A
CEGUEIRA BRANCA
CONTO
Como
filho de agricultor, foi no meio da miséria de parcos recursos que aprendi as
maiores riquezas passíveis de apreensão por um ser de nossa espécie. Pelo
vocabulário estreio de palavras, porém rico da mais profunda sabedoria de meu
pai, aprendi as mais cândidas lições. A talvez primeira e de longe mais
importante de todas elas foi a da honestidade. Quanto menos possuímos é quando
mais precisamos aprender a repartir, pois foi exatamente assim que das quase
nulas posses provenientes da agricultura, aferidas somente naqueles anos em que
não éramos castigados pela ranhosa seca, que periodicamente assola as
desterradas regiões da caatinga, que o velho Antônio Cádice criou sua vasta
prole com bem poucas baixas em comparação a tantos vizinhos de infortúnio que conhecemos.
O velho sempre nos exigiu a verdade e não
titubeava em punir um filho que houvesse pecado pela avareza de amigar-se do
que não fosse correto, justo e proveitoso. E dali, daquele estilo rude de
criação, com sovas pelos desacertos, companheirismo nas necessidades e
inabalável fé nos momentos de infortúnio, vingaram treze rebentos, dos quais
todos saíram-se homens e mulheres de bem, de ocupação lícita, de honor à
palavra e reta prática de vida. Conseguiram, sem exceção, ser pais e mães até
melhores que seus genitores. E convenha-se, pela firmeza e retidão do caráter
daquele velho agricultor analfabeto, não havia mesmo como sair um filho que não
espelhasse essas mesmas qualidades.
A mim coube a alegria de ser o único formado
daquela casa, que após a graduação seguiu nos estudos até encontrar destacada
posição na cátedra. Aprendi muitas coisas com os livros, porém nada tão
valioso, puro e sábio quanto as lições deixadas pelo meu pai. Na sociologia
aprendi as amarras invisíveis que põem os pobres a serviço do interesse dos
ricos; na história compreendi a que ponto a sordidez humana é capaz de alcançar
na busca ou manutenção do poder; na antropologia percebi o quanto de velho e
repetitivo há nas novas práticas e valores do mundo contemporâneo. Me sinto
capaz de discursar em uma aula por horas, talvez. Sempre galgado em argumentos
das mais abalizadas autoridades em diversos campos do conhecimento. Porém, nada
disso chega perto, sequer, da simplória e profunda sabedoria do velho Antônio
Cádice, aquele pobre agricultor de parcas palavras, mas de infinito exemplo.
Rememorando os idos da infância e dos primeiros
anos de juventude, quando ainda habitava em sua casa, e sorvia naturalmente sua
positiva influência, quase ingenuamente achando que o mundo todo era honesto,
firme e coerente como na casa de meu pai, agora, na lonjura dos anos que já se
foram, deduzo que o velho sabia exatamente as mesmas verdades que demorei anos
de leitura e sacrifício para compreender. Ele sabia que o pequeno agricultor
era em vida e em morte explorado pelo governo e pelo patrão, mas também
compreendia que a resistência da força somente aprofunda mais ainda o massacre
dos maiores sobre os menores. É uma lei da natureza, replicada e explicada pela
história nos quase infinitos massacres que os homens já se impuseram uns aos
outros. Mesmo quando aparentemente o povo vence, acaba se descobrindo massa de
manobra utilizada para que novos poderosos apropriem-se do poder. Muito menos o
sufrágio é caminho libertador, pois a liberdade de escolha é meramente
aparente, afinal o sistema é de tal ordem que só os que abusam do poder
conseguem a vitória eleitoral. Ele compreendia exatamente o que Foucault
pretendeu explicar ao libelar que a política é a mesma guerra de sempre, apenas
travada por outros mecanismos, muito embora nunca tenha sequer imaginado que em
algum momento tenha existido um francês com esse nome.
Sempre, de tudo e por tudo, o que vemos é a mesma
casta de poderosos articulando manobras e discursos para justificarem e
manterem seu poder. No máximo, em ciclos periódicos, acontece a alternância de
uma casta por outra, mas que sempre mantém o inevitável sistema de dominação e
massacre da maioria por uma pequena minoria. Diria meu pai, parafraseando Giuseppe di
Lampedusa, (um escritor italiano de quem certamente jamais ouvira falar)
que às vezes é preciso mudar tudo, para não mudar nada.
Ah, o velho Antônio Cádice infelizmente já não se
encontra mais entre os vivos, e talvez de onde esteja não se interesse muito
sobre as atualidades brasileiras. Mas, conhecendo a natureza de seu espírito
sagaz me ponho a imaginar o que diria aquele sábio desconhecedor das letras a
respeito de tudo isso que se passa nestas terras tupiniquins. Pelos anos em que
convivemos me arvoro ao direito de deduzir suas impressões...
Talvez, penso, dissesse que estamos todos nós da
sociedade brasileira, padecendo de alguma cegueira branca, que não permite
enxergar a verdade mais crua e óbvia, mal que nos povoa a todos de já muitas
décadas. Assim já era na colônia e no império, mas também em toda a vida da
república. Assim foi em todas as ditaduras, na de Getúlio ou dos militares. Mas
também assim persistiu sendo no regime democrático, mesmo sob a batuta da
constituição cidadão. Que povo é este, diria irritadiço o velho Antônio Cádice,
que permite aos endinheirados empresários financiar milionárias campanhas;
marqueteiros transformarem políticos em mercadorias, vendendo imagens
notoriamente inverídicas; e elegendo sistematicamente pelo critério da melhor
maquiagem, do discurso mais produzido, da mentira melhor contada? Que povo é
esse, que faz de execráveis oportunistas seus heróis? Só mesmo uma cegueira
branca, como a que infectou em surto incontrolável toda a nação brasileira,
talvez desde sempre, poderia explicar a incapacidade de ver a cândida verdade
de que empresário que doa milhões, quer lucrar infinitas vezes mais; que
político que se transforma em produto não tem firmeza de ideais nem pureza de
propósitos; e que em um universo que somente valoriza a beleza da imagem, a
candência dos discursos e a aparência das intenções não há lugar para as
pessoas honestas, amigas dos valores da retidão e da coerência. Onde só a
aparência reina, a verdade se esconde e cala, aguardando ambiente mais propício
para se revelar.
O meu pai era analfabeto, já dissemos, mas mesmo
sem a compreensão das chaves do desvelamento da leitura, ele era capaz de
enxergar muito além de seu tempo, muito mais distante que um tanto de letrados.
Mesmo sem ter tido ciência da existência de Saramago, consagrado autor
português, ele também intuiu que haveria de existir essa tal cegueira branca, que
muito antes de tapar as retinas, obstrui a consciência dos cidadãos, deturpando
seus valores, corrompendo seu senso de coletividade e destruindo os laços que
une a todos da humanidade, fazendo cada qual pensar somente em seu próprio bem-estar.
Opostamente diferente do que ensinou Antônio Cádice a seus filhos nos momentos em
que a fome visitou nosso lar, onde a lição era dividir sempre e
igualitariamente o pouco que tínhamos, no Brasil da corrupção impera a ideia de
divisão, de partidarização e fragmentação cada vez maior de toda a sociedade,
fazendo-nos perquirir até que ponto pessoas tão desconectadas em valores e
cultura poderiam de fato formatar um povo.
E, de novo, estamos a articular os preparativos
para uma nova empreitada cívica, por intermédio da qual nos prometerão redenção
de todos os males através da escolha de um novo líder que varrerá toda a
sujeira de todos os desmandos do passado, abrindo o portal para a próxima era
da dignidade e da efetivação dos direitos. Mas será mesmo que esta cegueira não
nos abandonará e ainda agora, mesmo depois de termos suportado todos os sofrimentos
que já se abateram pesadamente sobre nós, ainda assim não percebemos que nada
de fato mudou? Ainda sobrevivem os mesmos empresários, com os mesmos interesses
espúrios de sempre? Ainda existem os mesmos políticos sem ideais ou caráter,
maquiados pelos mesmos propagandistas do passado? Será mesmo que esta perigosa
moléstia coletiva não oportunizará antever que os nomes até podem ser outros,
mas os valores ao derredor de todo o sistema de poder reproduzem exatamente a
mesma coisa que produziu desde sempre?
Diante de realidade tão crua, mas ao mesmo tempo
tão inevitável, diria por fim Antônio Cádice, que é absolutamente previsível o
resultado a que chegaremos: o de mais sofrimento e desilusão, como sempre foi.
Jorge Emicles
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