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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

MÃE DINDINHA



                   Acercar-se da casa grande do sítio Tatu, encravado no coração rural da velha Lavras da Mangabeira, à primeira vista é como chegar a uma dentre tantas centenas de milhares, de fazendas nordestinas. Tudo ali nos parece típico. Há a casa grande centenária, de paredes grossas, confeccionadas em tijolos de proporções descomunais para os padrões atuais. Há ao fundo o igualmente centenário açude, que mesmo já assoreado pela antiguidade de sua construção ainda é plenamente hábil em salvar os moradores e a criação local da medonha estiagem que ciclicamente afeta toda a região do nordeste brasileiro. Há os baixios, ao lado, que fazem brotar hoje a pastagem necessária ao sustento das criações de bovinos e ovinos, que, porém, não guardam mais os vestígios da antiga produção de cana-de-açúcar anualmente moída e transformada em rapadura no velho engenho. O engenho mesmo se identifica por um amontoado de engrenagens enferrujadas, já a descampado, porque o prédio que guarnecia a ferragem já não existe mais, destruído que foi pela quase criminosa ação do tempo, que não deixa nunca guardar a eternidade dos momentos de alegria ou enfado, quando perdidos no negrume obscuro do passado.
                   Não se guardaram, muito menos, pistas valiosas de o que se desenrolava por ali há cem anos apenas. Não fosse pelo relato oral dos descendentes, por exemplo, não seríamos capazes de reconhecer que a indústria que mais prosperou naquele pitoresco, aprazível e bucólico lugar, onde o silêncio reina soberano, convidando aos visitantes, senão a alguns momentos de contemplação diante da paisagem, por certo a um relaxante banho nas águas do velho açude, o que faria qualquer de nós absolutamente inocente da verdadeira seara que se colhia das entranhas daquela terra: a carne humana, negra e sofrida da escravidão. Era essa, afinal, a principal produção da gigantesca indústria oligárquica que se instalou na velha Lavras, maestralmente comandada inusitadamente por uma mulher. Não, contudo, por uma qualquer. Afinal, a cultura coronelista instalada no sertão não estaria nem um pouco disposta a gentilmente ceder o poder do jugo; a fortaleza do bacamarte e a autoridade do patriarcado a uma mulher, fosse esta quem fosse.
                   Para a história, esta mulher fez-se conhecer como a velha Fideralina Augusto Lima, matriarca de uma populosa família e maior de todas as expressões políticas de sua terra, sombreando inclusive vultos históricos regionais e nacionais como os de Bárbara de Alencar e Anita Garibaldi. Sua autoridade igualmente é reconhecida pela importância em relevantes passagens históricas da região sul cearense, como em face de sua íntima amizade com o Padre Cícero, de Juazeiro, sua contribuição para a atestação científica do milagre da hóstia (foi seu filho e médico Ildefonso uma das autoridades científicas que deram atestado da veracidade do acontecimento), sua indispensável participação nos fatos  que desembocaram na revolução de 1914, com a consequente derrubada do presidente do Estado, movimento que sagrou outro filho seu, Gustavo, como vice-presidente do Estado, para ciúmes e desgraça da astuta raposa que era Floro Bartolomeu. Também soube resistir, pelo prestígio ou pela bala, a todas as tentativas de destituí-la do soberano poder simbólico que sempre exerceu na região, mas igualmente em todo o Estado. Mais que em outros casos, o poder da velha matriarca era sobretudo simbólico, porque cargos públicos mesmo ela jamais os exerceu, muito embora sempre tenha tido a primazia da influência na nomeação de seus ocupantes.
                   A horda de seus maiores adversários políticos é composta quase sempre por sua própria parentela. Seja oriunda da irmã de sangue conhecida em família simplesmente como Pombinha, seja proveniente de seu próprio filho Honório, é do sangue dos Augusto que ela teve as mais severas resistências. A questão chegou ao cúmulo de ela haver determinado a deposição do filho Honório da chefia do partido governista a bala, através de cabras por ela muito bem armados e comandados pelo seu sempre fiel escudeiro, o filho Gustavo Augusto Lima, depois da mãe a maior liderança política de sua terra. Fez isso, contudo, não sem uma severa advertência a seus cabras, a de que quem porventura arrancasse sangue de Torto (como chamava a velha a seu filho Honório) pagaria com a própria vida. Esse inusitado fato nos prova que antes da grande líder política, era um coração de mãe que batia no peito daquela valente mulher.
                   Um historiador que contemple a velha casa do Tatu, em seus corredores hoje vazios pressentirá por certo a velha matrona a dar ordens a seus cabras, a dirigir os trabalhos da casa e da propriedade toda, a tomar conta de seus prepostos, a articular o futuro político de sua terra, através das inúmeras e firmes alianças que sempre fez com os coronéis regionais. Também encontrará semelhanças entre a casa grande do Tatu e a fortaleza de Maria Moura, personagem principal do derradeiro romance da imortal Rachel de Queiróz, reconhecidamente inspirada na velha Fidera.
                   Para a sua descendência, como é o nosso caso, o que vemos ao chegarmos à velha propriedade são, primeiro, as lembranças de criança, quando inocentes corríamos sob os domínios da velha matriarca, sem nos darmos conta das inusitadas refregas que já se deram por ali. Sem saber, éramos descendentes das riquezas que a escravidão gerou e do convencimento que o bacamarte impôs. Tudo isso bem regado a bastante sangue, seja de forasteiros, seja dos próprios membros da família. A verdade é que a família Augusto ainda não conseguiu se libertar totalmente da herança de violência dos tiranetes. Em seguida, as novas gerações dos Augusto eram informadas da imponência histórica de sua ascendência. Apesar da quase inexistência de vestígios, aquele velho sítio Tatu já foi o centro do mundo. Mundo comandado por uma mulher, que por sua realeza se encontrava acima de todos os homens, possuía o domínio sobre todas as armas e sobre todas as vontades de tantos quanto a cercavam. Era mandona, porém, sempre maternal com sua descendência. Chegou a aparar alguns netos em seu nascimento, e por toda a parentela era carinhosamente chamada de mãe Dindinha. Não descendíamos, portanto, da “coronela” de saias Fideralina, pois quem nos guardava em nossas brincadeiras de criança sempre foi a mãe Dindinha, mulher misteriosa, de imenso poder simbólico, que havia escondido uma botija cheia de ouro, a qual geração após geração seus descendentes procuram, mas que permanece encantada. A mesma mãe Dindinha que construiu o açude para toda a descendência, cuja fé era tão inabalável, que em certa ocasião, quando uma tempestade ameaçava arruinar a parede do reservatório, passou toda uma noite orando, pegada em seu rosário, para obter a preservação de sua construção, no que foi atendida pelos céus. Conhecíamos sim, a avó zelosa, que inconformada pela injusta morte do neto, em Princesa da Paraíba, mandou invadir o lugarejo para vingar o mal feito, tendo determinado a seus cabras que de cada homem abatido lhe fosse trazida uma orelha, tendo daí começado a decantada história de seu famoso rosário de orelhas, com o qual regularmente teria proferido suas orações.
                   Para além dessas carinhosas lembranças, embebidas tantas vezes na fantasia da meninice, nas lembranças da oralidade repassada por pessoas que não mais se encontram nesse plano e pelas lendas mesmo difundidas por diversas gerações a respeito de quem teria de fato sido essa inesquecível mulher, devoramos com imensa alegria a biografia da velha matrona recentemente lançada pelo ilustre jurista, escritor, poeta e historiador Dimas Macedo. Justa reverência que a história faz à imensidão dessa grande mulher; belo e criterioso trabalho que somente poderia ter nascido da grandiloquência de uma mente como a do culto Dimas Macedo.


Jorge Emicles

quinta-feira, 2 de novembro de 2017


UMA FICÇÃO, APENAS

                   Segue a novela surrealista da terrae brasilis. Por aqui se dão acontecimentos tão inusitados, que seriam rechaçados de pronto pelo mais engenhoso dos ficcionistas. As histórias deste lugar não caberiam nos romances de Garcia Marques e seriam desprezadas até mesmo por mentes satíricas e críticas como a de Voltaire. Quem, afinal, poderia imaginar que no curso de uma cansativa, solene e vetusta sessão da Suprema Corte de um país qualquer (de uma república de bananas que seja!) coubesse uma troca de acintes entre dois majestosos, imponentes e assoberbados juízes, em que reciprocamente se acusassem de autores de crimes e reincidentes quebra do decoro, da ética e do mais miúdo cuidado com a aparência de suas ações.
                   No campo da ficção, contudo, tudo cabe. Sendo assim, exclusivamente a título de exercitar a fértil imaginação que nos habita, na talvez vã tentativa de pôr fim a esse burburinho de ideias que não para de fervilhar; na esperança de que teremos ao menos um instante de sossego se acaso ponhamos para fora tais elucubrações alucinógenas que a nós povoam; somente por este superior motivo, daremos azo à imaginação, registrando assim um sórdido e ficcional diálogo entre dois juízes superiores, acobertados pela santidade da vitaliciedade, embebidos da extrema cultura e saber que a educação formal é capaz de conceder. Em uma palavra, seria um diálogo entre duas divindades, emantadas pela eternidade de sua reluzente cultura, claramente visível pelas palavras difíceis, becas negras e brilhantes a lhes cobrir o corpo já deformado por tantas e caras guloseimas servidas insistentemente nos intervalos das cotidianas sessões de que tomam parte. Nada, enfim, que se relacione com a benfazeja terrae brasilis.
                   Claro! Nenhuma do que se dirá a seguir será verdadeira. Já dissemos e fazemos absoluta questão de reprisar: é a fútil imaginação que se permite fruir, sem qualquer compromisso com a realidade dos fatos; sem nenhuma intenção de provocar qualquer reflexão. Se trata de um simplório instrumento de aplacar a coceira de ideais maldosas que nos habitam. Somente isso, insistimos. Aliás, é de total inutilidade a transcrição desse diálogo, de tal sorte que desde já fica o preclaro leitor isento de seguir na leitura. Há coisas muito mais úteis a serem consumidas, afinal. É tão despropositado o diálogo imaginado, que nem mesmo os respeitáveis juízes, fruto exclusivo de nossa imaginação, nem eles mesmo teriam incentivo a continuar a leitura, preferindo certamente os volumosos tomos do Tratado de Pontes de Miranda ou, quiçá, a moralista obra do insubstituível Nelson Hungria. Jamais, contudo, a leitura a seguir alinhavada.
                   De toda sorte, mesmo ciente da inocorrência de leitores para o que teimosamente queremos dizer, ainda assim segue emantado em nossa mente a figura dos dois juízes, sentados ao redor de uma espécie de balcão enorme, em formato de “U” e também ocupado por outros parceiros. Todos taciturnos, escondendo o desagrado e a surpresa pelo inusitado diálogo de inopino ocorrido. Na verdade, estavam inicialmente a tratar de assuntos sérios, dignos de sua autoridade e de tal importância que os fizeram se dignar a conceder uma pequena fração da eternidade de seus seres imortais a tais elucubrações. O assunto da pauta não vem bem ao caso, vez que a discussão nasceu de coisas colaterais, de conflitos passados, que se bem analisados teriam a inveja, o rancor e o ego como causas primeiras (nessa passagem não podemos deixar de reconhecer o absurdo da ideia de atribuir a seres tão superiores, dignos da imortalidade, como são os juízes, a mesquinhez de sentimentos tão baixos como os enunciados. Ao leitor que esteja resistindo ao insólito da cena proposta antes de abandonar por definitivo a difícil tarefa de ser nosso leitor, nos desculpamos dizendo que tudo é como se nos apresentou a imaginação. Não nos responsabilizamos pelo que essa mente pecaminosa com a qual a Criação nos legou é capaz de gerar!). Então apenas para contextualizar, diremos que discutiam a importante questão de verificar se é acorde à Constituições daquele país uma lei que extinga uma controladoria de contas, o que de novo põe à evidência o absurdo de nossa imaginação, afinal por que razões algum órgão público inevitavelmente deveria ser eterno, de extinção proibida? Ah, esta ideia de questionar o poder do Estado de criar e extinguir seus órgãos sem dúvidas pôs a remexerem-se em suas sepulturas gigantes do direito, como Kelsen, Montesquieu e Hobbes. (Aos seculares mestres, nossas escusas!)
                   Neste passo, quando todos os presentes, por detrás da solene aparência de respeito à fala do juiz que monopolizava, pela vez, a palavra; atitude que na verdade escondia o tédio infinito que se abatia contra os presentes, forçados ainda assim a manter a aparência de uma atitude atenciosa e interessada diante do discurso proferido. Talvez cansado de inopino (aparente, insistimos, pois que seres alados não praticam atitudes inopinadas) um outro juiz, que pelo adiantado da hora temia seriamente perder um encontro previamente agendado, quebrando o protocolo da corte, assacou a seguinte interpelação:
                   - Vossa excelência tanto fala do meu estado natal mas, creio, deveria estar falando do vosso estado, onde todos os seus amigos poderosos estão presos!
                   - Ledo engano, excelência, redarguiu o juiz interrompido. Falo do vosso estado mesmo. Acaso lá também os vossos amigos não estão presos?
                   - De fato, nós prendemos, mas há gente que solta!
                   - Solto-os, excelência, porque defendo os direitos fundamentais, garantidos por esta Constituição que nos empodera a todos. É vossa excelência quem advoga e solta bandidos internacionais, não eu.
                   - Ora, vossa excelência falta com a verdade. Aliás, não costuma mesmo trabalhar com a verdade. (Neste passo, nossa teimosa imaginação interpõe o seguinte pensamento na cabeça do juiz, dito de si para si mesmo, pois tal seria demais reproduzir em voz alta: esse canalha mentiroso, amigo dos verdadeiros criminosos e que a olhos claros trabalha pela manutenção do estado de crimes em que vivemos. Este é um verdadeiro filho.... Ah, caríssimo leitor, aqui fomos longe demais, pois, claro, nenhum juiz imortal e portador da sabedoria e cultura eternos, legado final de todas as genialidades produzidas pela raça humana, será jamais capaz de pronunciar um palavrão, nem nos momentos de maior engaste. Perdoe a impertinência dessa devassa imaginação que temos! Perdoe-nos!). Vossa excelência, continuou o juiz em voz alta, pratica evidente leniência com crimes de colarinho branco, isto sim.
                   - Ah, insisto, mas não sou eu que advogo para criminosos internacionais. Não fui eu que pus em liberdade um réu condenado por este tribunal por crime do colarinho branco, convenhamos!
                   - O que vossa excelência faz, é mudar a jurisprudência de acordo com o réu. Se for seu inimigo, condena. Se amigo, absolve. Vossa excelência confunde um estado de direito com um de compadrio. Juiz não pode ter correligionários. Não faça deste plenário um comício. Pare de destilar tanto ódio!
                   - Eu, destilador de ódio? Será por acaso que vossa excelência está a agir com amor?
                   A esta altura, o constrangimento era geral e insuportável, a ponto de a presidente da corte se ver obrigada a tomar a palavra e advertir:
                   - Excelências, estamos no meio de um julgamento pela suprema corte. Cuidado com o que falam. Tudo fica registrado nos anais. Encerremos essa discussão paralela e retomemos o julgamento indevidamente interrompido. Ministro Fulano, a palavra estava com vossa excelência. Por favor, continue vosso raciocínio...
                   E assim, tal qual iniciou-se sem aviso, a discussão foi sumariamente interrompida. A imaginação nos informa que, com tal advertência, os juízes voltaram a si, compreendendo a perigosa situação em que se envolveram, acusando-se mutuamente de ilícitos de diferentes naturezas, em ambiente público. No mínimo o episódio seria repercutido na imprensa, que certamente produziria algum artigo ou editorial crítico, reclamando pela apuração das denúncias recíprocas. Claro que isso não redundaria em qualquer punição, pois os deuses não podem ser punidos pelas suas indisciplinas (Maquiavel diria que o príncipe não comete crimes, pois o Estado, que é o próprio príncipe, não pode ser criminoso). De qualquer forma, haveria mal-estar geral, quem sabe alguma manifestação com arremesso de tomates contra os juízes da corte. Algo inconveniente, sem dúvidas. Pior (pensou um dos ministros que tinha em sua discoteca privada toda a coleção de Chico Buarque, e venerava os poemas de Drummond) vai que algum poeta inoportuno cria uma ficção desde este diálogo, denunciando para a história o ridículo em que nos metemos!
                   Depois de feito o que não deveria, somente o silêncio para deixar no passado o que jamais poderia ter sido no presente. Todos ao redor colaboraram, mantendo a mesma cara de concentração, relevância e sabedoria das palavras ditas. Suas faces compenetradas quase diziam em voz alta como eram sábios os imortais juízes de nossa suprema corte. Um país com juízes desse quilate inevitavelmente está fadado ao sucesso econômico e à liderança do mundo civilizado. Homero teria profundo orgulho, se conhecesse nossa superior cultura! Viva a Suprema Corte da terrae brasilis! (opa! novamente desculpamo-nos ante o leitor. É um crasso erro de digitação esse, pois o país de que falamos não é o Brasil. Com convicta certeza, não é!)
                   Ao final da sessão, a presidente chamou aos dois juízes em seu gabinete e lhes admoestou, com o devido respeito e prudência diante de suas imortalidades, no sentido de que deveriam ter cuidado com entreveros daquela estirpe, pois aquilo custava o quase inabalável prestígio do tribunal. Os distintos colegas, advertiu, tinham todo o sagrado direito de se odiarem (afinal, o panteão grego é repleto de histórias de deuses que se engalfinham pelas mais diversas razões). Mas, em público, estavam obrigados a manter a aparência de união da corte. Era um sacrifício necessário à boa ordem dos trabalhos.
                   Dito assim, tudo foi resolvido e superado. Cada qual voltou-se a seus compromissos sociais, retomando a rotina de sempre com suas famílias, correligionários e amantes. Como se nada anormal houvesse acontecido.
                   (Neste ponto preciso, queremos pregar uma peça à nossa imaginação. O raciocínio lógico que herdamos de Descartes nos informa que presente na sessão estava o Procurador da República, que por lei está obrigado a processar todo e qualquer a quem saiba ter cometido qualquer ilícito, pois ensinam as centenas de compêndios de direito penal disponíveis no lucrativo mercado jurídico, que a ação penal é indisponível e o ministério público seu natural e irrecusável titular. Eis a figura moderna do carrasco, sempre a postos para buscar sanção contra os criminosos da mais diversa ordem. Nem o presidente da república poderia escapar de seu julgo, veja-se o tamanho de seu poder! Também esta mesma racionalidade kantiana nos lembrou que a lei processual penal daquele país fictício [que não se chama terrae brasilis, insistimos!] determina que sempre que um juiz tiver ciência do cometimento de qualquer crime, está obrigado a mandar apurar o ilícito [suponhamos, então e apenas para arrastarmos a famigerada imaginação que possuímos à armadilha final, que na lei do referido país, mais especificamente no artigo 40 de seu Código de Processo Penal houvesse o seguinte enunciado: “quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”]. Logo, nossa imaginação foi aí pega no contrapé, porque simplesmente é impossível – não apenas absurda – a história por ela imaginada. Os juízes briguentos obrigatoriamente sofreriam o constrangimento de uma investigação, porque mesmo que a presidente daquela corte hipotética não adotasse as providências impostas pelo seu dever, quaisquer dos outros juízes presentes o fariam, e mesmo o procurador estaria obrigado a fazê-lo. Aliás, qualquer juiz nacional que tivesse conhecimento do fato estaria legalmente obrigado a requisitar a investigação).
                   E ponto final! Demos enfim o xeque-mate à nossa intempestiva imaginação!
                   Inoportunamente, no entanto, a danada não se deixou vencer. Insistiu em apresentar na nossa tela mental a imagem da leniente camaradagem de uns com os outros, sem qualquer risco de punição. Apresentou-nos a sessão seguinte daquele tribunal (graças ao bom Deus, um tribunal hipotético) onde sorridentes todos seguiam em sua rotina, sem preocupação alguma, como se sem memória já do insólito acontecimento. O procurador seguia presente em todas as sessões seguintes, sem que ninguém o importunasse a respeito de que medidas investigativas haveria adotado. Todos os juízes nacionais (incluindo, por óbvio, os da corte) seguiram em suas carrascas sentenças de condenação dos pobres, negros e perseguidos, sem qualquer constrangimento diante de sua corte suprema. Sem jamais ousar indagar de que lado se estaria cometendo o pior dos crimes (se dentro ou fora das vetustas togas). E simplesmente a vida seguiria sem novidades até o próximo entrevero ciumento entre outros dois membros da corte, o qual repercutiria por alguns dias nos jornais e outra vez cairia no silêncio hipócrita da conveniência.
                   Vez que não pudemos nesse embate vencer a teimosia dessa insana imaginação que nos povoa, deixemos a história como ela a delimitou. Ainda bem, contudo, que se trata de uma singela e desnecessária ficção, que em nada engrandece a sabedoria e imortalidade dos nossos juízes. Nada mesmo que se relacione ao amado Brasil. Ainda bem, afinal, que vivemos todos num moderno e próspero estado democrático de direito, guiados por uma sólida e inabalável constituição dirigente, cada vez mais próximos da plenitude da felicidade coletiva! É deveras uma graça superior possuirmos iluminados constitucionalistas que ensinam essas superiores verdades aos nossos diligentes estudantes de direito, que a partir da retidão dessa formação se tornam sagazes advogados, iluminados promotores e imortais juízes. Um milhão de vivas por isso e tudo o mais que nos legou Canotilho e Bonavides. Infinitas graças pelas valiosas e gigantescas obras de Gilmar Mendes e Roberto Barroso. Que seríamos sem seu legado de sabedoria e coerência?
                   Que bom, que tudo foi apenas uma surreal ficção! Ufa!

Jorge Emicles

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A VERDADE LIBERTA



                   Na sequência inesgotável de fatos que marca a profunda crise institucional brasileira, chegou a vez de o Supremo Tribunal Federal dar seu lance no tumultuado xadrez da política nacional. Afinal, seria mesmo ingênuo adjetivar por outra expressão diferente de política a natureza da decisão na ação direta de inconstitucionalidade que, na prática, abriu as porteiras para a anistia não apenas de Aécio Neves como de dezenas de outros grandes caciques.
                   Vejamos se não é realmente isso:
                   A ação propriamente foi ajuizada quando o mesmo STF suspendeu o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha não apenas do poderoso cargo que ocupava, mas também do próprio exercício do mandato. Foi inclusive denunciado porque houvera adentrado nas dependências do congresso durante a vigência da medida. Para tanto, não se cogitou em pedir licença à respectiva casa para dar efetividade à medida.
                   Inconformados com o fato, dois partidos aliados ao então Presidente da Câmara dos Deputados, ajuizaram a dita ação direta da inconstitucionalidade, que essencialmente pretendia a declaração parcial de inconstitucionalidade do artigo do Código de Processo Penal que autoriza ao juiz de direito a determinação de medidas cautelares que restringem o exercício de certos direitos aos réus e investigados em geral. No caso específico, pretendiam que o STF declarasse que os congressistas somente poderiam sofrer essas medidas com a anuência de sua Casa, conforme acontece nos casos de prisão em flagrante (na linguagem técnica, pretendiam uma interpretação da lei, conforme à constituição).
                   Vez que Eduardo Cunha já estava politicamente morto, sem aliados de peso que lhe defendessem os interesses, a ação dormitou nos gabinetes e corredores da suprema corte desde então, sem que qualquer esforço fosse tomado no sentido de agilizar o trâmite e conclusão da ação, como é o costume e regra das ações que correm nos tribunais de todo o nosso continental país. Assim foi e seguiria sendo, não houvesse o senador Aécio Neves sofrido mais este revés em sua combalida carreira política, é dizer: ter o seu mandato suspenso pela aplicação da famigerada medida cautelar expedida por uma das turmas do Supremo.
                   Diante da resistência dos senadores e para conciliar os interesses dos envolvidos, após reunião reservada com o presidente do Senado Federal, milagrosamente a Presidente do STF põe em pauta a dita ação direta da inconstitucionalidade, que convenientemente poderia dar uma resposta política ante a crise instalada. Ninguém em sã consciência poderia concluir algo diferente diante da sequência dos fatos como se deram. Tanto assim é que, em harmonia com o decidido, o senado também adiou sua apreciação em plenário a respeito do imbróglio.
                   Os erros do Supremo, entretanto, não se resumem a ceder às conveniências da política, em detrimento da suposta efetividade de um direito. A gênese de seus pecados é bem anterior (e se fôssemos mais a fundo na questão, sem dúvidas chegaríamos à data de sua fundação, ainda sob a poeira do golpe que inaugurou a república tupiniquim). No caso específico, a própria decisão que suspendeu o senador do mandato já fede à inconstitucionalidade, afinal se estaria antecipando a pena de quem sequer réu virou ainda. Por dever de coerência, é preciso dizer que a Constituição brasileira assegura a todos a presunção de inocência, de tal sorte que por princípio jamais será lícito a antecipação de punições. As medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal somente estarão em acordo com a Constituição (e somente assim serão válidas) quando forem inevitáveis para impedir o cometimento de novos crimes, para evitar a fuga do criminoso ou mesmo para garantir a ordem social. É hipocrisia do Supremo dizer que o senador em questão estaria envolto em quaisquer dessas circunstâncias.
                   Compreende-se que causa um certo embrulho no estômago pensar que o senador terá que se beneficiar de um longo, quase eterno, processo judicial antes de vir a ser efetivamente apenado, correndo o natural e provável risco de ter a pretensão de punir prescrita bem antes disso, mesmo diante das contundentes provas que se apresentaram contra o mesmo. Mas o problema aí não está na presunção de inocência, mas na injustificável morosidade do judiciário, notadamente dos seus tribunais superiores. A presunção de inocência ela é necessária, representa uma garantia contra o erro e o abuso dos juízes, tão mais comum do que se possa imaginar. Assim como ela pode proteger um poderoso senador, também poderá ser igual antídoto contra o abuso praticado a algum pobre preto, acusado de pequenos delitos, seja inocente ou culpado. Fôssemos mais atentados a esse princípio, é fato, a população carcerária do país, mão-de-obra farta e qualificada do crime organizado, certamente seria menor do que se apresenta na realidade.
                   Admira a nós que o Supremo, tecnicamente a arma criada pela Constituição para defende-la das maiorias provisórias e de conveniência, inevitáveis na democracia, ceda ele mesmo à pressão dessa maioria para adotar decisões claramente populistas, que agradam à mídia e tornam famosos seus prolatores, que possuem o efeito colateral de destruir a ordem jurídica, o estado democrático de direito e a própria ideia da soberania da Constituição em face do conjunto do ordenamento jurídico. (Cabe lembrar que estas ideias são a base de tudo o que se escreve a respeito de teoria do Estado na contemporaneidade). Deveras admira que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Cidadã promulgada sob a batuta do velho e guerreiro Ulysses Guimarães esteja a ser lentamente sufocada, aniquilada e profundamente relativizada pela pena torta (ouso dizer) e também criminosa dos juízes da Corte que lhe deveria ser a guardiã.
                   O que não admira é ver a indiferença clássica e taciturna de toda a comunidade jurídica para dar cabo ao verdadeiro problema, à genuína causa de todo o sentimento de injustiça que grassa sob a população brasileira: por que, afinal, não se tomam providências sérias e efetivas para dar cabo à morosidade da justiça? Por que não se institui um sistema sério e independente de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público, capaz de controlar e punir abusos praticados por seus membros cotidianamente, não somente na suprema corte, como em todo o país?
                   O constrangimento e contradição da Presidente do Supremo, ao proferir seu voto de desempate na sessão que julgou a malfazeja ação direita de inconstitucionalidade, claramente revela a profunda incoerência e falta de senso em que se encontra o judiciário de todo o país. Disse a Ministra, em suma, que concordava inteiramente com as opiniões do relator da ação (que negavam totalmente o poder do Congresso de rever as decisões do Supremo), muito embora entendesse que o congresso deveria sim ter a última palavra sobre as debatidas medidas cautelares em matéria penal. Terá isso algo a ver com o conteúdo da conversa que a Ministra teve com o Presidente do Senado alguns dias antes? Talvez jamais a história venha a saber.
                   Mas somente a verdade nos libertará (João, 8:32)!


Jorge Emicles

quarta-feira, 27 de setembro de 2017



UTOPIA BRASILEIRA

                   Desde a segunda metade do já remoto ano de 2014 (tão avassaladora foi a torrente de fatos estarrecedores, que poucos anos parecem um tempo bem longínquo), a nação brasileira se assombra em proporção cada vez maior com o lamaçal de corrupção, abusos de poder e desmandos de toda ordem acontecidos no país no decorrer dos últimos governos. A denúncia que envolveu o chamado mensalão até parece brincadeira de criança perto da ousadia a que os donos do dinheiro e do poder foram capazes de chegar. Os defensores do petismo não têm como mais negar a podridão dos seus governos, embora honrosamente busquem salvaguardar as importantes conquistas sociais fruto de seu legado. Em defesa do lulismo, argumentam que a corrupção foi o preço a ser pago em troca dos avanços sociais muito bem simbolizados pela propaganda em torno do bolsa família, afinal, aduzem, era preciso conter a sanha das elites políticas por dinheiro enquanto seu grande líder trabalhava para os pobres.
                   Também lembram, com inteira razão, que a corrupção não é invenção das últimas décadas; que todos os governos da nação já a praticaram em níveis mais claros ou obscuros durante o correr da nossa história. Reconhece-se este fétido cheiro nas privatizações dos governos tucanos, no milagre da economia brasileira da ditadura militar, na crise que conduziu ao suicídio de Getúlio Vargas, nos governos do café com leite e, claro, também no vangloriado governo imperial dos Pedros.
                   Ninguém escapa a esta malsinada sanha, nem mesmo as autoridades responsáveis pela investigação, como se afere a propósito do temeroso acordo de delação dos empresários da JBS, que contou com a qualificada assessoria direta do braço direito do Procurador Geral da República e que revelou ao país um espúrio objetivo do parquet, condenar por condenar, buscar provas sem nenhuma responsabilidade ética ou mínimo respeito pela ordem constitucional. Como não existe o fiscal do fiscal, segue em suspenso a relevante dúvida a propósito da imparcialidade, seriedade e capacidade ética e moral dos ocupantes dos órgãos de investigação e julgamento das patologias corruptivas país afora. Afinal, agir em desrespeito às garantias constitucionais das liberdades individuais é prática tão nefasta e corruptora do estado democrático de direito quando a incontrolável fome por dinheiros públicos dos denunciados. Sempre será necessário lembrar, relembrar e tornar a dizer incansavelmente que é imperioso que existam limites ao poder do Estado de investigar e punir, porque o preço por este esquecimento será o arbítrio, o abuso e o desrespeito aos mais comezinhos direitos fundamentais, afirmados e garantidos por uma severa luta histórica, em parte positivada na declaração nacional de direitos fundamentais.
                   É em meio a esta desconcertante perplexidade que nos avizinhamos do ápice do processo eleitoral de 2018, que apontará quem será o próximo Presidente da República, Governadores dos Estados e membros do Congresso Nacional e Assembleias Legislativas. Enquanto o Congresso impõe à sociedade a humilhante obrigação de financiar a campanha de todos os candidatos, as pesquisas apontam como franco favorito o ex-Presidente Lula, o que na prática, nada esclarece sobre o denso nevoeiro que se abateu sobre a política nacional. A dúvida agora não é a respeito de sua valente liderança junto à opinião popular, capaz de sobreviver quase inabalável, mesmo ante a tão contundente acharque da mídia e do judiciário. A incerteza diz respeito a se, mesmo líder, estará ele nos palanques ou na prisão por ocasião da votação que ocorrerá daqui a um ano.
                   A verdade mesmo; a grande lição que deveríamos tirar, mas enquanto povo não nos apercebemos, é que não serão as eleições nem o pseudo heroísmo de certas autoridades que nos libertará do caos. É preciso muito mais que estas homéricas ações. Precisamos mesmo é nos aperfeiçoar moralmente como pessoas, daí enquanto povo, somente assim fazendo desta terrae brasilis uma verdadeira e poderosa nação do porvir. Será esta a grande utopia de (e por) um povo brasileiro.

Jorge Emicles

sábado, 10 de junho de 2017

A FESTA DA DEMOCRACIA


                   O assunto é inevitável. Talvez até mesmo os índios não contatados da densa floresta amazônica estejam comentando, entre uma pescaria e outra caçada, o incongruente e, dizem, histórico julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)  brasileiro, que fez de contas que não está provado, comprovado, sendo irrecusável o fato de que a campanha presidencial de 2014 foi fartamente financiada por dinheiro sujo, proveniente da corrupção e abastecido pelas maiores empresas do país. (A propósito, a questão vai bem além da corrupção na Petrobrás e no financiamento oriundo de meia dúzia de empresas delatoras. É generalizado pelo país inteiro). Esta evidência não atinge somente a campanha da chapa vencedora, mas a de praticamente todos os concorrentes. Ou pelo menos daqueles que em algum tempo tiveram chance real de vitória.
                   No mínimo, seria uma profunda hipocrisia presumir que a roubalheira tenha tido início na derradeira campanha, pois não é possível renunciar a evidente verdade de que assim sempre foi. Antes e depois do PT no poder. Antes e depois da ditadura militar. A julgar pelo resultado da decisão, contudo, parece que nossos juízes eleitorais não são tão amigos assim das verdades lógicas, científicas e cartesianas necessariamente sacadas do amplo conjunto probatório colhido no decorrer dos longos mais de dois anos que transcorreram entre o ajuizamento e o nefasto julgamento das ações eleitorais em questão.
                   Fez-se de contas que os fatos provados pelas novas provas não se referiam à denúncia inicial de dinheiro de corrupção financiando campanhas eleitorais, do uso da máquina pública em benefício de uns e prejuízo de outros candidatos, tudo ao sabor das amizades palacianas. Em uma palavra, os juízes continuam cegos, como historicamente sempre estiveram, aos flagrantes e diferentes abusos praticados em todas as campanhas eleitorais, seja nas pequenas, seja nas grandes cidades; seja nas eleições locais, regionais ou nacional. Não importa, a regra é a prática do abuso de poder político, econômico, de marketing, cultural e diversos outros. A prática é a omissão generalizada de todas as autoridades eleitorais, afinal os pecantes não são apenas os juízes eleitorais, é importante se dizer.
                   A experiência acumulada vida afora, fez com que não me arrepiasse diante do absurdo da lógica abraçada pelos juízes do TSE, afinal disparates muito piores já vi de outros juízes de todas as instâncias e tribunais. A prática do foro ensina que as contas que costumam ser rigorosamente fiscalizadas e impiedosamente reprovadas ante a mínima falha técnica são as dos pequenos candidatos. Em regra, dos que não se abastecem dos recursos da corrupção, ou pelo menos tem acesso a estes recursos em menor volume. Porém, a reprovação de suas contas nunca é porque receberam verbas de origem ilícita, mas em regra por questões técnicas absolutamente desimportantes diante dos incessantes abusos praticados em todas as campanhas eleitorais, diante dos quais a justiça eleitoral é seguidamente impotente ou cega.
                   O que de verdade existe nas campanhas é um hipócrita faz de conta. Os candidatos e partidos fingem que foram escolhidos em convenções democráticas, quando as instâncias partidárias são feudos dominados com mãos de ferro pelos caciques de plantão, controlando e tolhendo a possibilidade de escolhas livres e inovadoras. Em seguida os candidatos escolhidos em convenção fingem que se entregam a firmes campanhas pautadas por programas, projetos de governo e ideias diferentes, capazes de mudar completamente a realidade dos eleitores desassistidos, quando tudo não passa de um arquitetado e caro jogo de marketing. Não são ideias que se apresentam, mas produtos que se vendem ao tolo eleitor, refém de escolher, ao final, a embalagem que lhe pareceu mais bonita. Tudo isso, custeado por dinheiros ilícitos e em volume imensamente maiores que os declarados nas prestações de contas eleitorais. Aquela contabilidade pública apresentada mensalmente no site da justiça eleitoral, dando cabo de todos os recursos gastos campanha por campanha, candidato por candidato, são um ignóbil faz de conta, que não reflete nem de longe os verdadeiros gastos de uma campanha, nem as verdadeiras fontes dos recursos. Os romances de Garcia Marques certamente são mais realistas que as prestações de contas eleitorais. Afinal, haverá mesmo algum brasileiro que acredite que a campanha municipal de 2016 realmente não recebeu qualquer financiamento empresarial, conforme manda a lei? Ah, claro, sempre teremos juízes, promotores e técnicos eleitorais para acreditarem naquelas basbaquices!
                   E, ao termo de tudo, somos todos convidados alegremente pela propaganda da justiça eleitoral a tomar parte na festa da democracia. Afinal de contas, nos ensinam, a responsabilidade pela honestidade e competência dos nossos políticos é exclusivamente nossa, uma vez que são nossos honrados votos que os elevam aos mais altos cargos da república. Essa propaganda na verdade me põe a refletir que, ao cabo, haverá sim de existir maiores cegos que os juízes do TSE, que somos nós mesmos, eleitores, que periodicamente repetimos pelo ritual do sufrágio o processo de legitimação dos néscios no poder.
                   E vivas à democracia, porque ano que vem teremos tudo novamente!

Jorge Emicles

domingo, 4 de junho de 2017

A TORNEIRA DA CORRUPÇÃO


                   São recorrentes as manchetes denunciando seguidos escândalos de corrupção país afora, por meio dos quais se revela não somente a desfaçatez generalizada de nossos agentes públicos, como também a desmedida ganância e criatividade que possuem em surrupiar a velha viúva do cofre de ouro em que se tornou o erário, cujas riquezas são provenientes do duro trabalho dos brasileiros, arrancados através dos impostos desproporcionalmente cobrados de todos nós, em que, percentualmente, os pobres pagam mais que os ricos. Os casos são tantos, mas ao mesmo tempo tão parecidos na revelação da avareza e ganância de nossos homens públicos, que seria tedioso e inútil lista-los.
                   O que ainda está um tanto obscuro na consciência da opinião pública, que é pouco debatido pela imprensa e até mesmo olvidado em tantas vezes pela academia, é o estratagema recorrente que é utilizado pelos larápios para atingir seus sucessos. De maneira geral, podemos relacionar todos os esquemas de corrupção revelados nos últimos anos, mas também de tempos ainda mais remotos, a fraudes no processo de licitação. Eis uma chave que precisa ser concertada para prevenir ainda mais prejuízos futuros para a nação.
                   A falta de caráter e ausência de compromisso dos políticos com os interesses da coletividade são algo quase certo no universo do poder. Muitas vezes é necessário possuir tais características como condição à ascensão na hierarquia dos cargos públicos. Portanto, não é pela limpidez do caráter dos nossos administradores que vamos resolver o problema da grande sangria de recursos que ainda hoje escorrem dos cofres públicos. Somente renovando profundamente o processo de licitação é por onde talvez tenhamos algum êxito, uma vez que são os recursos provenientes dos milionários contratos administrativos que abastecem as incontáveis malas de dinheiro vivo que são despudoradamente distribuídas entre os políticos das mais variadas matizes, sempre em troca do compromisso de firmar ainda mais contratos administrativos, cada vez mais vantajosos.
                   É preciso denunciar que o caminho para esses contratos é a fraude nos processos de licitação!
                   Em geral, quando a imprensa denuncia algum novo escândalo envolvendo processos de licitação, em resposta, o congresso nacional edita novas leis tornando ainda mais rígido o processo, dando a falsa impressão com esta medida moralizar a questão. O problema é que é exatamente o inverso o que acontece: quanto mais rigoroso o processo de licitação; quando maiores forem as exigências impostas para a participação como seus concorrentes; quanto mais certidões negativas forem exigidas dos interessados, menor será o número de possíveis participante e maior a chance de acordos subterfúgios e ilegais tanto com os agentes públicos envolvidos, quanto dos licitantes entre si.
                   A realidade, é que importante número de licitações país afora são vencidas por empresas de gabinete, que não possuem empregados, estoques, capital social significativo e não vendem a ninguém mais que ao próprio poder público. Na prática, são atravessadores que compram das verdadeiras empresas existentes no mercado, para repassar por preços tantas vezes superfaturados os produtos dos quais não são verdadeiros fornecedores. Enquanto isso, o pequeno e médio empresário, que poderia ter preços bem mais competitivos (aquele mesmo, de quem o atravessador irá comprar o produto contratado) está sumariamente excluído de participar da competição porque lhe falta alguma tal certidão dentre o emaranhado de outras tantas impostas pela lei.
                   O combate à corrupção exige um imediato e rigoroso processo de desburocratização!

Jorge Emicles

segunda-feira, 22 de maio de 2017

A CEGUEIRA BRANCA
CONTO




                   Como filho de agricultor, foi no meio da miséria de parcos recursos que aprendi as maiores riquezas passíveis de apreensão por um ser de nossa espécie. Pelo vocabulário estreio de palavras, porém rico da mais profunda sabedoria de meu pai, aprendi as mais cândidas lições. A talvez primeira e de longe mais importante de todas elas foi a da honestidade. Quanto menos possuímos é quando mais precisamos aprender a repartir, pois foi exatamente assim que das quase nulas posses provenientes da agricultura, aferidas somente naqueles anos em que não éramos castigados pela ranhosa seca, que periodicamente assola as desterradas regiões da caatinga, que o velho Antônio Cádice criou sua vasta prole com bem poucas baixas em comparação a tantos vizinhos de infortúnio que conhecemos.
                   O velho sempre nos exigiu a verdade e não titubeava em punir um filho que houvesse pecado pela avareza de amigar-se do que não fosse correto, justo e proveitoso. E dali, daquele estilo rude de criação, com sovas pelos desacertos, companheirismo nas necessidades e inabalável fé nos momentos de infortúnio, vingaram treze rebentos, dos quais todos saíram-se homens e mulheres de bem, de ocupação lícita, de honor à palavra e reta prática de vida. Conseguiram, sem exceção, ser pais e mães até melhores que seus genitores. E convenha-se, pela firmeza e retidão do caráter daquele velho agricultor analfabeto, não havia mesmo como sair um filho que não espelhasse essas mesmas qualidades.
                   A mim coube a alegria de ser o único formado daquela casa, que após a graduação seguiu nos estudos até encontrar destacada posição na cátedra. Aprendi muitas coisas com os livros, porém nada tão valioso, puro e sábio quanto as lições deixadas pelo meu pai. Na sociologia aprendi as amarras invisíveis que põem os pobres a serviço do interesse dos ricos; na história compreendi a que ponto a sordidez humana é capaz de alcançar na busca ou manutenção do poder; na antropologia percebi o quanto de velho e repetitivo há nas novas práticas e valores do mundo contemporâneo. Me sinto capaz de discursar em uma aula por horas, talvez. Sempre galgado em argumentos das mais abalizadas autoridades em diversos campos do conhecimento. Porém, nada disso chega perto, sequer, da simplória e profunda sabedoria do velho Antônio Cádice, aquele pobre agricultor de parcas palavras, mas de infinito exemplo.
                   Rememorando os idos da infância e dos primeiros anos de juventude, quando ainda habitava em sua casa, e sorvia naturalmente sua positiva influência, quase ingenuamente achando que o mundo todo era honesto, firme e coerente como na casa de meu pai, agora, na lonjura dos anos que já se foram, deduzo que o velho sabia exatamente as mesmas verdades que demorei anos de leitura e sacrifício para compreender. Ele sabia que o pequeno agricultor era em vida e em morte explorado pelo governo e pelo patrão, mas também compreendia que a resistência da força somente aprofunda mais ainda o massacre dos maiores sobre os menores. É uma lei da natureza, replicada e explicada pela história nos quase infinitos massacres que os homens já se impuseram uns aos outros. Mesmo quando aparentemente o povo vence, acaba se descobrindo massa de manobra utilizada para que novos poderosos apropriem-se do poder. Muito menos o sufrágio é caminho libertador, pois a liberdade de escolha é meramente aparente, afinal o sistema é de tal ordem que só os que abusam do poder conseguem a vitória eleitoral. Ele compreendia exatamente o que Foucault pretendeu explicar ao libelar que a política é a mesma guerra de sempre, apenas travada por outros mecanismos, muito embora nunca tenha sequer imaginado que em algum momento tenha existido um francês com esse nome.
                   Sempre, de tudo e por tudo, o que vemos é a mesma casta de poderosos articulando manobras e discursos para justificarem e manterem seu poder. No máximo, em ciclos periódicos, acontece a alternância de uma casta por outra, mas que sempre mantém o inevitável sistema de dominação e massacre da maioria por uma pequena minoria. Diria meu pai, parafraseando Giuseppe di Lampedusa, (um escritor italiano de quem certamente jamais ouvira falar) que às vezes é preciso mudar tudo, para não mudar nada.
                   Ah, o velho Antônio Cádice infelizmente já não se encontra mais entre os vivos, e talvez de onde esteja não se interesse muito sobre as atualidades brasileiras. Mas, conhecendo a natureza de seu espírito sagaz me ponho a imaginar o que diria aquele sábio desconhecedor das letras a respeito de tudo isso que se passa nestas terras tupiniquins. Pelos anos em que convivemos me arvoro ao direito de deduzir suas impressões...
                   Talvez, penso, dissesse que estamos todos nós da sociedade brasileira, padecendo de alguma cegueira branca, que não permite enxergar a verdade mais crua e óbvia, mal que nos povoa a todos de já muitas décadas. Assim já era na colônia e no império, mas também em toda a vida da república. Assim foi em todas as ditaduras, na de Getúlio ou dos militares. Mas também assim persistiu sendo no regime democrático, mesmo sob a batuta da constituição cidadão. Que povo é este, diria irritadiço o velho Antônio Cádice, que permite aos endinheirados empresários financiar milionárias campanhas; marqueteiros transformarem políticos em mercadorias, vendendo imagens notoriamente inverídicas; e elegendo sistematicamente pelo critério da melhor maquiagem, do discurso mais produzido, da mentira melhor contada? Que povo é esse, que faz de execráveis oportunistas seus heróis? Só mesmo uma cegueira branca, como a que infectou em surto incontrolável toda a nação brasileira, talvez desde sempre, poderia explicar a incapacidade de ver a cândida verdade de que empresário que doa milhões, quer lucrar infinitas vezes mais; que político que se transforma em produto não tem firmeza de ideais nem pureza de propósitos; e que em um universo que somente valoriza a beleza da imagem, a candência dos discursos e a aparência das intenções não há lugar para as pessoas honestas, amigas dos valores da retidão e da coerência. Onde só a aparência reina, a verdade se esconde e cala, aguardando ambiente mais propício para se revelar.
                   O meu pai era analfabeto, já dissemos, mas mesmo sem a compreensão das chaves do desvelamento da leitura, ele era capaz de enxergar muito além de seu tempo, muito mais distante que um tanto de letrados. Mesmo sem ter tido ciência da existência de Saramago, consagrado autor português, ele também intuiu que haveria de existir essa tal cegueira branca, que muito antes de tapar as retinas, obstrui a consciência dos cidadãos, deturpando seus valores, corrompendo seu senso de coletividade e destruindo os laços que une a todos da humanidade, fazendo cada qual pensar somente em seu próprio bem-estar. Opostamente diferente do que ensinou Antônio Cádice a seus filhos nos momentos em que a fome visitou nosso lar, onde a lição era dividir sempre e igualitariamente o pouco que tínhamos, no Brasil da corrupção impera a ideia de divisão, de partidarização e fragmentação cada vez maior de toda a sociedade, fazendo-nos perquirir até que ponto pessoas tão desconectadas em valores e cultura poderiam de fato formatar um povo.
                   E, de novo, estamos a articular os preparativos para uma nova empreitada cívica, por intermédio da qual nos prometerão redenção de todos os males através da escolha de um novo líder que varrerá toda a sujeira de todos os desmandos do passado, abrindo o portal para a próxima era da dignidade e da efetivação dos direitos. Mas será mesmo que esta cegueira não nos abandonará e ainda agora, mesmo depois de termos suportado todos os sofrimentos que já se abateram pesadamente sobre nós, ainda assim não percebemos que nada de fato mudou? Ainda sobrevivem os mesmos empresários, com os mesmos interesses espúrios de sempre? Ainda existem os mesmos políticos sem ideais ou caráter, maquiados pelos mesmos propagandistas do passado? Será mesmo que esta perigosa moléstia coletiva não oportunizará antever que os nomes até podem ser outros, mas os valores ao derredor de todo o sistema de poder reproduzem exatamente a mesma coisa que produziu desde sempre?
                   Diante de realidade tão crua, mas ao mesmo tempo tão inevitável, diria por fim Antônio Cádice, que é absolutamente previsível o resultado a que chegaremos: o de mais sofrimento e desilusão, como sempre foi.


Jorge Emicles

sexta-feira, 31 de março de 2017

ENFADO


                   Vendo tantos crimes sendo revelados em cadeia nacional, noticiados escandalosamente no noticiário de maior audiência da mídia nacional; naquele mesmo que todos acusam de parcial e comprometido, mas que impreterivelmente na hora do costume aos mesmos críticos faz sentar nas confortáveis poltronas de suas casas para a visualização diária, fazendo até parecer se tratar de algum moderno medicamento de horário controlado; mais que isso, observando que os crimes são capitaneados pelos chefes da nação, por aqueles legitimamente eleitos para ocupar os cargos mais pomposos e melindrosos de toda a república; pior ainda, compreendendo que o que se traz à luz é na verdade a pálida sombra do que de fato se faz e sempre se fez em todos os momentos da história nacional, desde o aportamento das caravelas do descobrimento até as intrigas palacianas da contemporaneidade, com seus conchavos de derrubada e ascensão de governos, com suas maquinações de interesses para garantir a mais ampla, geral e irrestrita maioria no Congresso Nacional, e com seus preocupantes métodos de financiamento de campanhas eleitorais; vendo tudo isso, nem mesmo chego a perguntar que fim terá toda essa questão, se ao cabo serão todas as denúncias e prisões anuladas por algum preciosismo técnico tão caro aos juristas ou se de fato pagarão os culpados as penas impostas; o que preocupa de verdade é o incongruente sentimento de inutilidade a que toda essa questão remete.
                   Será que há alguma espécie nova de melancolia, capaz de corromper a certeza do novo, a convicção de que ele sempre vem; será que essa tal neófita moléstia seria capaz de destruir a esperança de que as melhores alterações poderão vir somente a partir das crises; posto que somente elas permitem o profundo rompimento com a essência do modelo destruído? Será que não é suficiente óbvio que a alva limpeza imposta aos costumes da política fará nascer uma outra geração, composta por seres límpidos, éticos e transparentes em suas ideias e ações? Será que a certeza científica e racional do iluminismo de que o método e a lógica são o inexorável caminho para a cientificação de tudo, poderá por um ser em dúvida de suas absolutas e irrefutáveis verdades, mesmo no raiar do século vinte e um?
                   Que verme é esse, tão desengonçado, sorrateiro e venenoso que traz a inconsistente intuição que de nada valerá a limpeza das nossas instituições, se ao mesmo tempo não alvejarmos a consciência e as práticas da nossa sociedade; que o combate a ser travado verdadeiramente não é somente contra as podres almas corrompidas, mas contra o próprio sistema que corrompe os espíritos fracos e bons? Que imbecilidade crônica será essa, a que faz perceber que as maiores verdades da existência não cabem na arrogante racionalidade de nossas academias e que são avessas por sua própria natureza aos excessivos tomos dos tratados de razões, números e discursos? Que sórdida consciência é a de quem quer crer (com a mesma convicção inarredável dos que sejam senhores da verdade absoluta, aquela mesma verdade combatida e negada com ainda mais veemência) que não precisamos de presídios, mas de escolas; de que não carecemos de juízes, mas de professores?
                   Quanto mais conscientes somos das coisas, mais enfadonhas elas ficam...


Jorge Emicles

terça-feira, 21 de março de 2017

MARRANO - CONTO



                   A maior parte do conteúdo deste relato aprendi através da descendência do coronel Leandro Bizerra Monteiro. Segundo ouvi desde menino descalço, apreciador atento que fui das histórias contadas ao redor das fogueiras, acesas até altas madrugadas nos terreiros das casas grande, se conta que em tempos de memória quase esquecida por aqui habitavam valentes índios, batizados pelos brancos de Cariris, em razão da triste e séria expressão facial que possuíam. A extensão de seus domínios era marcantemente grande, chegando até as proximidades do rio São Francisco, já nos confins da distante Bahia.
                   Em algum tempo, cuja data precisa não me chega à memória, os Cariris aprisionaram um escravo negro, propriedade de algum senhor de terras das margens do já então velho Chico. O negrinho adaptou-se com bastante facilidade ao modo de vida dos selvagens, passando a ser reconhecido como um dos seus. Viveu em paz e harmonia com seu novo povo, até que os Cariris tiveram que enfrentar séria guerra com a tribo Cariú, chegando a posição de franca desvantagem, a ponto de amargar iminente derrota.
                   A fim de salvar seu povo, o negro retornou às suas origens em Juazeiro, Bahia, indo ter com os chefes da já famosa Casa da Torre, integrada pela descendência do lendário Diogo Alves Correa, o Caramuru, com o intento de guia-los em entrada até as desconhecidas terras de dentro dos Cariri, em risco de serem perdidas para a tribo inimiga, prometida aos exploradores como um oásis fértil e úmido a guarnecer toda a sequidão do restante do sertão ao derredor. E, de fato, não exagerou na pujante beleza e riqueza do lugar. Foram estes pioneiros os primeiros habitantes brancos da região e guardam até o presente o sangue de Caramuru na linhagem das famílias mais antigas que a habitam.
                   Os exploradores chegaram ainda a tempo de salvar os Cariris. Violentamente reprimiram e massacraram os seus inimigos, invadindo impiedosamente seus povoados e matando sem qualquer piedade todos os aborígenes que ali encontraram. Aos Cariri foram doadas terras onde estabeleceram a Missão do Miranda, tendo sido obrigados a receber os signos cristãos através da firme direção de Frei Carlos Maria de Ferrara, frade capuchino. É deste povoado que mais adiante surgiria a Vila Real do Crato.
                   Antes desse episódio, lá pelo ano da graça de 1646, atendendo a reclamações do governador da Bahia, Antonio Teles da Silva, familiar do Santo Ofício, como eram conhecidos os leigos integrantes da inquisição portuguesa, que por força desta e de outras reclamações recebidas enviou ordem ao bispo da Bahia D. Pedro da Silva convocando toda a população de Salvador a dar conta da atuação dos cristãos novos da província. Já tive a curiosidade de pesquisar em dezenas de livros de história, de épocas, autores e escolas bem distintas. Todos, contudo, negam a veracidade da história que estou a narrar, pois ensinam simplesmente que no Brasil colonial nunca houve inquisição, nem nunca houveram judeus. Não é esta, contudo, a versão que aprendi da descendência do coronel Leandro Bizerra, que vem a ser a mesma do próprio Caramuru.
                   A história que sei é a de que, na península Ibérica, após a consolidação do domínio dos reis cristãos e expulsão dos árabes daquela região, passou a ser cada vez maior a resistência à figura dos judeus, a ponto de serem expulsos de Portugal por ordem do rei D. Manuel I, no ano de 1496, da mesma forma que já haviam sido expulsos antes do reino de Castela. Com as novas navegações às recém descobertas terras da américa, a ida para o novo continente foi o caminho seguro preferido por muitos dos refugiados. Assim, desde os primeiros aportamentos nas terras brasileiras já haviam judeus embarcados nas naus portuguesas. O que não eram era confessos seguidores de Moisés, pois haviam sido obrigados à conversão forçada nas terras da Europa, como condição para não serem queimados nas fogueiras dos autos de fé da inquisição. Eram os cristãos novos, escrachados pela população simplesmente como marranos, que é uma expressão perniciosa para designar os porcos.
                   Os motivos à perseguição aos judeus, a inquisição atribuía aos pecados supostamente por eles cometidos contra Cristo em sua crucificação, pois teriam sido os judeus, segundo a tradição católica, os responsáveis pela prisão e crucificação do Ungido. Como se o próprio Jesus não houvesse professado a fé na Torá, sido circuncisado e frequentado o templo de Salomão. A verdade, contudo, é que foi o destaque social e as riquezas acumuladas pelo povo escolhido que despertou a ganância dos cristãos velhos. A inquisição foi simplesmente o pretexto para tomar-lhes todo o patrimônio acumulado com justiça e trabalho. A cultura judaica sempre incentivou as famílias a investirem na educação de seus filhos. Não por vaidade, mas por ser o conhecimento o único patrimônio que não poderia ser tomado pelos governantes, sem embargo das notórias facilidades e posições que a erudição sempre propiciaria alcançar. Os judeus, apesar de toda a perseguição e preconceito, sempre foram destacados na administração pública da península Ibérica e no desenvolvimento das grandes navegações, sem dizer de outros importantes feitos para a ciência e a política.
                   Não é a ocasião de inventariar a vasta contribuição do judaísmo à ciência, mas não seria correto se não esclarecesse, por exemplo, que enquanto os cristãos relutavam em aceitar a forma ovalada da terra, o Zhoar Hebreu já afirmava que a terra girava sobre seu eixo, como uma bola, e enquanto na metade do globo era dia, na outra havia escuridão. Foram os judeus que criaram ou aperfeiçoaram os mais importantes instrumentos de navegação, como as cartas marítimas, o astrolábio e outros mais. São conhecidas, mesmo que com reservas, as ligações estreitas de Colombo e os judeus. Mas não é disso que deve tratar o presente relato. A história que quero contar é a da perseguição aos judeus já em terras brasileiras, iniciada em Salvador, mediante ordem da inquisição portuguesa do ano de 1646.
                   O método da investigação era o mais sórdido e simples possível. Bastava alguma delação, sem qualquer fundamento ou minimamente que fosse robustecida pela convicção mais elementar, para que um cidadão de bem fosse denunciado por crime de judaísmo. Eram simples boatos, tantas vezes mal disfarçados de vindicta ou inveja, suficientes, contudo, a levar à prisão e ao desterro famílias inteiras. Principalmente as de maior sucesso financeiro.
                   Uma vez preso pela representação da santa inquisição, a única escapatória possível era a confissão da prática secreta dos costumes e tradições judaicas. Os que assim procediam, mesmo não o tendo feito jamais, poderiam retomar à vida comunitária, muito embora quase sempre despojados de suas propriedades e obrigados a utilizar o famigerado sambenito, hábito penitencial que acusava publicamente a condição de penitenciado em auto de fé. Aos que não confessassem, caberia a infâmia da dorida morte na fogueira. Em muitas ocasiões, o crime consistia simplesmente em ter tido um ancestral judeu ou mesmo não ser capaz de provar de forma robusta não possuir tal ascendência. Mesmo entre os convertidos, eram bem poucos os que de verdade praticavam as regras em segredo. Pior que isso, eram seres céticos, que não acreditavam na fé católica; que iam às missas para dar a necessária satisfação social, simplesmente, mas que ao mesmo tempo haviam se perdido das festas e tradições judaicas. Estavam no mundo sem de fato habitá-lo.
                   Só que não importava de verdade se eram judaizantes ou não. O que valia era o seu prestígio e patrimônio que seriam sumariamente usurpados, juntamente com sua dignidade. Neste período foram vários os senhores de engenho e comerciantes notáveis, de bom trânsito na sociedade local, que de tudo foram despojados por conta da terrível denúncia de marranismo. Mesmo os que sobreviveram, nunca mais foram felizes e jamais recuperaram quaisquer de suas muitas perdas. Quase sempre, morreram na indigência e no esquecimento.
                   A única solução a este estado de coisas era a urgente fuga. Outra vez, buscar lugares esquecidos da civilização onde, de alguma maneira, fosse possível recomeçar a vida novamente. As famílias ameaçadas foram para diferentes localidades. Buscando na genealogia de vários lugares distintos, encontrei descendência dos marranos em Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e até em Pernambuco, estes últimos de linhagem distinta de outros judeus que chegaram juntamente com o conde Maurício de Nassau e mais adiante foram os pioneiros de Nova York.
                   Uma linhagem especial veio ter em Juazeiro, às margens do Rio São Francisco. Mais tarde integrou-se ao clã da Casa da Torre e vários deles acompanharam a entrada, guiados pelo negro índio Cariri, que veio dar na Missão do Miranda de que já falei. Minha ascendência é dessa linhagem, o que não sei bem se faz de mim um judeu, um marrano, um cristão novo ou um cético simplesmente.
                   Pelos meus ancestrais, de alguma maneira cheguei nas terras conhecidas como o Cariri com seus primeiros descobridores. Por isso, estou ligado às suas raízes mais remotas. Há outras famílias marranas que também vieram pela mesma época. Quase nenhuma praticava de fato o judaísmo, mas ainda assim estavam marcadas pela pecha de ser seguidor do mestre Moisés. Como se fosse pecado aceitar e cumprir os dez mandamentos da lei de Deus. Era preciso esquecer e ao mesmo tempo preservar a história da nossa e das outras famílias que fundaram o Cariri. Já naquele tempo não possuíamos mais a cultura judaica, não sabíamos exatamente a época e o significado das festas; já não repetíamos as antigas orações hebraicas. Apenas guardávamos reminiscências de uma cultura esquecida. Gostávamos de descansar aos sábados, varríamos as casas de dentro para fora e ao mesmo tempo em que exibíamos as estátuas católicas, guardávamos discretamente o símbolo de Salomão em lugares secretos de nossas casas.
                   Íamos às festas de Nossa Senhora da Penha, participávamos das quermesses, mas não éramos capazes de contar nossos verdadeiros segredos aos padres, antes das confissões obrigatórias que precediam as novenas dos santos. Nem éramos mais judeus, nem fomos capazes de nos tornar verdadeiros cristãos. Éramos um povo sem identidade quase nenhuma. Sobreviventes da ignomínia humana, simplesmente.
                   Como a origem dessas famílias não poderiam ser registradas, sob pena de atrair o indesejável olhar da inquisição, aos poucos nossas raízes foram sendo perdidas. Nas primeiras gerações, muito preservou-se na oralidade, mas na medida em que elas se renovaram, as histórias começaram a ser esquecidas. As coisas que ouvia nas fogueiras da casa do coronel Leandro Bizerra Monteiro eram entendidas pela mocidade que as escutava atentamente mais como lendas que como acontecimentos verdadeiros. Principalmente porque nunca foram corroboradas pelos livros de história. A única memória que ainda hoje remanesce a respeito dos antigos marranos que povoaram o Cariri é que, para marcarem por definitivo sua origem, passaram a usar nomes de família associados a árvores. E é assim a única forma de sabermos quem foram estes desconhecidos personagens que habitaram as terras dos Cariri, sucedendo aos índios, cuja história é tão triste quanto a deles próprios.


Jorge Emicles