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terça-feira, 11 de agosto de 2015

A PEDAGOGA DESEDUCADA

                   Após o passamento do famoso boticário radicado na conhecida cidade de Matozinho (cuja localização geográfica é tema de dezenas de teses e debates acadêmicos e incertezas mais rumorosas ainda) tivemos acesso a importante acervo documental sobre a história daquele pitoresco lugar. Trata-se dos arquivos pessoais de José de F., querido proprietário da única farmácia existente naquela praça, mas cuja paixão verdadeira, se sabe, era pela história. Era um competente, letrado e organizado positivista, que mesmo apegado aos rigores das fontes documentais de sua escola exegética, copiosamente anotava as efemérides de Matozinho em dezenas de cadernos, todos de capa dura e vermelha e rigorosamente numerados e arquivados, onde positivava os fatos da pequena história da cidade, constituída dos acontecimentos comezinhos e cotidianos, muitos aparentemente irrelevantes, mas outros da mais vibrante importância histórica.
                   Devidamente copilados, classificados, fichados e catalogados todos os ditos caderninhos vermelhos, verificou se tratar de rica, rigorosa e vibrante fonte da história local, a competir mesmo, em nível de qualidade e verossimilhança das informações, com as já conhecidas crônicas de José Flávio Vieira, radicado em Crato, mas que teve longa e profícua estadia na cidadezinha, tempo em que recolheu suas conhecidas narrativas, publicadas e premiadas mundo afora. Se a notoriedade de Matozinho é devida a José Flávio, o exame amiudado da antropologia local é sem dúvidas obra de José de F.
                   Contam-se por centenas o número de narrativas de episódios interessantes da localidade, de onde, desde a letra miúda e organizada do farmacêutico, podemos tirar bem mais que passagens da história local, mas na verdade a própria essência da natureza humana. Segundo observamos de uma nota de fim de página esmerosamente escrita pela nossa citada fonte, a maldade e a bondade dos homens as encontramos em todos os rincões do mundo; seja nos grandes, seja nos pequenos lugares; seja para fora, seja para dentro do homem. Somos, dizia ele, bem mais parecidos todos em nossos defeitos e acertos do que jamais seremos capazes de confessar.
                   Seria necessário um volumoso tomo para narrar, interpretar e transmitir nossas impressões pessoais a respeito do precioso achado, cousa que pretendemos desenvolver nos anos vindouros, pois por zelo de nosso ofício preliminarmente a qualquer publicação realizaremos um minucioso e incansável trabalho de pesquisa e checagem das fontes, porque muitos dos episódios citados revelam ardis e práticas nem um pouco republicanas, a revelar a sordidez e o malogro dos sentimentos humanos.
                   Um dos episódios já checados e confirmados pelo testemunho de dois personagens de notório conhecimento da fofoca cotidiana do local, cujos depoimentos foram por nós gravados e devidamente arquivados para futuras consultas e comprovações da ciência, se trata da eleição para a diretoria da Escola de Segundo Grau Maior de Matozinho, processo conturbado, cheio de firulas e muzenzas, a competir somente com a própria eleição municipal, que naturalmente ganha em importância e desmantelo por envolver recursos orçamentários de maior porte.
                   Àquele ano apresentou-se como candidatura de oposição o nome da social socialista revolucionária anarquista Maria Zueira, famosa pedagoga local, mulher de fibra e vibrante discurso, que apregoava aos quatro cantos a necessidade de conscientizar a massa disforme do proletariado local, como único meio de elevar ao poder a intelectualidade capaz de fazer a transformação necessária às mudanças impostergáveis à evolução de toda a raça humana. Suas ideias, dizia, eram provenientes da mais legítima e corroborada fonte socialista existente, tiradas que eram diretamente do oracular livro inspirado de seu autor predileto, o engenheiro húngaro Rich Troit. Após longos, detalhados e abundantes discursos, todos muito bem elaborados e prenhados de belas e indecifráveis palavras, próprias dos esclarecedores métodos pedagógicos que praticava, ela a todos acalmava com a tradução direta e simples que resumia seu pomposo discurso: Votem em mim, que eu resolvo o problema de todos. Para garantir a fidelidade de seu vasto eleitorado, possuía um caderno de espiral, no qual grafava todos os favores concedidos e pedidos, pedidos ou somente imaginados, ao lado do nome do respectivo favorecido.
                   Para ela, a rigorosa aplicação do método de Descartes conduzia à inexorável certeza de que todos os problemas da Escola de Segundo Grau Maior de Matozinho poderiam ser facilmente resolvidos. Bastava determinar a realização das obras e ações indispensáveis. O alunado da escola fora acometido de um surto de gripe? Pois que fosse construído um hospital escolar, pronto a atender pelas vinte e quatro horas do dia todos os enfermos e seus familiares, munido de vacinas atualizadas e médicos do mais alto gabarito, prontamente importados da vizinha cidade. Os alunos queixavam-se da falta de professores? Então que fossem imediatamente contratados três por turma, a fim de garantir até as prováveis e possíveis licenças a serem gozadas, além, é claro, de assegurar os votos que lhe garantiriam a futura reeleição. Os equipamentos da escola estavam desatualizados? Pois que de pronto se fosse até a venda de Zé Pé Preto comprar tudo novo, brilhante e do melhor. O dinheiro para tantas aquisições? Disso, o livro de seu velho mestre não tratava, pois assuntos de finanças são coisas muito pequenas diante da genialidade de seu impecável mentor. Mas que todos ficassem certos que o método de Descartes não falhara jamais em toda a história da humanidade, dizia. Logo, isso seria problema de menor monta. Era só votar em Maria Zueira para que a felicidade do mundo inteiro recaísse sobre os ombros do eleitor.
                   Pela situação foi lançada a candidatura de Aparício Vieira, moço tímido, de bons modos e extremamente modesto no expressar-se, que ao invés do discurso profético de sua opositora preferia dizer com parcimônia e método que os problemas somente se resolveriam com disciplina e trabalho; que para cada gasto deveria haver uma receita correspondente e que, considerando os parcos recursos enviados mensalmente pelo erário do Município os avanços seriam graduais, mas desde que planejados, firmes.
                   Pela fofoca instalada no centro da campanha, coordenada pela conhecidíssima Siderina, a eleição seria barbada. A pedagoga Maria falava melhor, mais bonito e com mais raiva que o miudinho situacionista. Não tinha pra ninguém, dizia, pois eleição ganha quem mente melhor. Maria Zueira que mandasse logo engomar o vestido vermelho da posse. O auge de toda a munganga aconteceu na véspera do pleito, quando no centro do campinho de areia da escola se realizou o grande debate. Maria Zueira nunca gritou tanto, chamou tantos palavrões e jamais esteve tão certa da vitória quanto naquele dia. Calmo e contundente, Aparício apenas enfatizava que o futuro estava no planejamento e na responsabilidade de ações, mas a cada palavra que dizia recebia sonora vaia da claque plantada pela campanha oposicionista na beira do palco, com o específico propósito de desmoralizá-lo e não o deixar falar. Tática de campanha absolutamente legítima e reconhecida na obra de Rich Troit.
                   Os estratagemas da social socialista fizeram calar a plateia de ouvintes, que muda assistia a algazarra de seus militantes, gritando palavras de ordem e enfatizando que somente pelo inovador método pedagógico de sua líder poderiam revolucionar a educação de Matozinho. Mas esse silêncio da audiência custou caro à oposicionista.
                   No dia da votação, persistiu em todos os sítios de votação o mesmo sepulcral silêncio dos eleitores, à exceção dos militantes socialistas que seguiam na tática do barulho, do enfrentamento e da intimidação. Eleição se ganha no gripo; eleição é uma guerra e todo opositor deve ser visto como um inimigo, profetizava o propalado livro de cabeceira da Zueira.
                   O resultado é que, apurados os votos, Aparício ganhou de lavada, fazendo Maria Zueira dirigir-se à rádio da cidade, indignada, para fazer um discurso de denúncia, pois todos os eleitores ou foram comprados na calada da madrugada pelo seu opositor, tão acostumado que era a práticas deste jaez, ou mesmo hipnotizados, pois lhe causou especial estranheza o silêncio contumaz de todos eles durante todo o dia. José de F., entretanto, conclui que o grito intimida, mas o silêncio da cabina de votação liberta.


Jorge Emicles

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