E A VERDADE VOS
LIBERTARÁ...
Jesus estava no Templo de
Salomão quando foi procurado por escribas e fariseus. Lhe apresentaram uma
mulher adúltera, solicitando que a julgasse. Jesus então mansamente respondeu
que aquele que não tivesse pecado, que atirasse a primeira pedra. Agachou-se e
ficou escrevendo algo no chão. Eram os pecados dos presentes que ele anotava.
Silenciosamente, saíram todos, a começar pelos mais velhos. Na mesma ocasião,
ainda no Templo, perguntaram ao Mestre como poderia ser válido o seu
testemunho, se dava testemunho de si mesmo? Segue uma longa explicação,
essencialmente dizendo que Ele é, logo, quem dá o testemunho não é propriamente
Ele, mas o Pai. No meio desse profundo discurso é que Jesus diz que “se
permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
É esse o resumo do tão declamado capítulo 08, do
Evangelho Segundo São João. Para conhecermos a verdade das coisas e não só do
Evangelho, é preciso contextualizarmos o lugar de cada fala. Do contrário,
parecerá um amontoado de frases soltas, adaptáveis a quase todas as situações.
Por isso, iniciamos pela contextualização das palavras do Mestre. A verdade de
que trata, é a da mensagem de amor e perdão, “pois aqueles que são ‘da verdade’
obedecem à mensagem de amor que Cristo nos transmitiu da parte de Deus” (Bíblia
de Jerusalém, Paulus, 2002). Nesse mesmo capítulo (verso 44) o próprio Jesus
adverte aos que faltam com a verdade (representados pelos escribas e fariseus
que o admoestavam): “Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os
desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na
verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”.
Haveria alguma relação dessas passagens bíblicas
com a gravação de uma reunião ministerial recentemente divulgada, que compõe a
investigação de supostos crimes cometidos pelo Presidente da República?
Convenhamos que, foi ele mesmo quem nos conduziu à passagem no livro sacro,
pois desde a campanha repetia como um mantra o verso de São João, o discípulo
amado do Cristo e o suposto escriba do mais místico dentre os Evangelhos
Canônicos. Mas o Presidente, ao que parece, é, além de todos os defeitos que o
tornam tão peculiar, também aquele velho personagem de Renato Russo (Faroeste
Caboclo), que “dizia que era crente, mas não sabia rezar”, porque ao termo de
tudo o que a mídia conhece a seu respeito, é razoável dizer que, se por acaso
conhece o texto completo do capítulo citado, com certeza não o pratica. De
tanto falar da verdade, acabou passando pelo pai da mentira.
A verdade que se revela das palavras e do contexto
geral da dita reunião é bem macabra, mas para nos libertar, precisa mesmo ser
conhecida.
Ao contrário do que afirmou Sérgio Moro, não está
dito literalmente que o Presidente pretendia intervir na cúpula da Polícia
Federal (PF) para se esquivar de investigações incômodas. O contexto dos fatos,
contudo, podem autorizar a compreensão de que a “segurança” de que fala o Presidente,
é na verdade a PF. Mas provas indiciárias são sempre perigosas, advirta-se. O
mais grave não é isso, contudo. Estarrece ouvir a confissão de que a política
regulamentar do porte de armas do Presidente esconde sua intenção de munir a
população (leia-se, grupos paramilitares privados ou mesmo estatais) para uma
futura e previsível guerra civil. Ele fala ser contra um golpe, mas se o golpe
lhe for favorável certamente não resistirá. O Ministro do Meio Ambiente propõe
aproveitar o caos da pandemia que vive o mundo inteiro, para fazer aprovar na
surdina a legislação necessária para incentivar o desmatamento e a invasão das
terras indígenas (isso dá, no mínimo, improbidade administrativa). O Ministro
da Educação pretende a prisão de todos os agentes políticos (parlamentares, a
supor que apontou para a Praça dos Três Poderes), a começar pelos Ministros do
Supremo (há crime contra a honra e crime contra a segurança nacional, sem dizer
da falta de decoro das palavras, que também configura crime de responsabilidade).
A Ministra da Cidadania, diz que está providenciando o pedido de prisão de
Governadores e Prefeitos, esquecendo-se bem a propósito que quem possui
competência para propor a prisão de cidadãos é o Ministério Público, não um
órgão do Poder Executivo (a improbidade é certa, mas a confusão entre limites
aos direitos fundamentais e abuso do exercício do poder de polícia poderá
também configurar crime de responsabilidade e contra a segurança nacional).
Duas omissões se destacam, diante do vilipêndio de
crimes sequenciais cometidos. A do Ministro da Justiça, que além de não haver
tomado qualquer medida no sentido de requisitar nenhuma investigação, também
não revelou esses fatos no momento de sua demissão. Sua indignação é porque não
pôde manter o amigo de Lava Jato na Diretoria da Polícia Federal. Nada a ver
com a acintosa sanha criminosa do Presidente e seus Ministros (ele mesmo, um
deles). A outra omissão lastimável é a dos Ministros das Forças Armadas, que
durante a reunião e mesmo depois de divulgado o vídeo, defenderam a normalidade
de tudo o que ali houve. Quem, em nome da verdade, será o verdadeiro impatriota
dessa tenebrosa história? A omissão também pode se configurar improba.
Mas a verdade mesmo é que, apesar de toda a
movimentação que a divulgação do vídeo causou tanto na imprensa quanto nas
redes sociais tende a não redundar em qualquer punição. O Procurador Geral da
República não consegue esconder que é aliado do Presidente, pois, para
continuarmos com a verdade, tanto Ministério Público quanto juízes, país afora, seguem fazendo política no
meio do farfalhar de suas togas (e isso não é fruto de qualquer ilação empírica.
Veja, a propósito o livro Os Onze, do jornalista Felipe Recondo, além de
vasta bibliografia a respeito das incestuosas relações de juízes e promotores
com o poder político – sem esquecer o famoso escândalo conhecido como vaza
jato). Mesmo que a denúncia por crime comum seja oferecida pelo Procurador
Geral da República, ainda assim o Presidente possui a indevassável tutela do
chamado Centrão, conjunto de políticos fisiológicos do parlamento, que bem se
diga, representa expressiva maioria dos políticos nacionais. Um pedido de impeachment
terá igual sorte.
A verdade é que, inversamente, as mesmas razões
que fizeram Dilma Rousseff cair do poder, farão Bolsonaro permanecer nele. A
falta de apoio político no primeiro caso, e a compra dele no segundo. Por mais
que o Presidente e seu séquito sigam dando testemunho de si mesmos, revelando à
nação seus verdadeiros propósitos, a democracia da maioria que os elegeu, mas
que igualmente tanto atacam, seguirá lhes assegurando no poder. Ao menos
enquanto os recursos públicos puderem pagar por essa maioria (é para isso que
pagamos tantos impostos, será?). Ao mesmo tempo, há uma incômoda parcela de
brasileiros que continuarão achando corretas e corajosas as ações
presidenciais. São eles aqueles que defendem a insana intervenção militar
democrática, ou conseguem distinguir regime militar de golpe de
Estado. Jogo de palavras, para justificar o autoritarismo e o consequente
abuso de poder. Alguns desses brasileiros são mal instruídos. Outros são redundantemente maus.
A verdade é que aqueles mesmos que faz pouco incentivavam
campanha de boicote contra a globo lixo, agora anunciam nas mesmas redes
sociais que não perderão o Jornal Nacional do dia por nada, pois Bonner já
prepara o chumbo contra o governo da vez!
E então, resta saber, quem atirará a primeira
pedra?
Jorge Emicles
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