GUERRA É PAZ; LIBERDADE É
ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA
O paradoxo do título é a reprodução do famoso lema
do Partido INGSOC, partido único e dominante absoluto na distopia de George
Orwell, que retrata um mundo fictício (?) dominado por uma ideologia única.
Nesse mundo distópico, se narra as artimanhas de dominação do Grande Irmão (Big
Broder, talvez soe mais palatável a nossos ouvidos), líder absoluto do partido
existente. O passado era sempre reescrito, a fim de apagar a memória dos dissidentes
ou lhes aniquilar a reputação com mentiras, quando tal fosse mais conveniente,
e isso era feito com tal intensidade que a única coisa de que não se saberia
mais jamais era a verdade dos acontecimentos efetivamente ocorridos. Os
indivíduos eram policiados pelo grande olho, onisciente, que através da tecnologia
controlava todos os movimentos dos súditos, aplicando severas punições face ao
mais sutil indício de traição aos ideais partidários. Se dizia que jamais
houvera qualidade de vida melhor, porém o único fato constatável é que simplesmente
não havia lembrança de um estilo de vida anterior que possibilitasse a
comparação. Era o retrato de uma sociedade sem memória, por isso sem
referências e consequentemente desprovida de quimeras.
A obra é uma evidente crítica ao modelo político
do socialismo, cuja utopia ameaçou o ocidente durante quase todo o século XX. A
Revolução Russa de 1917, foi sem dúvidas a maior inspiração do genial Orwell ao
redigir seu famoso romance. Mas o paradigma é bem mais amplo, podendo
referir-se à China, à Cuba, ao Leste Europeu e até mesmo a várias ditaduras do
continente africano. Forçando um pouco a imaginação, até se poderia falar do
caso da Venezuela. Talvez essa devesse ser uma obra referenciável pelos cultores,
no Brasil, da Nova Política, que propugnam uma espécie inexplicável de liberalismo
nacionalista, com ascensão de um poder centralizado e onipotente, para o que se
impõe o forçoso fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Para os intelectuais desse sistema, certamente cabe ainda a referência à obra
de Pasternak (Doutor Jivago), que denuncia as atrocidades dos primeiros anos da
Revolução Russa, e necessariamente a Revolução dos Bichos, do mesmo Orwell, que
satiriza a tomada do poder pela ascendente classe dos porcos. E, acima
de todas essas obras, é necessário fazer a justa referência ao romance
Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
É indeclinável, afinal, que um nascente regime
político possua seu lastro teórico, pois é através dele que espraiará pelo
mundo o discurso do vencedor. O Estado, lembremos a lição do sociólogo Pierre
Bourdieu, é o monopólio do poder simbólico. Portanto, ainda mais importante que
a força das armas é a força do discurso que o novo regime venha a forjar, pois
é através dele que se reescreverá o passado, apagando as dores das torturas da
ditadura e dissipando o respeito e a necessidade de proteção às minorias, valores
irrenunciáveis em um Estado Democrático de Direito. Para que chorar os “cordéis
de mortos” da ditadura ou mesmo os mais recentes da pandemia mundial, se vida e
morte andam juntas? Devemos mesmo celebrar a vida, pois vivos é que estamos, e
é nosso dever patriótico seguirmos com alegria, olhando para o futuro,
olvidando completamente do passado, pois o passado de fato não existe, ele é
fruto do que dele dizemos agora no presente.
Esses cultores da Nova Política, no entanto, deveriam
estar atentos à evidência de que Orwell não critica simplesmente o modelo
socialista, mas na verdade todo e qualquer autoritarismo. Ele era anarquista, é
bom lembrarmos, que entre outros feitos lutou na Guerra Civil Espanhola. Huxley,
por exemplo, inspira sua obra (também uma distopia em que um poder hegemônico
domina o Estado) no pensamento de Sócrates, que constrói em A República (diálogo
socrático escrito por Platão) o modelo de Estado ideal. Mas é exatamente o
modelo do pensamento único, da centralização absoluta do poder, da eliminação
sumária das ideias antagônicas, da paralisia social das pessoas e despolitização
do discurso através de uma pseudo política; que conduz ao aniquilamento das
liberdades sociais e individuais. E isso definitivamente não é bom, porque
dessa maneira se destrói o próprio sentido da vida, se eliminando a noção de
individualidade. Na obra de Orwell, por exemplo, nas horas vagas os membros do
partido estavam obrigados a se dedicar a alguma atividade coletiva. Ou seja,
não havia, de fato, horas vagas. Em Huxley, o contato sexual era terminantemente
proibido, devendo a procriação acontecer mediante inseminação artificial. Na
República socrática o ato sexual deveria ser coletivo, para que não se
estabelecesse a noção individual de filiação.
É a esse tipo de paradoxo que o ideal de um Estado
perfeito, no qual impere uma ideologia única, conduz. Pouco importa se quem
impõe o modelo seja uma ideologia socialista ou liberal, o fim será sempre o
aniquilamento das liberdades e depravação da dignidade individual de todos. A
miséria apenas mudará de nome e de justificativa, mas continuará existindo do
mesmo modo. O passado seguirá sendo escrito pelo presente, como em todos os
tempos da humanidade.
Jorge Emicles
Excelente texto, Prof. Emicles!!! Reflexão muito sensata e sóbria, extremamente necessária aos tempos atuais.
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