despudorada. Não é verdade que nunca antes se
tenha usurpado em tamanha dimensão as riquezas nacionais. Já houveram elites
políticas mais eficientes nesse critério. O que a imprensa desvela é a
percepção das práticas corruptivas, não seus índices efetivos. Ainda assim, o
maior erro daqueles três governos e meio foi haver se permitido às mesmas
práticas dos que os antecederam. O operário bem sabia que a história não lhe
permitiria cometer erro crasso assim, pois o seu papel seria o de modificar os
paradigmas, não o de mantê-los.
O segundo pior erro foi o de não ter propiciado os
verdadeiros instrumentos de emancipação à população inicialmente beneficiada
pelos programas sociais. Na mesma medida em que é imperioso alimentar o
faminto, não se pode viciá-lo pelos favores governamentais. Essa prática
igualmente é uma forma de corromper o espírito do assistido, pois lhe
enfraquece as condições de reagir diante das inevitáveis vicissitudes da vida.
Criar oportunidades é tão importante quanto prestar auxílio direto. Mas não ao
custo de formar novos injustiçados sociais. Esse é o problema de todas as
políticas públicas de assistência, atreladas aos direitos fundamentais chamados
de segunda geração. Não se sabe ao certo se são bons ou ruins aos cidadãos,
porque ao mesmo tempo em que auxiliam, corrompem. Esse fenômeno é objeto de
diversos estudos, na Europa inclusive. Longe está de ser criação nossa.
Pelo menos na história recente da nação
certamente, enquanto povo, não tivemos decepção maior. Cansados do modelo em que
a elite política domina e corrompe, alçamos ao poder um novo pensamento,
galgado na ética e na efetivação dos direitos fundamentais, que ao termo e ao
cabo demonstrou-se tão corrupto e maldoso quanto o anterior. Era urgente o
soerguimento do novo. Assim pelo menos nos gritava a imprensa em todos os
níveis, reverberada que foi pelas mídias sociais, cujos instrumentos de
controle dos logaritmos se mostram bem mais eficientes que qualquer outra forma
de censura.
Contudo, nada haveria mais velho que aquele novo.
A violência histórica e crescente deveria ser enfrentada com a violência
estatal e endurecimento das leis penais, como se o Brasil já não viesse fazendo
isso pelo menos desde a década de noventa do século passado e como se não fossem
plenamente visíveis os resultados dessas políticas. A história demonstra. Isso
não é nenhuma tese de doutoramento acadêmico. É fato. O encrudelecimento da
violência estatal no combate aos pequenos delitos, a desumanização das prisões,
a criação da lei dos crimes hediondos, que proibia a progressão da pena em
determinados crimes, redundou na criação do PCC – Primeiro Comando da Capital –
dentro das prisões paulistas, na expansão dessa e de outas organizações
criminosas de igual origem por todos os estados da federação e na perda total do
controle do sistema prisional pelo próprio Estado. Aumentar a violência estatal
é aumentar a organização do crime.
Ampliar o bolo da economia através da aplicação
dos valores do liberalismo somente conduz ao aumento das já gritantes
diferenças sociais entre ricos e pobres. Quando as partes são desiguais não
existe liberdade possível. Nesse ambiente a chamada pacta sun servanda (a liberdade de contratar dos antigos romanos) é
um instrumento de opressão, jamais de isonomia. A xenofobia assim como todas as
expressões das fobias sociais, às mulheres, negros, índios, homossexuais etc.,
todas elas conduzem ao encrudelecimento dos conflitos sociais e deles ao
aumento da violência.
A verdadeira liberdade que sempre foi reclamada em
todos os tempos, durante todos os governos, dessa ninguém se propõe a projetar
e efetivar. Não se liberta senão pela educação, no que pese que poucas sejam as
formas de educação libertadora. Professores, não aparelhos televisivos são
necessários. Porém não quaisquer professores. São de professores livres,
conscientes de seu papel na sociedade e que defendam pontos de vista humanistas;
são esses os únicos capazes de libertar um povo. Quando dizem escola sem
partido, estão na sutileza do não dito propugnando um partido único a
disseminar seus valores em todo o sistema educacional. Nada é mais opressor que
esse ideário, pois quando o professor não puder ter partido será o partido do
opressor que exercerá sem quaisquer temores ou resistências o domínio total e
absoluto. Lembremos que todo o sistema educacional possui sim uma política pedagógica,
instituída por lei. A lei do partido que estiver no poder. Como então uma
escola não ter partido?
Mas em que isso será novidade? Já esquecemos os
métodos dos nazistas e fascista na Alemanha e na Itália? Não vale mais a
opressão do partido único da União Soviética? Todos proibiram a liberdade
acadêmica do professor. Todos encrudesceram a legislação penal. Todos ampliaram
os instrumentos de opressão bélica do Estado. Será mesmo que desconhecemos em
que tudo isso desaguará?
Trinta anos já se passaram desde aquela primeira
eleição da redemocratização. Por trinta longos e penosos anos o ingênuo povo
pôde amadurecer seu discernimento, a ponto de ser capaz de extirpar de pronto
qualquer tentativa aventureira de se alçar ao poder. O povo, soberano absoluto
da nação, tem o dever de discernimento fazendo chegar ao poder projetos, não
fenômenos. É esta a grande falácia da democracia. Aristóteles já denunciava que
ela se corrompe, abrindo seus flancos ao melodioso discurso da demagogia. E é
assim mesmo, pelo exercício do voto que o povo serenamente entrega sua
soberania ao melhor dos sofistas. Sem resistências se deixa dominar, porque no
fundo mesmo a verdade é que lhe falta vontade de vir a ser propriamente livre.
Ninguém deveria ser livre para se escravizar, nem para renunciar a seu dever de
ação diante do mundo. O livre arbítrio talvez mesmo não seja uma liberdade tão
ampla assim. Quiçá os cabalistas estejam certos a esse propósito.
Se mais trinta anos de exercício democrático vierem
a ser oportunizados ao povo, lá naquele longínquo e incerto futuro é certeza
que outra vez entregará suas esperanças e as possibilidades de porvir venturoso
a um próximo aventureiro que prometa a repetida fórmula da violência para controlar
a violência; da opressão como meio de rechaçar os excessos; do silêncio forçado
como a cura do malogro.
A maturidade torna tão óbvia esse vislumbre da
próxima era da história. Tudo é um eterno retorno, quase uma metempsicose. A
história se repete e se repetirá ainda por milênios. Nada há de novo sob o sol,
já ensinava Salomão muito antes da história existir.
Jorge
Emicles
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