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sábado, 27 de dezembro de 2014


ADEUS, PAI!
                   Aquela, sem dúvidas, foi a viagem mais adiada; a menos pretendida. Em uma palavra, o mais medonho de todos os traslados. A verdade dos fatos se tornava cada vez mais indeclinável, mesmo assim o quanto pude adiei aquele derradeiro encontro. Nós bem que não precisávamos dele! Para que a despedida final; o que poderia nos legar momento tão contumaz, quase sem sentido na nossa existência. O que vale é o que foi, o que se fez, aquilo que se desejou e cumpriu. Não vale a inércia da morte e a saudade do que não foi dito nem feito, por mais que tenha sido desejado.
                   Foi assim, nessa fuga do inevitável que recebi a triste notícia de tua partida. Serena, rodeada dos maiores amores, dos que souberam como ninguém honrar a tua vida e eternizarão a tua memória. Que partida feliz, cheia de graça e plena de esperança! Ao final, desmentiste a lenda de que é sempre triste, feia e ignóbil a morte. A tua não merecia ser e definitivamente não foi assim. Partiste em paz e em paz deixaste os teus. Não há de ter partida mais reconfortante que esta, a tua. Prova do grande merecimento que construíste em vida.
                   Aprendi a te amar mais, te vendo tão amado; a querer te homenagear mais, te vendo tão homenageado; de memória tão concorrida. Algo que preciso eu mesmo construir em minha vida!
                   Quais deveriam ser minhas últimas palavras a ti? De que adeuses; de que senões; de que poréns deveria me ocupar? Sinceramente, de nenhum. A singeleza de tua partida igualmente prova que o silêncio na maioria das vezes prova e demonstra mais coisas que as mais contundentes das palavras. Não duvido do poder das palavras, mas a tua lição se encontra na pujança do silêncio. Pois as últimas palavras que tinha a ti eram exatamente aquela mirada silenciosa; aqueles pensamentos intensos; e o filme de lembranças que passou em minha conturbada mente. Não haveria resposta possível àqueles intensos sentimentos.
                   Então o silencio foi nosso melhor diálogo, e nesse silêncio guardarei para sempre o encantamento daquele instante. No coração, de onde nem pela morte me desapegarei dele!
                   E se mágoas houveram; carências existiram; dores se plantaram; e se faltaram algumas revelações; se não sonhamos os mesmos sonhos em algum instante; nada disso tem importância, pois restou tudo apagado no turbilhão de cinzas que um dia foi teu corpo. Ao pó sempre retornaremos. Tudo isso já passou. Eternas são as boas lembranças; imortal é o espírito e o amor que plantamos.
                   Fica em paz, PAI, na eternidade da minha memória e no infinito do Cósmico!

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014




REMINISCÊNCIAS

                            Há uma noite a menos na cúpula de minha insólita existência. As horas são lentas, às vezes tão letárgicas e incalculáveis que nos enfadam e iludem pretendendo-se infinitas. Mas cada hora a mais representa o mesmo tempo a menos da existência e cada missão adiada significa a renúncia a algum afazer, tantas vezes tolo e banal, outras porém imprescindível à pretendida eternidade.
                            A verdade mesma; a cruenta, insensível e pernóstica verdade, é que apenas descobriremos o quanto é insignificante a pueril história de nossa existência pessoal quando ela já tiver se esgotado totalmente. Há um completo abandono de si mesmo e em si mesmo, pois o que queremos da vida não é nada. Ela nada significaria não fosse finita, inútil, frívolo e impossível desejo de imortalidade.
                            Nossas mães estrelas, entretanto, são tão inalcançáveis pela vastidão do Universo, que nem nossa galopante imaginação jamais será capaz de presumir o confim mais distante e desassossegado do cosmo. Nada existirá para além da nossa consciência? E em reverso, tudo o que pensamos há? Há então, aquele mundo paralelo, de luz pujante, sabedoria incomparável e beleza indescritível que alicerço em minha podre mente? Não há mais o pernóstico sentimento de sofrimento que decreto seja extirpado de minhas entranhas tão despoticamente quanto o mais vulgar dos tiranos decreta a morte de seus conselheiros mais temíveis?
                            Decreto vão; ignóbil este, pois não se invalida o que se emprenha na própria essência. Que horror, pois segue existindo dentro de mim o que dentro de mim suicidei. Não se nega o sentimento mais legítimo, tanto quanto não se omite a maré da irresistível força gravitacional da charmosa lua.
                            Ah, aquela lua! Redonda, bela, prateada que boia na vastidão da noite pululada por um ror incontável de estrelas. As estrelas, todas elas, são presumidamente maiores que a lua. Da nossa perspectiva, no entanto, é a lua que não passa indiferente diante da nossa acabrunhada vista. É a lua, a pequena filha das estrelas (tal como nós), não a mãe de toda a matéria cósmica, quem é imprescindível aos enamorados; irresistível às águas e ao próprio ciclo de vida do nosso pequeno planeta.
                            Vês, assim, como é míope a nossa visão do mundo e da vida?


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

segunda-feira, 17 de novembro de 2014




ELES NÃO ME REPRESENTAM

                   Os vinte e oito anos da URCA são anos de lutas, conquistas e vitórias, todas imprescindíveis à difícil afirmação de um centro de educação no interior do Nordeste brasileiro, que pratica a política de levar à população abrangida pela Universidade um ensino público, gratuito e de qualidade; razão pela qual renunciou à vencida política de instituir cursos de graduação não gratuitos. Há um preço impostergável a ser pago por ações desta grandeza, notadamente quanto ao fato de ser mantida exclusivamente com os recursos do orçamento do Estado do Ceará, que é o mesmo que dizer da imposição de uma série de limites e amarras no que se refere à gestão e limite desses recursos. A decantada autonomia universitária afirmada expressamente na própria Constituição Federal sofre severas barreiras diante de um orçamento decidido pela Assembleia Legislativa do Estado. A eleição das políticas a serem executadas pela instituição igualmente são contingenciadas por essa mesma realidade. Entretanto, essa tal realidade que aflige a toda a comunidade acadêmica da URCA é lugar comum a toda e qualquer Universidade pública deste país. Que o digam as outras Universidades do Estado do Ceará; que o confirme a realidade precária das Universidades Federais país afora.
                   Falar das dificuldades, no entanto, não é igual a negar os avanços e conquistas de vinte e oito anos de história. Aquela insipiente instituição precariamente fundada no longínquo ano de 1986, que oferecia cursos exclusivamente noturnos, que possuía um quadro de professores doutores e mestres quase nulo, não tinha laboratórios e qualquer renome, seja regional, seja nacional, hoje se apresenta em pleno desenvolvimento da política de formação de seus docentes, que possuem regimentalmente o direito de se licenciar por até quatro anos para cursar mestrados e doutorados país e mundo afora, sem prejuízo de sua remuneração; agora é referência mundial em matéria de paleontologia, sendo detentora material de importante museu dedicado a este estudo e, mais ainda, possui em seus quadros alguns dos mais respeitados pesquisadores na matéria (que batizaram, inclusive, espécimes inéditos no mundo); modernamente tem em pleno funcionamento um restaurante universitário, uma residência universitária, um ginásio poliesportivo, um biotério, renovou sua frota de carros; sem dizer que iniciou já várias pós-graduações, entre doutorados, mestrados e especializações; sem mencionar ainda que tem trabalhos de seus professores publicados em periódicos dos mais consagrados, além de ela mesma patrocinar outras publicações por sua conta. É todo esse conjunto de ações que a fazem estar entre as cem melhores universidades do Brasil, tendo seus cursos bem avaliados pelos padrões tanto do MEC quanto de instituições privadas (como é o caso da Editora Abril).
                   É paradoxal, mas nem parece que estamos falando da mesma Universidade que foi execrada em praça pública, pela condução em procissão de seu féretro e inumação de seu cadáver (pasmem, juntamente com o anúncio da morte prematura de pelo menos três dezenas de seus professores – que vergonha o sindicato da categoria agourar mal tão nefasto a seus próprios filiados). Para além do mau gosto da manifestação, é salutar destacar que apregoam meias verdades, pois no mesmo passo que existe carência de professores na instituição, fato grave e que merece pronto socorro do Governo do Estado, não são todos os departamentos da instituição que sofrem dessa dificuldade. Há uma inadiável e delicada discussão que necessita ser travada no âmbito da Universidade, que diz respeito à adequada distribuição da carga horária dos seus docentes. A classe dos professores não se permite ser massacrada no cumprimento de sua carga horária; não pode abrir mão de horas dedicadas ao planejamento, à pesquisa e à extensão, é verdade. Muito menos, porém, poderá se comprazer com o fato de que alguns de seus docentes com carga horária máxima e recebendo gratificação de Dedicação Exclusiva se dediquem exclusivamente oito horas à sala de aula; não prestem contas adequadamente de suas atividades e produções acadêmicas e mesmo mantenham vínculo com outras instituições da região nas ocasiões em que são legalmente proibidos de tanto.
                   Não é responsável uma greve que dura já quase seis meses (três meses entre 2013 e 2014 e mais de dois a partir de setembro do presente ano). É de se ponderar o terrível prejuízo que vem sofrendo os discentes da instituição, privados sumariamente de seus sonhos e planos para o futuro, pois o fato lhes compromete não somente a qualidade do aprendizado, como notadamente o prazo de sua formação. Já se fala no cancelamento pura e simplesmente do semestre letivo, fazendo atrasar em pelo menos seis meses a graduação de todos os seus alunos. Menos ainda se pondera o prejuízo financeiro desses alunos, alguns, os que moram fora, obrigados a sustentar a habitação local sem dela fazerem uso; outros submetidos ao constrangimento de não poderem colar grau, pois o semestre letivo tende a ser cancelado ou pelo menos postergado, mesmo que tenham tantos alunos já galgado a meritosa posição de haverem sido aprovados em concursos públicos, mestrados, exame da OAB, entre outros. Tudo, sem falar do impacto à já cambaleante economia caririense causado pela ausência de mais de dez mil alunos diariamente, a de alguma forma impulsionar a economia local.
                   Não é responsável muito menos uma greve deflagrada em pleno processo eleitoral, quando sabidamente o governador retirante não pode se comprometer para o ano civil seguinte, conforme expressamente veta a vigente Lei de Responsabilidade Fiscal. Muito menos, o eleito tem poder legal para fazer avançar qualquer compromisso com o qual tenha se empenhado. Para quem serviria uma greve deflagrada em momento jurídico-político tão inapropriado, da qual antecedentemente já se sabia que nada de concreto poderia ser conquistado, senão os enviesados, espúrios e vergonhosos dividendos políticos? Mas é legítimo e ético a deflagração de uma greve em circunstâncias tais exclusivamente com o objetivo de construir uma candidatura de oposição à Reitoria da URCA, por meio da instrumentalização do sindicato dos docentes por um partido político? Não estar-se-ia a praticar a autofagia dentro da própria instituição? Se a greve é um direito consagrado no texto da nossa Constituição, como qualquer dos outros ali também afirmados, é de ser exercida dentro dos parâmetros da responsabilidade, consciência coletiva e defesa das instituições democráticas (em uma palavra, com razoabilidade), não da maneira distorcida com a qual vem se transmudando atualmente. Nessa conjuntura, não estaria havendo abuso do direito de greve? Afinal, é o exercício responsável dos direitos, não o seu abuso, que contribui verdadeiramente para o amadurecimento das instituições democráticas.
                   As pessoas de bem já se fartaram, advirta-se, da deflagração de uma greve que faz povoar os corredores da Universidade (antes cheios de alunos, professores, aulas e sobretudo sonhos de um futuro mais promissor a todos) da desértica solidão não somente de pessoal, mas sobretudo, de propósitos e seriedade na boa condução da luta proposta. É preciso se repovoar os corredores e salas de aula da URCA, sob pena de parecer à sociedade local e ao próprio Governo que deveras de pouco ou quase nada serve o vultoso investimento que anualmente os cofres do Estado do Ceará lega à fatigada Universidade Regional do Cariri. É pela produção dos nossos docentes; é pela dedicação dos nossos alunos que provaremos a necessidade e importância para a Região do Cariri e mesmo para todo o Estado do Ceará e alhures, da sua honrosa Universidade.

                   É neste campo em que se deveria travar a verdadeira batalha, não nos corredores tristes e desertos em que a transformaram!

terça-feira, 28 de outubro de 2014


PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES

                   Passados os calores da campanha eleitoral, talvez seja o momento oportuno para se fazer algumas reflexões, que até o domingo último certamente seriam vistas como propaganda direta ou indireta para ou contra algum dos candidatos. O que precisamos verdadeiramente em matéria de política não é elegermos salvadores da pátria, nem verdades absolutas e muito menos encetarmos no debate político qualquer visão maniqueísta e excessivamente simplista da vida. O momento presente exige uma análise séria e realista da realidade, porque por mais que se afirme que a democracia brasileira esteja consolidada, a manutenção de um regime de liberdade sempre será tênue e exigirá perpétua vigilância. Acima das cores partidárias, deverá estar a defesa de valores essenciais a todos coletiva e individualmente considerados, no que ressaltamos as liberdades em geral e a dignidade da pessoa humana em particular. Não se trata de admoestar o leitor com qualquer discurso constitucionalista, mas na verdade de sobrelevar esses valores como acima de qualquer ciência, de qualquer ideologia ou mesmo de qualquer oportunismo eleitoral.
                   Em junho de 2013, alguns maravilhados outros temerosos, todos testemunhamos a tomada das ruas das principais cidades do país por uma massa disforme e pujante de manifestantes que essencialmente propugnavam mudanças, não se sentiam representados nem pelos políticos nem pelos partidos do presente. Não era somente os trinta centavos do aumento pretendido das tarifas públicas de transporte, mas a indignação contra a corrupção que invade todos os rincões de poder país adentro; a falta de compromisso dos parlamentares com as verdadeiras causas populares; o engodo ao qual a cada dois anos todos os nacionais se submetem em cada eleição, sejam as locais, sejam as nacionais ou regionais. Havia uma patente insatisfação não somente com os políticos e partidos que os aglomeravam, mas antes disso com o próprio sistema político estruturado a partir da Constituição Federal brasileira. Pouco mais de um ano depois, as urnas nos informam que aquele sentimento de renovação deu lugar a um incompreensivo continuísmo de todas as forças políticas estabelecidas antes daquele histórico marco. Se a presidência da República continua sob o jugo do PT, o governo do estado mais rico e populoso do país segue entregue ao PSDB. No Rio de Janeiro, se reelege o Governador que não por acaso era o vice daquele a quem exigiam a imediata renúncia. No Ceará, assim como findou sendo a regra em quase todo o Nordeste, é eleito o ungido do Governador de plantão. Será que mudamos tanto e tão profundamente que acabamos igual ao que éramos antes? Que lições tirar das manifestações de junho em comparação ao resultado das eleições de outubro?
                   Muitos tratados haverão ainda de serem escritos sobre esse tema. Os cursos relacionados às ciências sociais terão muito material sobre o qual se debruçar e esmiuçar suas detidas vistas, por meio dos quais certamente sacarão dezenas de mirabolantes teorias. Para nós, preliminarmente nos parece certo que os manifestantes de junho não mudaram de ideia nesse pouco mais de um ano, para se sentirem magicamente representados pelos mesmos governantes de antes. Seguem não estando representados pelo Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Executivo tanto quanto antes. A conclusão primeira que nos parece advir das urnas é a da falência do sistema que por detrás do discurso de que somente por intermédio da democracia se conquistarão todas as liberdades, exclui espuriamente desse mesmo sistema representativo uma significativa massa de estudantes, intelectuais, artistas e vanguardistas de diversas espécies, que foram aqueles que saíram às ruas em protesto mas que nada de positivo obtiveram como resposta das urnas. Estranhamente, a democracia brasileira exclui do efetivo poder decisório as melhores cabeças e os mais ávidos a dar cabo das desigualdades e injustiças sociais reinantes. Se observarmos bem, a constatação é ainda mais tenebrosa, pois não é somente a democracia brasileira que exclui seus melhores quadros da participatividade, mas a democracia mundial, pois é inevitável aferir que a democracia europeia, por exemplo, também padece do mesmo e talvez irremediável mal de não representar os verdadeiros interesses da sociedade. Em seu Ensaio Sobre a Lucidez, o prêmio Nobel de Literatura, o português José Saramago nos impinge tenebroso alerta: o inimigo dos tempos modernos é o próprio governo democraticamente eleito.
                   A democracia por si mesma não nos representa, pois os eleitos são paridos das práticas das dezenas de espécies de abuso. A democracia, ensina por exemplo o sábio eleitoralista Fávila Ribeiro, pressupõe uma completa igualdade entre os competidores, pois que do contrário, ela não espelhará uma decisão soberana. No Brasil é cediço o conhecimento no sentido de que aqueles que não abusarem do poder, jamais serão eleitos. E o abuso por si só desequilibra a igualdade da competição. Logo, outra conclusão se impõe quanto a todos os eleitos do presente processo eleitoral (talvez quase sem exceção), que é a de que só lograram vitória no pleito graças à prática de alguma espécie de abuso de poder. Nesse sentido, lembramos que abusar do poder não significa exclusivamente a compra direta de votos, mas também o uso da máquina pública em favor de candidaturas, a maquiagem falaciosa do marketing político, e às vezes até a superioridade cultural de uns sobre os outros, além de tantas outras espécies. Assim, a mazela da nossa democracia está antes de tudo na miséria do nosso povo. Se é importante dar comida aos famintos, como fazem os programas sociais da atualidade, mais ainda é instruir e dignificar os miseráveis, pois somente a educação libertará verdadeiramente o homem, tornando-o em definitivo igual aos demais membros da mesma sociedade. E a educação, convenhamos, é o tema sobre o qual pouco se debate e muito menos ainda se estabelecem práticas efetivas para a sua concretização. O Plano Nacional de Educação fala em dez por cento do PIB para a educação nacional, porém é de se indagar a porcentagem desse valor que será destinada ao aparelhamento estatal dos partidos políticos, tomada a efeito por intermédio da corrupção, a exemplo do que se vem acontecendo com a Petrobras. É triste, mas nos parece óbvio que os prometidos recursos do pré-sal não ficarão imunes a esta nefasta realidade.

                   Não se tratará jamais de defender o fim da democracia, mas de chamar a sociedade nacional à responsabilidade e consciência no sentido de que para nos afirmarmos como uma nação verdadeiramente livre e democrática, precisamos muito mais que simplesmente comparecermos às urnas a cada dois anos. O sufrágio praticado da forma pela qual fazemos no Brasil longe está de espelhar uma verdadeira democracia, pois uma democracia sem liberdade, sem a possibilidade de verdadeira participação, sem se permitir representar os milhares de brasileiros que acorreram, indignados, às ruas em junho do ano pretérito, definitivamente não espelha nenhuma liberdade. Democracia sem liberdade não é democracia, mas um engodo dela. Cuidado para não transformarmos nossa sociedade em uma democracia de falácias, onde no discurso da televisão somos livres e nas práticas da mídia e do governo escravos. Se somente a educação conscientiza e liberta verdadeiramente, somente poderemos nos declarar uma democracia efetiva desde quando toda a nossa população venha a ter acesso a uma educação plena, integral e libertadora. Chega de testemunharmos eleições onde a miséria do povo seja o fator decisório do sufrágio.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014


QUEM PODERÁ NOS DEFENDER?

                   Etimologicamente, candidato vem do latim candidatus, que significa cândido, alvo. Para simbolizar sua pureza, na antiguidade, aqueles que pretendiam concorrer a algum cargo público se vestiam de branco, enquanto símbolo da pureza que deveriam ostentar enquanto condição para a ascensão ao honorífico cargo que pretendiam. Atualmente, a moderna campanha presidencial literalmente jogou na podre lama do esquecimento a nobre origem dessa palavra. Basta observarmos em torno de que assuntos giram os debates entre os incândidos candidatos presidenciais. No final das contas, parece que deveremos escolher entre o menos corrupto, o menos omisso ou o menos cúmplice, porque as denúncias de corrupção grassam por sobre todos igualando-os nefastamente pelos valores que não deveriam possuir.
                   Para além das cores ideológicas das preferências partidárias, nos parece revelado pela propaganda eleitoral a inglória verdade de que a corrupção é uma realidade comum a todos os partidos, de todas as tendências. Não se trata de um mal da direita nem da esquerda, mas da própria política. A indesejável lição talvez seja a de que onde houver o Estado e a digladiadora luta pela política, ali os homens se corromperão. Talvez não seja o caso de concordar com Aristóteles para quem a democracia tende a se transformar em uma demagogia, pois de todos os modelos de governo a liberdade segue sendo melhor assegurada pela participação popular direta. Ainda assim, é certo que a nossa democracia se encontra em séria crise de representatividade. Os candidatos, atolados todos em denúncias de corrupção, que quando não sejam diretamente indicados como partícipes ou cúmplices, pecam indelevelmente ao menos pela omissão de não controlar, mandar apurar e advogar a pronta punição dos corruptos, certamente não representam o cidadão mediano, honesto por instinto e por criação, que tem nos valores da verdade, honestidade, boa fé e respeito ao que seja correto os alicerces maiores de sua existência. Nem eu, nem esse cidadão nacional mediano (o bom pai de família dos tempos da antiga Roma) nos sentimos representados pelas candidaturas postas, todas por uma maneira ou outra associados à má administração da coisa pública, com obras paradas, mau executadas ou caras em excesso; com os desmandos da máquina administrativa, onde pessoas sem cargos mandam mais que os que tenham sido regularmente nomeados; onde o futuro ocupante do cargo mais importante da nação é chamado de mentiroso em cadeia nacional de televisão e permanece silente, como se não fosse com ele o ocorrido; onde os candidatos não falam o que pensam verdadeiramente, mas aquilo que seus marqueteiros lhes mandam dizer, transmudando-se, todos, em mercadorias a serem consumidas pelo incauto eleitor, não pelo conteúdo que possuam, mas pela bela embalagem com a qual se apresentam.
                   Precisamos de pessoas sérias de verdade, não das que simplesmente se travistam dessa capa pelos recursos da mídia. Precisamos de governantes éticos e honestos de fato, não dos que finjam não saber por intermédio de que meios ilícitos conseguem aportar recursos financeiros à sua campanha. Necessitamos de candidatos limpos e puros efetivamente, não dos que afirmam uma coisa e praticam outra totalmente diferente. Em uma palavra, é de coerência e respeito do que mais a nossa fragilizada democracia precisa. Mas e de quem poderemos esperar esses sublimes e imprescindíveis valores?

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

quinta-feira, 2 de outubro de 2014


SOLITUDE


                   Enquanto espécie, somos (nós, a humanidade) um disforme conglomerado de seres, tão parecidos e ao mesmo tempo tão díspares uns dos outros. Sobretudo, o que somos mesmo é unidades solitárias de consciência em busca de dar algum sentido para a vida nossa e do grupo coletivo. Mutuamente, nós e a coletividade em que nos instalamos, estabelecemos perigosas relações de comutação, onde ao tempo em que somos explorados igualmente exploramos a outra parte da relação.
                   É talvez o medo da solidão que nos impulsiona instintivamente à vida grupal, que ao mesmo tempo nos incomoda pelas amarras sociais que nos são impostas enquanto condição do convívio. Mas também é o desejo insano à imortalidade que nos impele a tal convívio, pois a única maneira de vencermos a mortalidade da existência terrena é pela lembrança dos que deixamos. Nesse ângulo, tudo o que a humanidade produziu ou vier a produzir é fruto dessa ignóbil luta, fruto do pueril desejo de sobrevivermos aos processos orgânicos do nosso corpo. A sociedade como um conjunto descende desse desejo; as grandes obras da arte concretizam, às vezes por séculos a imortalidade de ditos personagens; assim como o culto aos mortos, a estrutura da família e, em uma palavra, tudo do que se ocupou o homem por tantos e incontáveis milênios.
                   Porém, a verdade central da existência segue sendo a mesma, por mais cegos que todos nós estejamos a ela: enquanto unidades de consciência somos solitários. A maior e mais insuperável de todas as marcas da existência humana segue sendo a solitude dos homens. Por mais congestionadas de pessoas que estejam as grandes cidades; por mais numerosas que sejam as famílias; por mais relacionamentos que se estabeleçam nas redes sociais é essa danada da solidão quem nos devora pouco a pouco, arrefecendo a esperança, cada vez mais tênue, de darmos cabo àquele surdo sentimento que nos povoa a todos e que combatemos incansavelmente por todos os vãos instantes da nossa existência e do qual tão poucos sabem propriamente de que se trata.
                   Pior que isso, é não enxergarmos a bonança e a necessidade mesmo da solidão. É por meio dela que chegamos e deixamos a existência material. É por seu intermédio que recebemos as maiores bênçãos e as mais importantes inspirações em nossa existência. Nossa intuição nos fala à consciência pelo silêncio e através da solidão. Sobretudo, é por seu meio que seremos capazes de enxergar, compreender e nos integrar ao próprio Deus.
                   Que benção, então é a solidão. Que ela nos seja útil, pois.


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

terça-feira, 22 de abril de 2014



CONVERSAS COM A MORTE
  
                            Teus cheiros ocres não incomodam nem mais seduzem. Tua aparência pestilenta, agora sei, é ilusória. Tu não és feia nem terrível. És necessária. És o bálsamo das dores insanáveis; o fim do ócio da existência; a mãe da eternidade e o recomeço da vida. Não te quero mal, como sei que não odeias a ninguém. Simplesmente tu vens para completar o ciclo, porque não és o início do nada, mas o fim do tudo que foi a vida extinta. És promessa de eternidade; fé no recomeço cíclico da existência perpétua. Razão de que tudo tem e terá sentido; devanear dos incrédulos ateus, por contigo, o sem sentido da existência encenar seu ato derradeiro. És o que, nós tolos mortais, quisermos que sejas: foice agonizante das dores eternas; suplício dos sofrimentos carnais; trágico fim do amor desatendido; desilusão do filho desvairido; fim sereno de uma doce existência... Mas também és certa como as noites sem luar, as madrugadas sem sono e os ocasos de contemplação.
                            És sempre companheira querida nas horas de desilusão. Quem nunca gritou por teu nome nos instantes de maior angústia; quem não pensou em antecipar tua chegada por força dos sofrimentos. Mas sofrer é ínsito à vida, e tanto quanto de ti própria, ninguém escapa das auguras da existência carnal. Te evocar antes do teu tempo, que a ti, somente a ti, compete eleger, não é ato de coragem, mas de extrema covardia. É ato de quem teme tanto a vida, que se desapega da morte.
                            Não nos visitas somente no termo final, mas ao longo de nossa existência de quando em vez sopras teu suave veneno em nossas narinas desatentas. Aquele avô doente e distante que partiu quando ainda éramos crianças; aquele vizinho enfermo; o amigo de escola; a tia querida. Às vezes, és mais veemente: a mãe prematuramente; o melhor amigo; o eterno amor; o filho insubstituível... Não importa de que forma venhas, isto é uma desinteressante questão de merecimento pessoal, que nada tem a ver contigo em si mesma. O fato é que nos prepara desde tenra idade para a tua certeza, única infalível, mesmo que todos os homens vivam para te negar. A verdade é que somos treinados de crianças para não falarmos nem pensarmos em ti; para vivermos eternamente a existência sofrida e desgastante da matéria. Como se valesse a pena tanta dor e sofrimento sem a tua triunfante chegada ao final...
                            A cada encontro nos revelas uma face diferente. Às vezes és serena e gentil, como aquele senhorzinho que parece dormir no caixão. Outras vezes vens irada com o sangue e deformações do sofrimento extremo. Tu já torturastes nossos irmãos, fazendo-os agonizar em terríveis provações, mas também já fostes gentil quando atendeste suave ao convite da partida. És a mãe da guerra, mas também o alimento do recomeço. Não és dor em si mesma, muito embora sejas íntima dela.
                            Já te ouvi em sussurros, alertando que a vida não é vazia e que todas as decisões dela geram uma conseqüência. Cuidado, me avisaste, porque ao termo da tua existência, os erros serão teus e tua vida será minha. Com esta branda dureza me ensinastes a alimentar a responsabilidade das decisões; a respeitar os próprios sonhos que nutro além de perceber a fragilidade da vida. Também já me falaste em silêncio, quando pela intuição me alertaste que a não ser pela radical modificação de postura não tardaria muito nosso encontro derradeiro. E por fim me foste mais escancarada ao, pela quase fatal enfermidade me ensinar (por forma tão grotesca) que não devemos deixar para a tarde as tarefas realizáveis pela manhã, porque aquela pode ser nossa última manhã. Foram três já nossos encontros diretos. Alguns diriam que quatro, porque quando cheguei nesta encarnação, tu partias com quem muito amava. Mas todos foram encontros profícuos. Aprendi muito mais que imaginava, de forma que tu, o fim; o temor personificado; o indesejável de todas as eras me trouxera anestesia às angústias; bálsamo aos sofrimentos; esperança aos desalentos.
                            Mas afora estes encontros casuais, sempre fugi de ti. És fria e dura demais, para desejar sentir teu bafo como o perfume de uma amiga. Não. Podes ser sábia, forte e pujante. Mas não és amiga de ninguém. Podes ser necessária, mas não és capaz de amar. Por mais que nós te façamos humana, como nossas dores e sofrimentos, não és uma de nós, porque não és capaz de perdoar ou adiar o necessário. Não choras as perdas, porque em sendo o nada, nada tens a perecer. Simplesmente és por ser; uma peça na caótica engrenagem do universo, sem qualquer sentido em si mesma, senão aos olhos dos tolos sábios que tudo pensam saber, mas que porém não conhecem a mais ínfima de todas as razões do existir: a vontade de viver simplesmente por viver. Por mais que nos digamos preparados para tua fatídica visita, sempre queremos te enganar. Como, porém, não és uma de nós, não te permites nos deixar te enganar. Não te enganas simplesmente porque és necessária. E qual daqueles tolos sábios seria capaz de antecipar tua visita por simples desprendimento? Aquele que assim agisse na verdade não seria um tolo, mas um suicida, condenado à condenação perpétua de haver de ti se enamorado. Qual pecado há em morrer se és a única certeza da existência perceptível?

                            Mas também não adianta te discutir. És intransponível como certeza, porém podes ser uma necessidade doce, como é o amor, rejuvenescedora como o perdão mas também dura como a desilusão. És inerente à vida, mas podes ser almejada como uma vitória. Não és nada ou simplesmente tudo que nós, tolos seres humanos, conseguirmos fazer de ti. És o que és. Porque és. Simplesmente és e nada mais.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

RÉPLICA DO MOVIMENTO PELA REFUNDAÇÃO DO CRATO
ou
PELA VERDADE


                   Não nos utilizaremos dos dois tomos dos quais valeu-se o velho Rui Barbosa para rechaçar as detratações contra si lançadas quando fora senador da República. Mas algo é preciso ser dito sobre as reações a nosso artigo, que pela instigação da consciência cívica dos cratenses, finda propugnando a necessidade de refundação desta heroica terra, enquanto única saída ao presente descalabro.
                   De 1903 a 1904, na célebre questão em que o coronel Antônio Luiz deu por terra, a bala, no Crato, com o chefe político José Belém de Figueiredo, foi a Farmácia Central o laboratório em que, durante meses, se processou a conspiração contra o temeroso potentato, é assim que descreve o ilustre Irineu Pinheiro a tomada a força do poder pelo Cel. Antônio Luiz. O Crato e as articulações engendradas em farmácias... nos parece algo comum ao passado e ao presente dessa terra, não sendo mera coincidências, portanto, os acontecimentos contemporâneos. Segundo o festejado Raimundo de Oliveira Borges, o Cel. Belém foi um injustiçado, porém a máxima de que quem com ferro fere, com ferro será ferido, também fez sua justiça, quando anos depois, a prefeitura do Crato fora invadida e tomada pelas forças governistas, tomando-a das mãos do arrogante Antônio Luiz.
                   Este episódio se trata de um símbolo marcante de como pensam as elites locais, que egocentricamente pensam exclusivamente em seu próprio bem estar, esquecendo-se do progresso da sua terra e de sua gente. Foi graças a essa visão miúda de mundo que o centro de comércio da região central do Nordeste se transmudou na miúda economia dos tempos atuais. Darcy Ribeiro, em sua obra fundamental sobre antropologia brasileira, em diversas passagens cita o Crato e sua importância geopolítica e econômica, que tinha como símbolo o largo da Rede Viação Cearense (atualmente REFFESA), de onde partiam e chegavam as riquezas que alimentavam toda a região. Hoje, após longos e lastimáveis anos de abandono, temos ali um espaço cultural, infelizmente subutilizado face a ausência de apoio do poder público a atividades culturais. Como seríamos a capital da cultura sem o inevitável apoio das verbas públicas?
                   O Crato é dos municípios mais antigos do interior cearense, e possui a primeira Comarca do interior do Estado, fundada ainda nos idos do reinado de D. João VI. Uma Comarca que até o final dos anos noventa não possuía sede própria, funcionando precariamente em um minúsculo prédio, no centro da cidade, e que hoje funciona quase tão precariamente quanto antes em um prédio de dimensões insuficientes à sua importância (nem acesso a deficientes possui, pasmem os ativistas do século XXI!). Os prédios históricos da cidade foram quase que totalmente destruídos, fazendo esta terra renunciar ao título de possuir uma das mais robustas e belas arquiteturas histórica do país. Ainda hoje, os prédios que arrodeiam a Praça da Sé são demolidos diante do contemplativo descaso da grande maioria da nossa população. A Casa de Bárbara de Alencar foi destruída. A casa onde nasceu o Padre Cícero também. O simbólico prédio da Cinelândia (onde tínhamos o nosso orgulhoso senadinho) não teve destino diferente. Os poucos prédios antigos que ainda resistem são escondidos pelas placas do comércio local. Eis o triste retrato de uma terra sem memória, que abdicou a seu passado pela aplasia de toda a sociedade.
                   Nas Constituições de 1946 e de 1988 (as duas Constituições mais democráticas e libertárias da história desse país) o Crato orgulhosamente teve representantes nas respectivas Assembleias Constituintes. Hoje não possuímos sequer um Deputado Federal, Senador ou membro do primeiro escalão, seja do Governo Federal, seja do Governo Estadual. Nos últimos dez anos, o crescimento populacional da cidade foi abaixo do nacional. Já tivemos algumas importantes indústrias da região, sendo o polo da atividade industrial local. Hoje, vivemos sob a marca de escândalo de doações irregulares de terrenos pelo poder público a empresários. E quantos órgãos públicos já não cerraram suas portas em nosso município, seja pela falta de atrativos, seja pela ineficiência de seus gestores? Modernamente, o prédio do SESI se nos apresenta como uma importante marca deste movimento histórico que esvazia, dia a dia, a nossa cidade, transformando-a em uma simples e desimportante cidade dormitório.
                   Assim poderíamos discorrer por tomos inteiros, descrevendo o tanto que o Crato teve e o tanto que deixou de ter. O cratinha...
                   Vendo as coisas por esse ângulo; andando pelas ruas da cidade e averiguando in loco a tristeza e o descaso que povoam todas as suas ruas; a falta de esperança que inunda a alma de seus cidadãos mais honestos, não conseguimos, definitivamente não conseguimos enxergar a cidade próspera, pujante e feliz decantada em certos artigos que nos pousam a vista. E a quem deveríamos atribuir a culpa pelo fracasso histórico dessa orgulhosa terra senão a sua elite, a quem sempre coube administrá-la? Nunca é demais lembrar que o sistema eleitoral brasileiro não permite que se chegue ao governo sem se abusar do poder, seja o econômico, seja o político, seja o cultural ou outros mais. Todos os prefeitos dessa terra, em todos os tempos (presentemente inclusive) foram eleitos com o apoio de parcela da elite local. Sem esse apoio ninguém jamais conseguiria galgar ao poder. Não há cidadãos independentes e conscientes que chegaram ao poder. Há castas sociais que apoiam e elegem candidatos. Portanto, desde a sangrenta derrubada do Cel. Belém do poder, todos os mandatários locais tiveram sim a cumplicidade das nossas elites. E se é a estes maus administradores a quem devemos o nosso descalabro, também é à elite que os elegeu, solicitou-lhes favores não republicanos e os manteve no poder. É esta a realidade de toda e qualquer sociedade, seja ela democrática ou não, pois não se pode governar sem parcela importante das elites.
                   Não é o pessimismo, mas fruto de atenta e científica análise sociológica da nossa terra que nos convence haver uma única esperança para a que um dia foi a imponente Cidade do Crato, Cabeça de Comarca (que formam os quatro “C”, do seu brasão). É preciso refunda-la. Tudo o mais é discurso apartado do sentido histórico da realidade.
                   As pessoas que amam verdadeiramente o Crato precisam reconstruí-la.

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

MOVIMENTO PELA REFUNDAÇÃO DO CRATO


                   Era uma sexta feira, vinte e três de janeiro de 1914. Reunidos em frente à casa do patriarca de Juazeiro toda uma tropa de romeiros estava pronta para a mais ousada de todas as investidas que tiveram vez na revolução daquele ano que culminaria com a deposição do Presidente do Estado do Ceará, o Coronel Franco Rabelo. Naquela ocasião, jagunços transmudados em beatos, armas depostas e face de êxtase aguardavam as sacras palavras do velho padrinho Cícero. Por sua vez o sacerdote ao tempo em que dava a ordem para a invasão da vizinha cidade de Crato, pontificava:
O Crato é minha terra, meu torrão natal. Só permito um combate como esse para tanger de lá os meus inimigos, de uma vez por todas. Eles querem cortar minha cabeça, acabar com os romeiros e destruir o Juazeiro, esta terra santa de Nossa Senhora das Dores. Vão. Não bebam cachaça, para não fazerem besteira. Não atirem à toa, pois todos sabem que não dispomos de muita munição. Chegando na entrada da rua do Crato, não queiram penetrar logo na cidade, demorem um pouco, dando tempo para as famílias se retirarem. Deixem fugir também os soldados que não quiserem guerrear. Não persigam, de maneira nenhuma, os fugitivos. Deixem livres os caminhos do seminário e da casa de caridade. Não importunem quem quiser se refugiar lá dentro. Respeitem a casa do vigário Quintino e qualquer pessoa que vá se esconder nela. Não destruam as residências e muito menos matem pessoas que não estejam em combate.
                   Partida a tropa para o cumprimento da missão, quedou-se o velho sacerdote trancafiado em seu quarto, em desassossego, empunhando um crucifixo em direção a sua terra natal, traçando com ele largos gestos, como se desenhasse várias cruzes no ar. Segundo o relato de um cratense, o médico Irineu Pinheiro, o Crato possuía superioridade em armas e homens. Mesmo assim, graças à coragem destemida dos romeiros, mas, sobretudo à covardia incompetente dos governistas, os mais fracos venceram. É o mesmo Irineu Pinheiro que atesta, sobre as forças defensivas de Crato, que
pode dizer-se sem risco de erro que da falta absoluta de capacidade de direção da gente do governo resultou a queda fácil do Crato, principal centro de resistência governista no sul do Estado. Poderia defende-lo vantajosamente a guarnição da cidade e se, por ventura, fosse excepcionalmente vigorosa a pressão dos atacantes, inda assim, seria eficientíssimo o auxílio de Barbalha, onde se achavam centenas de homens da polícia.
                   Por isso, continua o culto cratense, vencera a tenacidade, a coragem dos romeiros que, com escassos tiros em suas cartucheiras, obrigados, portanto, a poupá-los não desanimaram e fizeram recuar e correr diante de si o inimigo bem municiado, abrigado em sacos de algodão, ou protegido pelos muros das casas.
                   Antropologicamente, pode-se dizer que é desta invasão, hoje centenária, que nasce o rancor que as elites cratenses ainda hoje alimentam contra a metropolitana Juazeiro do Norte. Mas historicamente, resta fincada a data da extinção do Crato, seja como cidade, como centro de cultura ou polo de comércio. Portanto, comemoramos modernamente os cem anos da extinção do Crato, que na última centúria permaneceu viva somente no soberbo orgulho e na míope visão de sua incompetente elite. Eis as razões remotas da decadência e irrecorrível declínio da ciosa terra de Bárbara de Alencar. Eis a razão porque a memória viva das datas histórias desta terra, Huberto Cabral, não bradou aos quatro cantos a histórica data do centenário da queda do Crato.
                   De lá para cá, o Crato assiste enciumado o engrandecimento de Juazeiro do Norte, ao mesmo tempo em que lamenta os investimentos e as instituições que paulatinamente vem perdendo, mas também os muitos que deixou de ganhar. Os escândalos que povoam modernamente a vida do Legislativo e Executivo local, são meros reflexos deste já longo movimento histórico, que apenas culminam a marca da insensatez e incompetência de nossas elites. É a ela, a inglória, arrogante e medíocre elite cratense, a quem se deve o malogro histórico desta terra. E deste malogro, não há mais saída, pois o bonde da história já passou, deixando para trás, choramingando pelo desprezo, todo um povo, que em certo e remoto dia, já foi a capital da cultura e do folclore, centro de conhecimento e relevante polo de comércio do nordeste brasileiro. Agora é vergonhoso foco de denúncias de corrupção e desmandos da coisa pública.
                   A única solução possível para esta malsinada terra é a sua refundação. Esqueçamos o brado de José Martiniano, que primeiro proclamou a república, pois junto com aquele grito, pusemos no poder local o egocentrismo do bacamarte e a mesquinhez do pensamento politiqueiro mais energúmeno, o mesmo que ainda hoje povoa as rodas palacianas. Deixemos de lado o título de capital da cultura, pois ele nada mais é senão o símbolo de que já há cem anos, toda esta terra encontra-se paralisada no tempo, renunciando ao desenvolvimento sustentável e a uma economia saldável. Abandonemos o inútil culto aos gloriosos nomes da nossa elite, pois são eles, exatamente eles, os grandes responsáveis pela nossa derrocada. As ilustres famílias desta terra são na verdade seus mais terríveis algozes, os culpados históricos pela nossa opróbia queda.
                   Comecemos do nada, da estaca zero. Cultivemos os valores da ética, da honestidade e da verdade, ao invés da mesquinhez, arrogância, prepotência e covardia que preenchem vergonhosamente as páginas dos últimos cem anos de história do Crato. Refundemos esta cidade, pois esta é a única esperança de transmudar o caos do presente em esperança e prosperidade, abandonando de vez a vergonhosa história que nos precede!

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto