MOVIMENTO
PELA REFUNDAÇÃO DO CRATO
Era uma sexta feira, vinte e três de janeiro de
1914. Reunidos em frente à casa do patriarca de Juazeiro toda uma tropa de
romeiros estava pronta para a mais ousada de todas as investidas que tiveram
vez na revolução daquele ano que culminaria com a deposição do Presidente do
Estado do Ceará, o Coronel Franco Rabelo. Naquela ocasião, jagunços
transmudados em beatos, armas depostas e face de êxtase aguardavam as sacras
palavras do velho padrinho Cícero.
Por sua vez o sacerdote ao tempo em que dava a ordem para a invasão da vizinha
cidade de Crato, pontificava:
O Crato é minha
terra, meu torrão natal. Só permito um combate como esse para tanger de lá os
meus inimigos, de uma vez por todas. Eles querem cortar minha cabeça, acabar
com os romeiros e destruir o Juazeiro, esta terra santa de Nossa Senhora das
Dores. Vão. Não
bebam cachaça, para não fazerem besteira. Não atirem à toa, pois todos sabem
que não dispomos de muita munição. Chegando na entrada da rua do Crato, não
queiram penetrar logo na cidade, demorem um pouco, dando tempo para as famílias
se retirarem. Deixem fugir também os soldados que não quiserem guerrear. Não
persigam, de maneira nenhuma, os fugitivos. Deixem livres os caminhos do
seminário e da casa de caridade. Não importunem quem quiser se refugiar lá
dentro. Respeitem a casa do vigário Quintino e qualquer pessoa que vá se
esconder nela. Não destruam as residências e muito menos matem pessoas que não
estejam em combate.
Partida a tropa para o cumprimento da missão,
quedou-se o velho sacerdote trancafiado em seu quarto, em desassossego,
empunhando um crucifixo em direção a sua terra natal, traçando com ele largos gestos, como se desenhasse várias cruzes no ar.
Segundo o relato de um cratense, o médico Irineu Pinheiro, o Crato possuía
superioridade em armas e homens. Mesmo assim, graças à coragem destemida dos
romeiros, mas, sobretudo à covardia incompetente dos governistas, os mais
fracos venceram. É o mesmo Irineu Pinheiro que atesta, sobre as forças defensivas
de Crato, que
pode dizer-se
sem risco de erro que da falta absoluta de capacidade de direção da gente do
governo resultou a queda fácil do Crato, principal centro de resistência
governista no sul do Estado. Poderia defende-lo vantajosamente a guarnição da
cidade e se, por ventura, fosse excepcionalmente vigorosa a pressão dos
atacantes, inda assim, seria eficientíssimo o auxílio de Barbalha, onde se
achavam centenas de homens da polícia.
Por
isso, continua o culto cratense, vencera
a tenacidade, a coragem dos romeiros que, com escassos tiros em suas
cartucheiras, obrigados, portanto, a poupá-los não desanimaram e fizeram recuar
e correr diante de si o inimigo bem municiado, abrigado em sacos de algodão, ou
protegido pelos muros das casas.
Antropologicamente, pode-se dizer que é desta
invasão, hoje centenária, que nasce o rancor que as elites cratenses ainda hoje
alimentam contra a metropolitana Juazeiro do Norte. Mas historicamente, resta
fincada a data da extinção do Crato, seja como cidade, como centro de cultura
ou polo de comércio. Portanto, comemoramos modernamente os cem anos da extinção
do Crato, que na última centúria permaneceu viva somente no soberbo orgulho e
na míope visão de sua incompetente elite. Eis as razões remotas da decadência e
irrecorrível declínio da ciosa terra de Bárbara de Alencar. Eis a razão porque
a memória viva das datas histórias desta terra, Huberto Cabral, não bradou aos
quatro cantos a histórica data do centenário da queda do Crato.
De lá para cá, o Crato assiste enciumado o
engrandecimento de Juazeiro do Norte, ao mesmo tempo em que lamenta os
investimentos e as instituições que paulatinamente vem perdendo, mas também os
muitos que deixou de ganhar. Os escândalos que povoam modernamente a vida do
Legislativo e Executivo local, são meros reflexos deste já longo movimento
histórico, que apenas culminam a marca da insensatez e incompetência de nossas
elites. É a ela, a inglória, arrogante e medíocre elite cratense, a quem se
deve o malogro histórico desta terra. E deste malogro, não há mais saída, pois
o bonde da história já passou, deixando para trás, choramingando pelo desprezo,
todo um povo, que em certo e remoto dia, já foi a capital da cultura e do
folclore, centro de conhecimento e relevante polo de comércio do nordeste
brasileiro. Agora é vergonhoso foco de denúncias de corrupção e desmandos da
coisa pública.
A única solução possível para esta malsinada terra
é a sua refundação. Esqueçamos o brado de José Martiniano, que primeiro
proclamou a república, pois junto com aquele grito, pusemos no poder local o
egocentrismo do bacamarte e a mesquinhez do pensamento politiqueiro mais
energúmeno, o mesmo que ainda hoje povoa as rodas palacianas. Deixemos de lado
o título de capital da cultura, pois ele nada mais é senão o símbolo de que já há
cem anos, toda esta terra encontra-se paralisada no tempo, renunciando ao
desenvolvimento sustentável e a uma economia saldável. Abandonemos o inútil
culto aos gloriosos nomes da nossa elite, pois são eles, exatamente eles, os
grandes responsáveis pela nossa derrocada. As ilustres famílias desta terra são
na verdade seus mais terríveis algozes, os culpados históricos pela nossa opróbia
queda.
Comecemos do nada, da estaca zero. Cultivemos os
valores da ética, da honestidade e da verdade, ao invés da mesquinhez,
arrogância, prepotência e covardia que preenchem vergonhosamente as páginas dos
últimos cem anos de história do Crato. Refundemos esta cidade, pois esta é a
única esperança de transmudar o caos do presente em esperança e prosperidade,
abandonando de vez a vergonhosa história que nos precede!
Jorge Emicles Pinheiro
Paes Barreto