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sábado, 2 de maio de 2020


LIBELO



                   Ainda enquanto Sérgio Moro encontrava-se nas dependências da Polícia Federal de Curitiba, prestando depoimento delatório a respeito dos motivos de sua ruidosa saída da pasta da Justiça foi divulgada, certamente não por acaso, uma pesquisa de opinião, chancelada pelo Instituto Paraná Pesquisas, também não coincidentemente com sede em Curitiba, na qual o coloca em segundo lugar na corrida presidencial de 2022. Em primeiro lugar nas intenções de voto, segue firme o capitão Bolsonaro.
                   O Instituto em questão não é dos mais tradicionais em pesquisas nacionais, embora já tenha bons anos de estrada. O tempo até a data prevista para as eleições também é gigante, fazendo presumir que o cenário da época poderá ser totalmente diferente daquele mapeado pelo instante de uma pesquisa eleitoral.  Se Lula (atualmente inelegível porque, mesmo em liberdade, segue condenado em segunda instância por corrupção), então o petista apareceria logo à frente de Moro nas intenções de voto. O Nordeste segue como o valente centro da resistência. Os próprios números podem estar distorcidos, o que afinal de contas não seria nenhuma novidade no processo eleitoral brasileiro.
                   Em uma palavra, os números não significam que teremos em 2022 um segundo turno digno das mais horripilantes ficções, como se pudéssemos livremente escolher qual cepa de vampiro preferiríamos para sugar nosso rubro vital. Os personagens podem, sim, ser outros. Os eleitores, em seu traçado ideológico, contudo, não tendem a se modificar. E é esse o grande problema.
                   Não será possível a ninguém que assista uma vez por semana, que seja, qualquer dos telejornais da televisão aberta, que não saiba que o Presidente do Brasil é favorável à ditadura militar, à tortura e execução sumária de presos comuns e políticos, contra a liberdade de manifestação cultural que defenda quaisquer das bandeiras das minorias sociais ou culturais, acredita na terra plana e, para tudo piorar, nega ter qualquer responsabilidade no combate à pandemia virulenta e letal que se abate com especial sofreguidão sobre o país. Muito menos, não haverá cristão sincero que negue as artimanhas ilícitas desenvolvidas por Moro na condução dos casos da Lava Jata, trabalhando em franca contradição à lei e ao melhor que conhecíamos do direito. Seria mais hipócrita que a própria expressão sisuda do ex-juiz pretender alguém negar sua parcialidade (talvez fosse melhor dizer verdadeira cumplicidade com a acusação), para lograr a retirada da corrida eleitoral de Lula em 2018. Já dissemos naquela época mesmo que após esse ocorrido, qualquer que fosse o resultado das eleições, ela já estaria definitivamente comprometida como um processo democrático e legítimo. Infelizmente, estávamos com a razão.
                   Que Bolsonaro é um inepto (melhor, um relativamente incapaz – já que o estatuto da pessoa com deficiência deixa como únicos incapazes absoluto os menores de dezesseis anos) todo o mundo já sabe. Que Moro é um egocêntrico, que não consegue mais disfarçar sua sanha pelo poder e as verdadeiras razões de seu pseudo heroísmo, muito menos. Nenhuma novidade nem numa coisa nem noutra. Eles seriam apenas dois equivocados, duas pessoas dignas de se submeterem ao crivo da academia de Platão, para quem a educação pode corrigir todos os vícios humanos. Um teste duro, mas um destino possível a ser dado a personagens tão pequenos da espécie humana. (E não, não defenderemos jamais nem a prisão, nem a morte para canalhas dessa estirpe. A ignorância se combate com a luz do conhecimento)!
                   O problema da pesquisa não é o nome em si dos primeiros colocados, mas sim o preocupante índice de quarenta e cinco por cento dos brasileiros que assinalam a intenção de voto em um ou em outro. Esse índice revela bem mais que uma opção eleitoral possível para uma futura eleição, mas na verdade denuncia que praticamente a metade do eleitorado brasileiro é racista, prega formas espúrias de violência do Estado como meio de controle social, despreza a educação como uma maneira de libertação das diversas formas de opressão e não tem nenhum compromisso com a democracia efetiva, pois para tanto, além de simplesmente parar de clamar pela metafórica intervenção miliar, é preciso garantir igualdade de oportunidades em todos os setores da sociedade, o que jamais existirá no âmago da miséria em que vive a maioria da população nacional.
                   Na mesma toada, essas pessoas não têm nenhum compromisso com as seguidas gerações de direitos humanos e fundamentais tão duramente conquistados no percurso sinuoso da história humana, salvo quando são os beneficiários diretos e exclusivos deles. Assim, são a favor da liberdade de mercado ao mesmo tempo em que desprezam solenemente o princípio do devido processo legal substantivo, porque tal defesa não resistirá jamais à atuação coxa do juiz símbolo da República de Curitiba.
                   Diante de tamanha pandemia moral que assola um país inteiro talvez só reste a desesperança. Esse mal, é bom dizermos, não é filho de nenhum vírus estreante que carcoma a consciência de uma sociedade quase inteira, mas é o fruto bem plantado de séculos de dominação. Nossas elites não são doentes, como é o Presidente, mas é bem cônscia da empreitada que está cumprindo e dos objetivos que pretende alcançar. Para ela, como sempre, pouco importa o nome do eleito, desde que ele, igual a todas as vezes anteriores, siga submisso a seus desideratos.
                   E para a grande massa de dominados não há mesmo esperança alguma. Não existem escolas suficientes para educá-los. Mesmo, a verdade parcial que os domina já está tão arraigada em seu espírito, que esta geração e talvez até a próxima, já estejam desencantadas de esperança. Com muito ardor, quiçá, daqui a cem quixotescos anos possamos vislumbrar alguma réstia de luz. Se, até lá, ainda existir algum sol para alumiar os escombros do que já foi o país do futuro.

Jorge Emicles

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