EPIFANIA
KARIRI
Antes mesmo da invasão estrangeira, tomada a cabo
através das trilhas provenientes de Juazeiro da Bahia, o verde sertão que
circunda a Chapada do Araripe já era rico não somente de água e belas
paisagens, mas sobretudo da valente nação dos Kariri, povo guerreiro, sagaz e altamente
resiliente às auguras que lhe atormentariam com a chegada dos alienígenas de
origem além mar.
Conta uma lenda registrada na obra de João Brígido
que um certo escravo fugiu dos domínios dos senhores da Casa da Torre, propriedade
da família dos Caramuru e imponentes desbravadores dos sertões. O tal negro veio
ter na Chapada do Araripe, tendo sido acolhido pelos Kariris. Em certa ocasião,
vendo que seu povo estava sendo massacrado por uma outra tribo, no meio das
recorrentes guerras entre nações indígenas, teve a ideia de ir buscar auxílio
junto aos antigos senhores da Casa da Torre, guiando-os até a imponente Chapada,
habitat dos Kariris. Os guerreiros brancos de fato ajudaram os índios a vencer
a guerra, mas em paga lhes cobrou a dominação.
Assim, nasceram os primeiros povoamentos brancos
da região.
Há relatos provenientes de mais que uma fonte de
que os índios Kariris teriam sido paulatinamente massacrados; que houve um
verdadeiro extermínio dos amarelos. Embora tenha de fato acontecido um
irreparável derramamento de sangue, necessário ao domínio dos invasores,
garantindo-lhes a definitiva posse das sesmarias que se instituíram desde
então, é inegável reconhecer que muitos dos primitivos habitantes sobreviveram
sim até os dias atuais.
Um tanto deles foi, na linguagem do colonizador,
amansada, passando a viver pacificamente nos povoamentos inaugurados. O Curato
de São Fidelis, povoamento original que redundou no hoje município de Crato, é
um dos melhores exemplos desses povoamentos. O índio civilizado, se integrou de
tal forma ao modo de vida do colonizador, que pareceu ter simplesmente sumido
da paisagem local.
O que não significa dizer que não tenha resistido.
O caboclo que habita não somente a vasta zona
rural de toda a região, mas em igual intensidade as suas pequenas e grandes cidades,
aquele a quem nos habituamos a chamar simplesmente por sertanejo; o broco homem
iletrado, de fala incorreta à luz das inflexíveis regras da gramática; é ele,
esse cabiró, o mais legítimo herdeiro dos antigos guerreiros Kariris, os de
cara triste, como é tido o significado do nome desse povo. Sua resistência se dá
através de diversas entre as ricas tradições culturais da região.
Nada, contudo, é marca tão bela e profunda dessa
resiliente resistência cultural do índio caririense quanto as bandas cabaçais,
com especial nota à bicentenária dos irmãos
Aniceto.
Observar seus pífanos de bambu, como também o
conjunto dos instrumentos, danças e valores simbolizados tão ricamente através
de sua arte, é como uma sensível aula de antropologia. Em tudo o que fazem e
dizem há uma referência à tradição dos índios, aprendida por intermédio da mais
legítima tradição oral, da mesma forma como sempre foi na prática silvícola.
Isso, desde a forma de construção dos instrumentos até o simbolismo dos passos
de dança e da memória que resgatam a cada uma de suas músicas e coreografias.
Em todos os números, contam o que se deu com seu
povo, rico de uma cultura de origem esquecida, respeitadores das forças da
natureza, como homem branco algum é capaz, conhecedor de artes indecifráveis
para a ciência moderna, que aos poucos foram sendo obrigados a renunciar
expressamente às suas tradições e valores, não sem os introduzirem quase que
silenciosamente nas suas danças, músicas e festas.
É a história de como os índios resistiram à dominação,
mesmo vencidos pela força, que conta a banda cabaçal dos irmãos Aniceto. A luta
com as abelhas, a dança da coruja, o fiel cão que caça e é morto pela onça,
todas essas são mais que histórias, músicas e danças que encantam às plateias
mundo afora. São a própria origem e ressureição dos antigos índios agora, por
força da dominação branca, adaptados na aparência do uniforme em tecido grosso em
tom forte de azul, no chapéu de massa, tradição europeia e na língua do
colonizador, que através do seu jeito peculiar de expressão linguística denuncia
não as incorreções em comparação à língua culta, mas na verdade uma linguagem
própria, carregada da memória de como era a fala na época da colonização, mas
também de várias expressões dos índios mesmos.
Se olharmos bem, repararemos na encantadora
história dos índios, sua rica cultura e resiliência, mesmo diante da atroz violência
que sofreu. É a parte do Cariri que vale a pena conhecer, a que extravasa para
além de suas fronteiras.
Jorge
Emicles
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