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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

MOVIMENTO PELA REFUNDAÇÃO DO CRATO


                   Era uma sexta feira, vinte e três de janeiro de 1914. Reunidos em frente à casa do patriarca de Juazeiro toda uma tropa de romeiros estava pronta para a mais ousada de todas as investidas que tiveram vez na revolução daquele ano que culminaria com a deposição do Presidente do Estado do Ceará, o Coronel Franco Rabelo. Naquela ocasião, jagunços transmudados em beatos, armas depostas e face de êxtase aguardavam as sacras palavras do velho padrinho Cícero. Por sua vez o sacerdote ao tempo em que dava a ordem para a invasão da vizinha cidade de Crato, pontificava:
O Crato é minha terra, meu torrão natal. Só permito um combate como esse para tanger de lá os meus inimigos, de uma vez por todas. Eles querem cortar minha cabeça, acabar com os romeiros e destruir o Juazeiro, esta terra santa de Nossa Senhora das Dores. Vão. Não bebam cachaça, para não fazerem besteira. Não atirem à toa, pois todos sabem que não dispomos de muita munição. Chegando na entrada da rua do Crato, não queiram penetrar logo na cidade, demorem um pouco, dando tempo para as famílias se retirarem. Deixem fugir também os soldados que não quiserem guerrear. Não persigam, de maneira nenhuma, os fugitivos. Deixem livres os caminhos do seminário e da casa de caridade. Não importunem quem quiser se refugiar lá dentro. Respeitem a casa do vigário Quintino e qualquer pessoa que vá se esconder nela. Não destruam as residências e muito menos matem pessoas que não estejam em combate.
                   Partida a tropa para o cumprimento da missão, quedou-se o velho sacerdote trancafiado em seu quarto, em desassossego, empunhando um crucifixo em direção a sua terra natal, traçando com ele largos gestos, como se desenhasse várias cruzes no ar. Segundo o relato de um cratense, o médico Irineu Pinheiro, o Crato possuía superioridade em armas e homens. Mesmo assim, graças à coragem destemida dos romeiros, mas, sobretudo à covardia incompetente dos governistas, os mais fracos venceram. É o mesmo Irineu Pinheiro que atesta, sobre as forças defensivas de Crato, que
pode dizer-se sem risco de erro que da falta absoluta de capacidade de direção da gente do governo resultou a queda fácil do Crato, principal centro de resistência governista no sul do Estado. Poderia defende-lo vantajosamente a guarnição da cidade e se, por ventura, fosse excepcionalmente vigorosa a pressão dos atacantes, inda assim, seria eficientíssimo o auxílio de Barbalha, onde se achavam centenas de homens da polícia.
                   Por isso, continua o culto cratense, vencera a tenacidade, a coragem dos romeiros que, com escassos tiros em suas cartucheiras, obrigados, portanto, a poupá-los não desanimaram e fizeram recuar e correr diante de si o inimigo bem municiado, abrigado em sacos de algodão, ou protegido pelos muros das casas.
                   Antropologicamente, pode-se dizer que é desta invasão, hoje centenária, que nasce o rancor que as elites cratenses ainda hoje alimentam contra a metropolitana Juazeiro do Norte. Mas historicamente, resta fincada a data da extinção do Crato, seja como cidade, como centro de cultura ou polo de comércio. Portanto, comemoramos modernamente os cem anos da extinção do Crato, que na última centúria permaneceu viva somente no soberbo orgulho e na míope visão de sua incompetente elite. Eis as razões remotas da decadência e irrecorrível declínio da ciosa terra de Bárbara de Alencar. Eis a razão porque a memória viva das datas histórias desta terra, Huberto Cabral, não bradou aos quatro cantos a histórica data do centenário da queda do Crato.
                   De lá para cá, o Crato assiste enciumado o engrandecimento de Juazeiro do Norte, ao mesmo tempo em que lamenta os investimentos e as instituições que paulatinamente vem perdendo, mas também os muitos que deixou de ganhar. Os escândalos que povoam modernamente a vida do Legislativo e Executivo local, são meros reflexos deste já longo movimento histórico, que apenas culminam a marca da insensatez e incompetência de nossas elites. É a ela, a inglória, arrogante e medíocre elite cratense, a quem se deve o malogro histórico desta terra. E deste malogro, não há mais saída, pois o bonde da história já passou, deixando para trás, choramingando pelo desprezo, todo um povo, que em certo e remoto dia, já foi a capital da cultura e do folclore, centro de conhecimento e relevante polo de comércio do nordeste brasileiro. Agora é vergonhoso foco de denúncias de corrupção e desmandos da coisa pública.
                   A única solução possível para esta malsinada terra é a sua refundação. Esqueçamos o brado de José Martiniano, que primeiro proclamou a república, pois junto com aquele grito, pusemos no poder local o egocentrismo do bacamarte e a mesquinhez do pensamento politiqueiro mais energúmeno, o mesmo que ainda hoje povoa as rodas palacianas. Deixemos de lado o título de capital da cultura, pois ele nada mais é senão o símbolo de que já há cem anos, toda esta terra encontra-se paralisada no tempo, renunciando ao desenvolvimento sustentável e a uma economia saldável. Abandonemos o inútil culto aos gloriosos nomes da nossa elite, pois são eles, exatamente eles, os grandes responsáveis pela nossa derrocada. As ilustres famílias desta terra são na verdade seus mais terríveis algozes, os culpados históricos pela nossa opróbia queda.
                   Comecemos do nada, da estaca zero. Cultivemos os valores da ética, da honestidade e da verdade, ao invés da mesquinhez, arrogância, prepotência e covardia que preenchem vergonhosamente as páginas dos últimos cem anos de história do Crato. Refundemos esta cidade, pois esta é a única esperança de transmudar o caos do presente em esperança e prosperidade, abandonando de vez a vergonhosa história que nos precede!

Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto

Um comentário:

  1. Muito bom texto, parabéns pela pesquisa. Pena, que a elite do Crato seja apenas um fractal desse país.
    Não sei se você já viu o livro A Elite do Atraso do Sociólogo Jessé de Souza
    https://revistacult.uol.com.br/home/jesse-souza-a-elite-do-atraso/

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