A
PEDAGOGA DESEDUCADA
Após o passamento do famoso boticário radicado na conhecida
cidade de Matozinho (cuja localização geográfica é tema de dezenas de teses e
debates acadêmicos e incertezas mais rumorosas ainda) tivemos acesso a importante
acervo documental sobre a história daquele pitoresco lugar. Trata-se dos
arquivos pessoais de José de F., querido proprietário da única farmácia
existente naquela praça, mas cuja paixão verdadeira, se sabe, era pela
história. Era um competente, letrado e organizado positivista, que mesmo
apegado aos rigores das fontes documentais de sua escola exegética,
copiosamente anotava as efemérides de Matozinho em dezenas de cadernos, todos
de capa dura e vermelha e rigorosamente numerados e arquivados, onde positivava
os fatos da pequena história da cidade, constituída dos acontecimentos
comezinhos e cotidianos, muitos aparentemente irrelevantes, mas outros da mais vibrante
importância histórica.
Devidamente copilados, classificados, fichados e
catalogados todos os ditos caderninhos vermelhos, verificou se tratar de rica,
rigorosa e vibrante fonte da história local, a competir mesmo, em nível de
qualidade e verossimilhança das informações, com as já conhecidas crônicas de
José Flávio Vieira, radicado em Crato, mas que teve longa e profícua estadia na
cidadezinha, tempo em que recolheu suas conhecidas narrativas, publicadas e
premiadas mundo afora. Se a notoriedade de Matozinho é devida a José Flávio, o
exame amiudado da antropologia local é sem dúvidas obra de José de F.
Contam-se por centenas o número de narrativas de
episódios interessantes da localidade, de onde, desde a letra miúda e
organizada do farmacêutico, podemos tirar bem mais que passagens da história
local, mas na verdade a própria essência da natureza humana. Segundo observamos
de uma nota de fim de página esmerosamente escrita pela nossa citada fonte, a maldade e a bondade dos homens as
encontramos em todos os rincões do mundo; seja nos grandes, seja nos pequenos
lugares; seja para fora, seja para dentro do homem. Somos, dizia ele, bem mais parecidos todos em nossos defeitos
e acertos do que jamais seremos capazes de confessar.
Seria necessário um volumoso tomo para narrar,
interpretar e transmitir nossas impressões pessoais a respeito do precioso
achado, cousa que pretendemos desenvolver nos anos vindouros, pois por zelo de
nosso ofício preliminarmente a qualquer publicação realizaremos um minucioso e
incansável trabalho de pesquisa e checagem das fontes, porque muitos dos
episódios citados revelam ardis e práticas nem um pouco republicanas, a revelar
a sordidez e o malogro dos sentimentos humanos.
Um dos episódios já checados e confirmados pelo testemunho
de dois personagens de notório conhecimento da fofoca cotidiana do local, cujos
depoimentos foram por nós gravados e devidamente arquivados para futuras consultas
e comprovações da ciência, se trata da eleição para a diretoria da Escola de
Segundo Grau Maior de Matozinho, processo conturbado, cheio de firulas e
muzenzas, a competir somente com a própria eleição municipal, que naturalmente
ganha em importância e desmantelo por envolver recursos orçamentários de maior
porte.
Àquele ano apresentou-se como candidatura de
oposição o nome da social socialista revolucionária anarquista Maria Zueira,
famosa pedagoga local, mulher de fibra e vibrante discurso, que apregoava aos
quatro cantos a necessidade de conscientizar a massa disforme do proletariado
local, como único meio de elevar ao poder a intelectualidade capaz de fazer a
transformação necessária às mudanças impostergáveis à evolução de toda a raça
humana. Suas ideias, dizia, eram provenientes da mais legítima e corroborada
fonte socialista existente, tiradas que eram diretamente do oracular livro
inspirado de seu autor predileto, o engenheiro húngaro Rich Troit. Após longos,
detalhados e abundantes discursos, todos muito bem elaborados e prenhados de
belas e indecifráveis palavras, próprias dos esclarecedores métodos pedagógicos
que praticava, ela a todos acalmava com a tradução direta e simples que resumia
seu pomposo discurso: Votem em mim, que eu resolvo o problema de todos. Para
garantir a fidelidade de seu vasto eleitorado, possuía um caderno de espiral,
no qual grafava todos os favores concedidos e pedidos, pedidos ou somente
imaginados, ao lado do nome do respectivo favorecido.
Para ela, a rigorosa aplicação do método de
Descartes conduzia à inexorável certeza de que todos os problemas da Escola de
Segundo Grau Maior de Matozinho poderiam ser facilmente resolvidos. Bastava
determinar a realização das obras e ações indispensáveis. O alunado da escola
fora acometido de um surto de gripe? Pois que fosse construído um hospital
escolar, pronto a atender pelas vinte e quatro horas do dia todos os enfermos e
seus familiares, munido de vacinas atualizadas e médicos do mais alto gabarito,
prontamente importados da vizinha cidade. Os alunos queixavam-se da falta de
professores? Então que fossem imediatamente contratados três por turma, a fim
de garantir até as prováveis e possíveis licenças a serem gozadas, além, é
claro, de assegurar os votos que lhe garantiriam a futura reeleição. Os
equipamentos da escola estavam desatualizados? Pois que de pronto se fosse até
a venda de Zé Pé Preto comprar tudo novo, brilhante e do melhor. O dinheiro
para tantas aquisições? Disso, o livro de seu velho mestre não tratava, pois
assuntos de finanças são coisas muito pequenas diante da genialidade de seu impecável
mentor. Mas que todos ficassem certos que o método de Descartes não falhara
jamais em toda a história da humanidade, dizia. Logo, isso seria problema de
menor monta. Era só votar em Maria Zueira para que a felicidade do mundo inteiro
recaísse sobre os ombros do eleitor.
Pela situação foi lançada a candidatura de Aparício
Vieira, moço tímido, de bons modos e extremamente modesto no expressar-se, que
ao invés do discurso profético de sua opositora preferia dizer com parcimônia e
método que os problemas somente se resolveriam com disciplina e trabalho; que
para cada gasto deveria haver uma receita correspondente e que, considerando os
parcos recursos enviados mensalmente pelo erário do Município os avanços seriam
graduais, mas desde que planejados, firmes.
Pela fofoca instalada no centro da campanha,
coordenada pela conhecidíssima Siderina, a eleição seria barbada. A pedagoga
Maria falava melhor, mais bonito e com mais raiva que o miudinho situacionista.
Não tinha pra ninguém, dizia, pois eleição ganha quem mente melhor. Maria
Zueira que mandasse logo engomar o vestido vermelho da posse. O auge de toda a
munganga aconteceu na véspera do pleito, quando no centro do campinho de areia
da escola se realizou o grande debate. Maria Zueira nunca gritou tanto, chamou
tantos palavrões e jamais esteve tão certa da vitória quanto naquele dia. Calmo
e contundente, Aparício apenas enfatizava que o futuro estava no planejamento e
na responsabilidade de ações, mas a cada palavra que dizia recebia sonora vaia
da claque plantada pela campanha oposicionista na beira do palco, com o
específico propósito de desmoralizá-lo e não o deixar falar. Tática de campanha
absolutamente legítima e reconhecida na obra de Rich Troit.
Os estratagemas da social socialista fizeram calar
a plateia de ouvintes, que muda assistia a algazarra de seus militantes,
gritando palavras de ordem e enfatizando que somente pelo inovador método
pedagógico de sua líder poderiam revolucionar a educação de Matozinho. Mas esse
silêncio da audiência custou caro à oposicionista.
No dia da votação, persistiu em todos os sítios de
votação o mesmo sepulcral silêncio dos eleitores, à exceção dos militantes
socialistas que seguiam na tática do barulho, do enfrentamento e da
intimidação. Eleição se ganha no gripo; eleição é uma guerra e todo opositor
deve ser visto como um inimigo, profetizava o propalado livro de cabeceira da
Zueira.
O resultado é que, apurados os votos, Aparício ganhou
de lavada, fazendo Maria Zueira dirigir-se à rádio da cidade, indignada, para
fazer um discurso de denúncia, pois todos os eleitores ou foram comprados na
calada da madrugada pelo seu opositor, tão acostumado que era a práticas deste
jaez, ou mesmo hipnotizados, pois lhe causou especial estranheza o silêncio contumaz
de todos eles durante todo o dia. José de F., entretanto, conclui que o grito intimida, mas o silêncio da cabina
de votação liberta.
Jorge
Emicles
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