A
TRAGÉDIA DE PRINCESA
De todos os períodos da rica historiografia do
Cariri cearense, o que ganhou estudos mais profundos nos parece ser o da época
dos coronéis, localizado na transição entre o fim do império e enraizado na
primeira república. Foi exatamente este o período em que viveu e reinou a
matriarca de Lavras da Mangabeira, Fideralina Augusto Lima, mulher de
ascendência nobre, que através da força do bacamarte e de inigualável prestígio
político reinou entre os coronéis de toda a região.
É mulher cantada e decantada, de presença viva não
apenas nos livros de história, como mais ainda no imaginário popular e na
tradição oral da região. É cantada por poetas famosos, como é o exemplo do Cego
Aderaldo. Mas certamente a quadra que melhor desenha o tamanho da figura de d.
Fideralina de Lavras é a de José Pinto Paes Barreto, quando descreve os donos
do poder local dizendo:
O Belém manda no Crato
Padre Cícero em Juazeiro
em Missão Velha Antônio Róseo
Barbalha é Neco Ribeiro
Das Lavras Fideralina
quer mandar no mundo inteiro.
Não é mesmo possível tratar da história local
daquela época sem abrir capítulo destacado à essa matriarca. Não apenas por ter
sido mulher com poder de mando num universo machista e violento, onde a força
bruta imperava, mas também pela influência elevada que exerceu sobre os demais
mandatários da região. Numa época em que era a força das armas que ascendia e
mantinha o poder, Fideralina reinou sem oposições. De todas as cidades
invadidas naquele período, Lavras foi a única que resistiu. Isso em 1910, como
tão brilhantemente narrou João Calixto em obra específica sobre esse episódio.
Igualmente é marcante a participação de Fideralina na revolução de 1914, em que
saiu deposto o Presidente do Estado, Franco Rabelo e consagrado na vida
política nordestina o patriarca de Juazeiro, quem nutria estreita relação de
amizade com Fideralina.
De toda sua rica história, é sem dúvidas o
episódio de Princesa, então pequena vila paraibana, aquele que talvez mais
tenha marcado sua vida, através do qual a velha matriarca transformou uma
imensurável tragédia na sua mais definitiva consagração política. Tratou-se
exatamente do assassinato de seu neto varão mais velho, a quem ela dedicou
especial esmero. Era ele personagem central no seu plano de manutenção do poder
familiar, através de quem pretendia ressaltar que o poder estava mudando de
nuances. Na próxima geração, ela entendia que seria a caneta, não o bacamarte
quem ditaria as relações de poder no país. E ela e sua família não estavam
desprevenidos. Ildefonso Augusto de Lacerda Leite foi educado com primor desde
suas primeiras idades e no final do século XIX formou-se médico na então
capital federal, tendo sempre se destacado pela arguta capacidade intelectual e
profundo conhecimento da profissão que abraçou.
Chegou, nos últimos dias do ano de 1900 na pequena
vila de Princesa com a nobre missão de dar combate à peste que já havia
devastado pelo menos metade da população local.
Não imaginava, contudo, que ali também encontraria paradoxalmente o amor
e a morte, numa sina terrível que amalgamaria suas convicções humanitárias e a
construção de uma nova família, com a terrível destruição de tudo isso através
dos sentimentos de ódio, rancor e ciúmes, tudo bem temperado pela vingança,
pela cobiça e pela política.
É essa a história magistralmente narrada por
Cristina Couto em seu livro, A Tragédia
de Princesa – o Caso Ildefonso Augusto de Lacerda Leite.
Num episódio cheio de maliciosidade, juntaram-se o
padre e o mandatário político local para instigar o delegado da cidade a
cometer o bárbaro assassinato do médico, tudo ante o conhecimento prévio do
juiz e promotor oficiantes no sítio dos acontecimentos. A perseguição
estendeu-se à família de sua esposa, cuja casa chegou a ser invadida e por
muito pouco não homicidaram ainda seu sogro. A sogra não resistiu a tamanho
acinte, falecendo poucos dias depois de mal cardíaco. A esposa de Ildefonso, a
jovem, bela e doce Dulce Campos restou viúva, órfã de mãe (razão que a obrigou
a assumir a guarda de toda a irmandade) e prenhe de oito meses de uma menina,
mais tarde batizada por Cecília. Uma tragédia sem igual, mesmo no ambiente de
franca violência que grassou no nordeste brasileiro ao tempo dos coronéis e
cangaceiros.
Não reconheciam, contudo, os algozes do jovem
Ildefonso a robustez de sua avó materna, d. Fideralina, que incontinente
remeteu a Princesa um contingente de mais de cem homens bem armados e mandados,
incumbidos de dar cabo à vida de todos os autores do horrível assassinato.
Segundo a lenda reproduzida por diversas gerações no seio da família Augusto,
de Lavras, os cabras de Fideralina ao aproximar-se de suas vítimas para lhes
ceifar a vida apresentavam o recado dirigido a cada uma delas: “Taqui, que dona
Fideralina mandou”. Ao final do intento, trouxeram como prova do sucesso de sua
empreitada um rosário preenchido com as orelhas das vítimas. Nele, conta-se
ainda na tradição oral familiar, a velha passou a adicionar as orelhas de suas
próximas vítimas. Era nesse rosário, também diz essa mesma fonte, que ela
costumava rezar.
O que é lenda, o que é verdade desse episódio
dantesco restou por mais de cem anos misturado no limbo que separa o mito da
história. Cristina Couto, em seu A
tragédia de Princesa busca soluções ao entrave, tendo para tanto realizado
profunda pesquisa historiográfica ao cabo da qual foi capaz de descobrir fontes
perdidas dessa história, versões diferentes para os acontecimentos, tendo sido
principalmente capaz de vislumbrar o intricado jogo de poder que fez mover as
peças desse complexo xadrez da vida real. Para bem além das pessoas, eram
instituições que se engalfinhavam por detrás dos tiros e facadas que deram cabo
à vida de Ildefonso Augusto de Lacerda Leite. Era a maçonaria quem se pretendia
alvejar; era a ciência laica que se quis apunhalar; eram as luzes e a
racionalidade do positivismo quem foi atingido. Eram a Igreja Católica e o
Estado viciado da oligarquia local os mentores e executores do intento
criminoso.
O processo criminal aberto para a apuração dos
fatos serve como um belo paradigma do que era o poder judiciário daquele tempo.
Ah, mas nada de novo sob o sol, pois não melhoramos quase nada desde então. O
jugo dos detentores do poder garantiu a impunidade dos autores intelectuais e
executores do fato. Com o tradicional escudo dos intricados discursos
jurídicos, não faltaram argumentos para apoiar o desejo do promotor e juiz
oficiantes no feito nas suas odiosas teses de que os mandantes nada sabiam
sobre aquilo que de fato teriam mandado. Como juristas, realmente, não nos
admiramos com a hipocrisia e descarada serenidade com que mascararam a
injustiça que cometeram, quase conseguindo fazer da vítima a responsável
principal de sua própria morte. Em nada mesmo foram esses personagens melhores
que os juízes e promotores da atualidade.
Nenhum deles, contudo, escapou ao julgamento da
história. Através da brilhante obra de Cristina Couto, então, ressurgem os
fatos e personagens marcantes que compuseram a tragédia de Princesa,
recolocando cada um deles no lugar da verdade, por intermédio da qual se restabelece
a justiça das coisas: Ildefonso foi um humanista visionário e corajoso. As
lideranças políticas e eclesiásticas de Princesa energúmenas figuras. O Poder
Judiciário cúmplice da iniquidade. Dulce, a doce Dulce, a figura da
resiliência, que mesmo profundamente marcada pela dor de perder seus entes mais
queridos, tratou de educar os irmãos e propagar o bem durante toda sua longa
vida. E Fideralina Augusto Lima a mulher mais poderosa e inquebrantável de todo
o nordeste brasileiro.
Jorge
Emicles