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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

DISCURSO DE POSSE NO INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI - ICC




                   O Instituto Cultural do Cariri, fundado a 18 de outubro de 1953, é fruto do espírito pioneiro e aguerrido que sempre povoou os rincões do Cariri Cearense desde os seus primeiros colonizadores. Em uma época em que as terras de dentro, ou os sertões, eram destinadas à exploração das riquezas naturais e força de trabalho dos homens, a cultura de estado e todas as atividades típicas da academia ficavam reservadas ao litoral, pois lá foi onde surgiram os primeiros cursos superiores e centros educacionais.
                   O Cariri cearense, ao revés, veio sempre na contramão desse movimento. Aqui, ainda em meados do século XIX fundou-se o Seminário São José, sob cuja sombra floresceu forte sistema educacional, ainda hoje bem presente nestas terras caririenses. O ICC é sem dúvidas, legítimo filho dessa tradição, sonhado que foi para servir de suporte a importantes pesquisas históricas e de outras ordens, revelando uma intelectualidade ativa e disposta a construir legítimo conhecimento. Este espírito sem dúvida se faz representar nas impolutas figuras de J. de Figueiredo Filho e Irineu Pinheiro. Tão alta é a produção acadêmica destes ilustres fundadores do ICC, que simplesmente não é possível tratar da história do Ceará, muito notadamente da do Cariri, sem embrenhar-se na importante contribuição destas relevantes figuras. Naturalmente, há dezenas de outras destacadas contribuições acadêmicas, oriundas dos mais diversos saberes, saídas das fileiras do ICC, o que por si só revela a indiscutível importância deste Instituto. Já são mais de meio século de vida, alternando fases de profusa produção e outras de crise, como é dado a qualquer instituição tão longeva, muito especialmente aquelas cujos objetivos são voltados para fins altruístas e culturais.
                   Já estamos na terceira geração de acadêmicos, a dar continuidade ao legado plantado pelos seus pioneiros e visionários fundadores. O Cariri modificou-se profundamente nesses últimos sessenta e quatro anos. De lá para cá, testemunhou-se a consolidação da vizinha Juazeiro como o centro da grande metrópole que se tornou a região, cuja força magnetizante, espiritual e política de seu patriarca, fez atrair para seu território as vocações locais inicialmente desenvolvidas nas demais comunas, com especial destaque ao Crato, primitiva locomotiva regional, como tão propriamente assenta a obra do antropólogo Darcy Ribeiro, dentre outras referências.
                   Repita-se, contudo, que os tempos são outros E é dever da rica intelectualidade assentada nas mais de cem cadeiras do Instituto Cultural do Cariri abrir suas profícuas inteligências à necessidade de ampliação das interações culturais com toda a região. É na capacidade desta novel geração de acadêmicos, tão bem representada na figura de seu jovem e ativo presidente, Heitor Feitosa, que se assenta a esperança de renovação e refortalecimento da histórica missão do ICC: servir de polo do conhecimento e alicerce para independentes pesquisas em todas as áreas do saber. Falar isso, em absoluto não é negar a imprescindibilidade do legado deixado por todos os que já passaram pela casa, pois se hoje essa geração pode ver mais longe, certamente é porque está assentada nos robustos ombros de seus antecessores. Olhar para a frente, mas honrando sempre o legado do passado, é essa, a nosso parecer, a impostergável missão do Instituto Cultural do Cariri de hoje.
                   Assumirmos uma cadeira nesta histórica instituição, que melhor que muitas representa o espírito altivo, guerreiro e intelectual da cultura caririense, é nos apoderar simbolicamente de todo esse legado tradicional, rico e profundo. Ao mesmo tempo, traduz o dever de lutar para sua manutenção e engrandecimento. Mais ainda, o peso dessa responsabilidade se robustece ao nos depararmos com a grandeza intelectual e moral dos que nos precederam na Cadeira 25 da sessão de ciências, cujo paraninfo é ninguém menos que o marcante Luiz de Borba Maranhão.
                   Luiz de Borba, nascido aos 25 de outubro de 1910, em João Pessoa, Paraíba, de firme formação intelectual desde sua mais tenra idade, findou por formar-se em direito pela Faculdade de Direito do Ceará, sediada na capital alencarina. O amor o conduziu ao Crato, através dos calores da jovem e bela Artemyse, filha de importante família local, e com quem casou-se o jovem Luiz para toda a vida, por longevos sessenta e dois anos. Com ela, teve um único filho, João Gomes de Borba Maranhão. Exerceu vários cargos públicos, mas destacou-se mesmo na advocacia, a quem emprestou o brilho de sua sagaz inteligência por mais de cinquenta anos. Era conhecido por sua oratória empolgante e seu profundo conhecimento da ciência jurídica. Chegou mesmo a deixar alguns escritos jurídicos, na forma de cartilhas ainda hoje preservados por sua família, material de que se utilizaram por certo, as centenas de alunos que teve na Faculdade de Direito do Crato. Eram famosas suas atuações no Tribunal do Júri, onde chegou a travar empolgantes e calorosos debates com outro baluarte desta Casa, Raimundo de Oliveira Borges.
                   De toda a sua atividade advocatícia, o que ainda mais se destacou foi seu compromisso com as causas da pobreza. Era um defensor público de fato, abraçando as liças de todos os pobres que lhe procuravam, dedicando-se sempre com esmero na sua defesa. Consta do relato de seus familiares que mais de oitenta por cento de sua atuação era a favor da pobreza. Isso, em um tempo em que a deficiência da tecnologia obrigava a fazer longas viagens no lombo de animais e a produzir peças nas velhas e quase esquecidas máquinas de datilografia. Ainda assim, até o fim foi Luiz de Borba incansável defensor dos seus pobres.
                   Nós mesmo guardamos em memória a figura de um senhor já bem avançado na idade, sentado em um birô no antigo escritório de prática forense da URCA, fazendo incansavelmente atendimento a tantos quanto o procuravam, tendo a sua frente papeis para anotações e um enorme e fundo cinzeiro, onde depositava os restos dos incontáveis cigarros que tragava um em seguida ao outro. Aquele velho senhor alto, porte elegante, firmeza no olhar, que incansavelmente atendia com carinho a tantos quanto o procuravam, nunca lhes repreendendo por suas postulações e sempre com ar paternal era o dr. Luiz de Borba Maranhão, já combalido por tantos anos de lutas, mas ainda incansável na defesa dos pobres de todas as cores.
                   Com o mesmo esmero, dedicou-se ainda a fundar escolas, sabedor que era da importância da educação na transformação das pessoas. Foi graças a sua dedicação que o Crato ganhou o hoje Colégio Estadual Wilson Gonçalves e a antiga Faculdade de Direito, inicialmente uma autarquia municipal, atualmente encampada aos cursos da Universidade Regional do Cariri. Quantos jovens não tiveram a oportunidade de melhorar sua formação e mesmo angariar uma profissão graças a estes duas importantes escolas de saber da nossa região?
                   Isso só bastaria para fazer de Luiz de Borba imortal merecedor do honor de vir a ser patrono de uma cadeira no ICC. Mas também foi homem de dignidade superior, marido e pai exemplares. Uma das grandes intelectualidades que ajudam a engrandecer o nome do Cariri Cearense.
                   O derradeiro ocupante da cadeira aqui outra vez empossada, foi o destacado comerciante e homem público em Crato, José de Paula Bantim. Nascido em 1930, no Município de Santana do Cariri, logo aos dez anos vem estabelecer-se em Crato, sob os cuidados da bondosa d. Artemyse Gomes de Matos, a mesma companheira de toda a vida de Luiz de Borba Maranhão, de quem Bantim era afilhado. Com ela trabalhou a aprendeu sobre a arte dos boticários. Estudou na Escola Técnica do Comércio de Crato, tendo em 1949 se formado em contabilidade e economia.
                   Já formado, foi trabalhar na firma B. Bezerra e Cia., onde fez profícua carreira, tendo iniciado o labor como simples balconista e chegado à condição de sócio da empresa, antes tendo exercido as funções de gerente e contador. Ali permaneceu até a aposentadoria. Mesmo aposentado, seguiu laborando, agora como vendedor ambulante, de porta em porta. Tão exitosa foi essa segunda carreira, que chegou a abrir comércio varejista (Bantim Variedades), mantendo referido estabelecimento por longos anos.
                   Mesmo aposentado, mantinha uma rotina intensa e dinâmica, sendo assíduo frequentador de diversos logradouros públicos da cultura cratense, como o mercado, a praça Siqueira Campos, a bodega do Juarezinho. Era assíduo praticante da fé, sendo partícipe do terço dos homens e de diversas outras atividades patrocinadas pela igreja católica local. Foi cantor solo do coral da SCACC.
                   Da mesma forma, teve destacada vida pública, tanto na política quando em diversas outras atividades da sociedade local. Foi sua sociabilidade que o conduziu naturalmente aos diversos cargos e funções que ocupou, tendo sido presidente do Crato Tênis Clube, participado da diretoria da União dos Estudantes do Crato, presidente da Liga de Futebol de Campo de Crato e da Liga de Futebol de Salão, também de Crato; presidente do Sport Clube do Crato; presidente do Sindicato dos Comerciários do Crato.
                   Iniciou vida partidária nas fileiras do PTB, de Getúlio Vargas, na década de 1950. Foi eleito vereador por cinco legislaturas, tendo ocupado a presidência da Câmara de Vereadores por duas vezes. Foi vice-Prefeito do Crato na gestão de Humberto Macário de Brito. No governo de Ariovaldo Carvalho, produziu-se crônica folclórica a seu respeito. Na ocasião, José de Paula Bantim era presidente da Câmara de Vereadores, estando vago o cargo de vice-Prefeito. Por motivo de ausência temporária do Chefe do Executivo, assumiu interinamente a prefeitura municipal, condição na qual recebeu em audiência o então presidente da Junta Militar local. O visitante então externou a necessidade de reunir-se conjuntamente com o Prefeito Municipal, o Vice-Prefeito e o Presidente da Câmara com a finalidade de tratar de assuntos relacionados a seu mister, ao que de pronto responde Bantim: Pois estamos aqui...
                   No exercício interino do cargo de Prefeito, sancionou a lei municipal que criou a chamada semana inglesa em Crato, reconhecida como uma grande conquista dos comerciários. Segundo seu genro e confesso admirador, Érico Felício, se tratou de “um grande político, um grande católico e um grande desportista”. Era um “ser humano sem igual”, nas palavras de seu segundo genro.
                   Casado com Maria Risalva Bantim, teve sete filhos: José Ricardo Bantim (Cacá); Paulo de Tarso Bantim (Rato); Marco Antonio Bantim (Papagaio); João Maurício Bantim (Qualhada); Maria Elizabet Bantim (Bet); Verônica Maria Bantim (Veca); Flávio Henrique Bantim (Cajuí). Segundo consta da memória familiar, era ele mesmo que apunha os apelidos dos filhos. Dizia com orgulho que sua maior riqueza era a sua família, tendo educado com especial esmero todos os filhos. Faleceu aos 13 de maio de 2015, dia de Nossa Senhora de Fátima, de quem era devoto.
                   A grande marca que deixou para a posteridade foi a sua espiritualidade diante da vida, seu bom humor diante dos problemas, sua fé inabalável e seu amor extremo à família, quem lhe guarda a memória com ternura, amor e zelo.

                   Tenho dito!

Jorge Emicles

domingo, 18 de fevereiro de 2018

VALSA DOS ADEUSES
POESIA EM PROSA



                   Dois à frente, um para trás. Assim como a dança, segue a vida, avante mas contornando e retrocedendo. O que já foi será, e ainda melhor. O que já era, nunca poderá ter sido.
                   Dois à frente, um para trás. Dois à trás, nenhum adiante. Diferente da dança, a vida tem um ritmo próprio, em aparência fora de compasso, mas que segue o rigor absoluto da perfeição cósmica.
                   Dois à frente, pausa. A vida, infinita enquanto dádiva divina, dá pausas sempre, às vezes provisórias, outras quase definitivas. Enquanto uns se vão, outros retornam e tantos paralisam. Mas a inércia não é absoluta, porque absoluto mesmo é a eterna mutação de tudo que há na matéria. Tudo passa, afinal.
                   Dois atrás, dois atrás, dois atrás. Há o tempo de más colheitas, sequência de péssimas semeaduras. Mas é que temos o direito de escolher os valores de que gostamos, as ideias que veneramos e as pessoas a quem amamos. Colher espinhos plantando flores é sempre mais útil e digno, pois é promessa para a próxima seara.
                   Dois adiante, um à frente, dois adiante. Quando se azeita a máquina da vida e se dilapida dela todas as coisas inúteis e supérfluas, sobra o objetivo maior da existência, que é a busca do caminho de volta para onde viemos. Um lugar esquecido, mas não desconhecido dos homens. Um lugar inacessível, perigoso e distante, mas ao mesmo tempo tão próximo, porque escondido está no âmago mais profundo de cada um de nós. Homem, conhece a ti mesmo.
                   A cada passo que damos, um burburinho de renovação se forma. É tudo novo, sempre. A vida se renova, destroça e refaz. Incessantemente num perpassar eterno das vibrações cósmicas. Do que não nos damos conta de verdade, é que cada novo deslocamento é a despedida de todos os que o antecederam.
                   Para que o novo venha, é imprescindível a despedida do velho que o alicerça, fundamenta ou, talvez, o antagoniza. É de adeuses que vivemos.


Jorge Emicles

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A RAZÃO DA CIÊNCIA


                   A racionalidade nos é trazida como talvez o maior dos legados da modernidade. Fruto direto das luzes do iluminismo, o ser racional parte da premissa básica cartesiana de que é preciso duvidar de tudo. E se não tomássemos como a concreta realidade tudo a nossa volta, demandando efetiva prova de que as coisas todas ao nosso derredor efetivamente existem como as pretendemos? Que sobraria dessa excêntrica experimentação? Para Descartes, a única evidência sobrante seria o fato mesmo do pensamento, donde saca a sua máxima, repetida hoje como se um mantra sagrado da verdade científica: se penso, logo existo.
                   Mas e aquele ser de outro planeta, alocado a milhares e milhares de anos luz de nós, em uma esfera cósmica desconhecido pela ciência? Nós o podemos imaginar em pensamento, a fazer planos de visitar à excêntrica humanidade terrestre, da qual é parente distante. Nós o podemos pensar, tanto que somos capazes de o descrever, reportá-lo em ainda mais minuciosos detalhes. Será que ele existe, uma vez que é pensado?
                   Todo o legado da ciência, ao mesmo tempo em que se prestou a destruir convenientes inverdades que sustentavam a mitológica e equivocada visão da hierarquia da igreja oficial, é sedimentada na premissa básica da racionalidade. Para que se encontre uma lei da natureza é necessário aplicar um método adequado e repetir sua aplicação à exaustão. Quando determinados acontecimentos se repetirem invariavelmente todas as vezes que o método for aplicado, então teremos identificada uma dessas leis. Racionalmente, sabemos que em todas as vezes que soltarmos um objeto no ar ele necessariamente cairá, sem exceção. É, pois, a repetição desse fenômeno que erige a lei da gravidade como uma verdade para a nossa razão. Não podemos dizer que conhecemos a lei propriamente, mas os seus efeitos. As razões da gravidade, como por exemplo o influxo da interação entre o tempo e o espaço, é ainda uma teoria não definitivamente confirmada enquanto uma verdade científica.
                   Contudo, na mesma medida em que foi capaz de destruir os dogmas da religião, arrogantemente às vezes tentando destruí-la, a ciência cuidou de construir os seus próprios. A racionalidade e o método são os mais importantes deles, haja vista não serem capazes de descortinar em toda sua infinita variedade todo o véu da verdade. A razão possui um limite inexorável na concretude da realidade material, sendo absolutamente incapaz de avançar para além dos seus marcos. Há de se admitir que existe uma enorme variável de sentidos e coisas subjetivas e imateriais absolutamente inacessíveis à pureza do pensamento racional. A propósito, poderíamos bem dizer que a razão em si mesma é pura irracionalidade, porque como tudo se poder construir a partir do quase nada das conexões cerebrais?
                   O método, de sua vez, vem sendo quebrado pelas próprias letras da ciência. Francamente, a partir do final do século passado, vem sendo erigido o ideal de um novo paradigma do conhecimento, calcado agora não na racionalidade do método, mas na interação entre os objetos e sujeitos da compreensão, conhecido como o paradigma linguístico. Agora, o objeto não é mais em si mesmo. A compreensão dele será possível somente a partir das relações estabelecidas entre aquilo que se investiga e o sujeito investigante. Conforme um ou outro se modifiquem, o resultado necessariamente será alterado. Caiu por terra o ideal da neutralidade do método e do distanciamento quase indiferente que deveria ser estabelecido entre o investigador e seu objeto. Pensadores da elevada qualidade de Gadamer e Heidegger são os pioneiros dessa novel e importante visão de mundo, que a nós parece abrir caminhos novos e promissores especialmente para as diversas ciências sociais.
                   A própria ciência como portadora da verdade absoluta, em substituição àquela outra carregada por séculos pelas religiões, é tão perigosa quanto. Da mesma forma que tivemos a opressão devassa da inquisição, que o tanto que pôde negou a evidência de que nossa Terra não era nem quarada, nem o centro do mundo, também a ciência oprime as indeléveis evidências da existência de um universo subjetivo e imaterial, comandado por leis insondáveis à ofuscada luz da racionalidade. O que existe, afinal, é a dureza do concreto, a certeza da realidade, ou a subjetividade do mundo idílico e quase invisível do que a nós parece onírico?
                   Não respondam. Reflitam primeiramente.


Jorge Emicles

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

CAMINHOS DA SALVAÇÃO


                   Apesar de ser chamada por ciência, a razão é uma das coisas menos presente na política. Principalmente, se verificada a partir das milhares de milhões de postagens encontradas nas diversas redes sociais, marca tão indelével da presente modernidade que nos consome às vezes a própria condição humana.
                   Por trás de cada verdade apresentada com a contundência das imagens e frases de efeito, é forçoso admitir, se escondem as velhas e arraigadas ideologias de sempre. Qual deverá ser o papel do Estado, máximo e prestador de serviços os mais variados, o responsável último pela felicidade geral da nação e particular de cada cidadão? Mínimo, garantidor da ordem, basicamente, e pela sua própria pequenez, incapacitado de surripiar as riquezas da nação através da corrupção e tolhido largamente na condição de perpetrar arbítrios das mais sutis naturezas?
                   O que quase ninguém percebe é que, por traz dos dois caminhos centrais, quase desvelado, mas silente sempre, nos depararemos com o velho e sórdido Estado. Sempre ele nos amaldiçoará com sua tez de Leviatã, que consome os corajosos navegantes que ousem ir além do Cabo Bojador. Será mesmo que não existirá um terceiro caminho, construído com disciplina e ordem, mas também com amor, respeito e igualdade? Humildemente, acreditamos que sim.
                   Todas essas míopes visões do mundo se refletem sem titubeio nas análises do assunto do momento: Lula poderá ou não vir a ser candidato à Presidência da República no corrente ano? Para os seus asseclas, há uma sórdida conspiração política construída contra o petista, pois as elites não o perdoarão jamais por haver alimentado os pobres, emprestando-lhes uma dignidade que, dizem, jamais tiveram. Para seus adversários, contudo, a corrupção grassou em seu governo, alimentando uma perigosa máquina partidária que pretendia se manter eternamente no poder às custas do sofrido erário. Foram as suas irresponsáveis concessões populistas, aduzem, que teriam conduzido o país à tenebrosa crise do presente.
                   Mas e se todos esses pontos de vista estiverem certos? E se o mundo inteiro estiver errado? Será mesmo que a pobreza já teve algum dia tanta dignidade quanto dizem? Mas, afinal, a corrupção, a irresponsabilidade fiscal e a falta de compromisso sério com a economia nunca antes haviam sido praticadas em nosso país? Lula não inventou a corrupção, mas seu governo a praticou. E certamente já tivemos governos bem piores e mais populistas que o seu. Será mesmo que ninguém mais recorda da sórdida campanha da mídia, liderada por Carlos Lacerda, contra o decadente governos Vargas do ano de 1954? Todos mesmo haverão esquecido dos crimes cometidos nos idos da ditadura militar brasileira? Haverá cristão que ainda recorde do banditismo que grassou aqui mesmo, no Cariri, há pouco mais de cem anos, nos decantados e romanceados tempos dos coronéis?
                   O populismo, a demagogia, o arbítrio e a hipocrisia são características da humanidade, não exclusividade de certos, determinados e bem especificados homens públicos.
                   O combate à corrupção deverá ser luta perene dos cidadãos honestos. Quimera dos homens de bem. Mas a forma com que se a combate também deverá ser séria, pautada na ética, alicerçada nos valores universais do bem, da justiça e da verdade. Tudo sempre com amor fraternal. Nesse sentido, então, verificamos que à guisa de punir os maus feitos dos políticos desonestos, não poucas autoridades constituídas praticam atos abusivos, desrespeitando direitos fundamentais e comezinhos, daqueles essenciais mesmo à própria preservação da dignidade humana. Tantas vezes, em nome de uma hipócrita e enganosa justiça, desobedecem até mesmo a letra escorreita, clara e inequívoca da lei. Mas, perguntamos, será mesmo possível fazer justiça sem um processo justo, democrático, galgado nos valores republicanos, que por isso respeite a essência do direito ao contraditório, a possibilidade de através da amplitude de defesa se convencer o julgador das razões de atos, da veracidade de fatos?
                   A autoridade pública que desrespeita os direitos fundamentais não estará ela própria a praticar ilícito, que tem cheiro de crime de abuso de poder? E, por esse praticado, não terá tanto quanto o sentenciado, cometido ato desonesto, uma sórdida forma de corrupção?
                   É preciso cuidado com tudo isso.
                   Mas nem sabemos bem para que escrevemos essas palavras, perdidas que restarão no congestionado tráfico de dados da infinita internet. Ainda assim, mesmo quase sabendo da inutilidade delas, os dedos seguem em frenético ato de digitar. Talvez Victor Hugo estivesse mesmo certo, pois eu devo estar cego, porque eles são surdos e eu continuo falando...


Jorge Emicles