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quinta-feira, 28 de maio de 2020


AS DEMOCRACIAS MORREM




                   O século vinte e um, montado no acelerado foguete da tecnologia, chegou se anunciando o êxtase da sociedade humana. A tecnologia médica através de seus equipamentos e fármacos teria a cura para todas as enfermidades; era quase a promessa do cobiçado elixir da longa vida prometido pelos alquimistas. As informações poderiam ser amplamente divulgadas pela rede mundial, possibilitando a todos a potência da sabedoria; como se conhecimento e sapiência fossem expressões sinônimas. E a democracia, filha mais legítima da Revolução Francesa, seria a cura para todas as desigualdades e tiranias; como se o etéreo conceito de Estado Democrático de Direito pudesse, ao final, conter toda a sanha de poder e ganância humana.
                   Assim como as promessas da modernidade, apregoando a liberdade como o caminho para a prosperidade das nações, a pós-modernidade não tardaria a fazer ruir também as suas. A começar pela fragilidade da sua democracia e pela falácia da sua liberdade. A tecnologia, a final, é apenas uma nova e ainda mais sutil forma de dominação. O mundo do século vinte e um continua dividido entre ricos e pobres, da mesma forma que na antiguidade clássica, na idade das trevas ou mesmo na modernidade.
                   Galgado na ideia iluminista da democracia como um mito de salvação, há famosa obra de dois cientistas políticos norte-americanos (LEVTSKI e ZIBLATT. Como as Democracias Morrem), que a despeito de analisar essencialmente o processo de ascensão ao poder Presidencial de Donald Trump, também menciona outros casos similares no mundo, onde déspotas criam regimes totalitários após chegarem ao poder através de eleições livres. A obra cita com ênfase o caso de Hugo Chávez, na Venezuela. Numa provável segunda edição, certamente fará referência ao caso brasileiro, mas o melhor de todos os exemplos da armadilha do regime democrático é o da Alemanha pós primeira grande guerra. Hitler e os nazistas conquistaram o poder através de maciça votação popular.
                   Em síntese, a obra defende a tese de que as estruturas partidárias deverão possuir um sistema de depuração, através do qual sejam excluídos todos os pretensos candidatos com tendências autoritárias do direito de concorrer às eleições. Acusa a cúpula do Partido Republicano de não ter impedido a candidatura do atual presidente norte americano. Em suma, defende a ideia de que para manter a democracia, é necessário que os partidos sejam antidemocráticos, permitindo que concorram apenas uma casta rigorosamente escolhida. Uma oligarquia de líderes iluminados. A ilação se impõe, pois os próprios autores da obra revelam nas sutilezas de suas observações sua profunda desconfiança com a democracia como um regime capaz de elevar ao poder os melhores estadistas. A verdade, contudo, é que a democracia, por natureza, tende a se entregar aos demagogos. Daí é um pulo até ao despotismo.
                   A primeira eleição presidencial no Brasil, após vinte e quatro anos de regime militar, se destacou pelo marketing collorido e bem estruturado do candidato vitorioso. A mais recente, de 2018, revela o poder sutil das mídias sociais, dos logaritmos e dos computadores travestidos de perfis de militantes políticos. Provavelmente o custo dessa nova campanha é bem mais elevado que a tradicional compra de votos das eleições municipais e profundamente mais perigosa. Mas em todos os modelos, a democracia se revela falaciosa, pois não há nem igualdade entre os candidatos, nem verdadeira liberdade entre os eleitores. Somos democráticos por convenção, porque um discurso político-jurídico chamado por Constituição nos diz isso; mas, de verdade, a liberdade não pode ser praticada entre miseráveis.
                   Embora Maquiavel tenha as honras de ser o pai da ciência política, desde os gregos antigos o assunto já era meditado por seus filósofos. Destaca-se a obra de Aristóteles, que nos legou A Política, onde analisa o Estado e suas diversas formas de governo. Dentre elas, claro, fala da democracia, pois esse regime era tradição em Atenas. Ele, como Platão, era cético com a democracia. Para o filósofo, note-se, a democracia se caracteriza não como o governo da maioria, mas como o dos homens livres. E ser livre, não é apenas não ser escravo, mas é ser cidadão, devidamente educado para poder decidir com consciência e adequação. A educação, portanto, é o único antídoto contra o despotismo autoritário, não a fórmula aristocrática proposta pelos cientistas políticos norte-americanos.
                   Há uma passagem muito relevante na obra de Aristóteles, ainda tão importante no pensamento pós-moderno e um dos autores prediletos do chamado guru do bolsonarismo (você sabe a respeito de quem falamos). Nela, até parece que o grego estava mirando o Brasil de mais de dois mil e trezentos anos depois de sua época. Após discorrer sobre o erro de tratar igualmente aqueles que por natureza são desiguais, desvela a consequência de um poder delegado por uma massa assim constituída, afirmando que “resulta daí que o Estado cai no domínio da multidão indigente e se vê subtraído ao império das leis. Os demagogos calcam-nas com os pés e fazem predominar os decretos. Tal gentalha é desconhecida nas democracias que a lei governa. Os melhores cidadãos têm ali o primeiro lugar. Mas onde as leis não têm força pululam os demagogos”.  Nesse governo, continua, “os bajuladores são honrados, os homens de bem sujeitados”, porque o governo despótico dos demagogos não é em nada melhor que o dos tiranos. E, então, prediz que o fim desse despotismo é terrível, pois seus governantes “não se limitam aos assuntos gerais, atacam os magistrados em pessoa, atribuem ao povo o direito de julgá-los e, como este se presta de bom grado a sua instigação, terminam por dissolver tudo e tudo subverter”.
                   Não era Aristóteles nenhum vidente, como Nostramus. Muito menos, precisou se valer das predições do oráculo de Delfos. Foi pelo raciocínio metafísico, cujas filigranas ele mesmo ensinou em sua obra que chegou às conclusões antecipadas com precisão tantos séculos antes de nós, sem o auxílio de qualquer modalidade de inteligência artificial. Menos ainda, não precisou das redes sociais para difundir suas verdades. O essencial para a evolução humana já existia na antiguidade mais remota da Grécia clássica.
                   Seu nome é educação.

Jorge Emicles

sábado, 23 de maio de 2020


E A VERDADE VOS LIBERTARÁ...



                   Jesus estava no Templo de Salomão quando foi procurado por escribas e fariseus. Lhe apresentaram uma mulher adúltera, solicitando que a julgasse. Jesus então mansamente respondeu que aquele que não tivesse pecado, que atirasse a primeira pedra. Agachou-se e ficou escrevendo algo no chão. Eram os pecados dos presentes que ele anotava. Silenciosamente, saíram todos, a começar pelos mais velhos. Na mesma ocasião, ainda no Templo, perguntaram ao Mestre como poderia ser válido o seu testemunho, se dava testemunho de si mesmo? Segue uma longa explicação, essencialmente dizendo que Ele é, logo, quem dá o testemunho não é propriamente Ele, mas o Pai. No meio desse profundo discurso é que Jesus diz que “se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
                   É esse o resumo do tão declamado capítulo 08, do Evangelho Segundo São João. Para conhecermos a verdade das coisas e não só do Evangelho, é preciso contextualizarmos o lugar de cada fala. Do contrário, parecerá um amontoado de frases soltas, adaptáveis a quase todas as situações. Por isso, iniciamos pela contextualização das palavras do Mestre. A verdade de que trata, é a da mensagem de amor e perdão, “pois aqueles que são ‘da verdade’ obedecem à mensagem de amor que Cristo nos transmitiu da parte de Deus” (Bíblia de Jerusalém, Paulus, 2002). Nesse mesmo capítulo (verso 44) o próprio Jesus adverte aos que faltam com a verdade (representados pelos escribas e fariseus que o admoestavam): “Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”.
                   Haveria alguma relação dessas passagens bíblicas com a gravação de uma reunião ministerial recentemente divulgada, que compõe a investigação de supostos crimes cometidos pelo Presidente da República? Convenhamos que, foi ele mesmo quem nos conduziu à passagem no livro sacro, pois desde a campanha repetia como um mantra o verso de São João, o discípulo amado do Cristo e o suposto escriba do mais místico dentre os Evangelhos Canônicos. Mas o Presidente, ao que parece, é, além de todos os defeitos que o tornam tão peculiar, também aquele velho personagem de Renato Russo (Faroeste Caboclo), que “dizia que era crente, mas não sabia rezar”, porque ao termo de tudo o que a mídia conhece a seu respeito, é razoável dizer que, se por acaso conhece o texto completo do capítulo citado, com certeza não o pratica. De tanto falar da verdade, acabou passando pelo pai da mentira.
                   A verdade que se revela das palavras e do contexto geral da dita reunião é bem macabra, mas para nos libertar, precisa mesmo ser conhecida.
                   Ao contrário do que afirmou Sérgio Moro, não está dito literalmente que o Presidente pretendia intervir na cúpula da Polícia Federal (PF) para se esquivar de investigações incômodas. O contexto dos fatos, contudo, podem autorizar a compreensão de que a “segurança” de que fala o Presidente, é na verdade a PF. Mas provas indiciárias são sempre perigosas, advirta-se. O mais grave não é isso, contudo. Estarrece ouvir a confissão de que a política regulamentar do porte de armas do Presidente esconde sua intenção de munir a população (leia-se, grupos paramilitares privados ou mesmo estatais) para uma futura e previsível guerra civil. Ele fala ser contra um golpe, mas se o golpe lhe for favorável certamente não resistirá. O Ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar o caos da pandemia que vive o mundo inteiro, para fazer aprovar na surdina a legislação necessária para incentivar o desmatamento e a invasão das terras indígenas (isso dá, no mínimo, improbidade administrativa). O Ministro da Educação pretende a prisão de todos os agentes políticos (parlamentares, a supor que apontou para a Praça dos Três Poderes), a começar pelos Ministros do Supremo (há crime contra a honra e crime contra a segurança nacional, sem dizer da falta de decoro das palavras, que também configura crime de responsabilidade). A Ministra da Cidadania, diz que está providenciando o pedido de prisão de Governadores e Prefeitos, esquecendo-se bem a propósito que quem possui competência para propor a prisão de cidadãos é o Ministério Público, não um órgão do Poder Executivo (a improbidade é certa, mas a confusão entre limites aos direitos fundamentais e abuso do exercício do poder de polícia poderá também configurar crime de responsabilidade e contra a segurança nacional).
                   Duas omissões se destacam, diante do vilipêndio de crimes sequenciais cometidos. A do Ministro da Justiça, que além de não haver tomado qualquer medida no sentido de requisitar nenhuma investigação, também não revelou esses fatos no momento de sua demissão. Sua indignação é porque não pôde manter o amigo de Lava Jato na Diretoria da Polícia Federal. Nada a ver com a acintosa sanha criminosa do Presidente e seus Ministros (ele mesmo, um deles). A outra omissão lastimável é a dos Ministros das Forças Armadas, que durante a reunião e mesmo depois de divulgado o vídeo, defenderam a normalidade de tudo o que ali houve. Quem, em nome da verdade, será o verdadeiro impatriota dessa tenebrosa história? A omissão também pode se configurar improba.
                   Mas a verdade mesmo é que, apesar de toda a movimentação que a divulgação do vídeo causou tanto na imprensa quanto nas redes sociais tende a não redundar em qualquer punição. O Procurador Geral da República não consegue esconder que é aliado do Presidente, pois, para continuarmos com a verdade, tanto Ministério Público quanto  juízes, país afora, seguem fazendo política no meio do farfalhar de suas togas (e isso não é fruto de qualquer ilação empírica. Veja, a propósito o livro Os Onze, do jornalista Felipe Recondo, além de vasta bibliografia a respeito das incestuosas relações de juízes e promotores com o poder político – sem esquecer o famoso escândalo conhecido como vaza jato). Mesmo que a denúncia por crime comum seja oferecida pelo Procurador Geral da República, ainda assim o Presidente possui a indevassável tutela do chamado Centrão, conjunto de políticos fisiológicos do parlamento, que bem se diga, representa expressiva maioria dos políticos nacionais. Um pedido de impeachment terá igual sorte.
                   A verdade é que, inversamente, as mesmas razões que fizeram Dilma Rousseff cair do poder, farão Bolsonaro permanecer nele. A falta de apoio político no primeiro caso, e a compra dele no segundo. Por mais que o Presidente e seu séquito sigam dando testemunho de si mesmos, revelando à nação seus verdadeiros propósitos, a democracia da maioria que os elegeu, mas que igualmente tanto atacam, seguirá lhes assegurando no poder. Ao menos enquanto os recursos públicos puderem pagar por essa maioria (é para isso que pagamos tantos impostos, será?). Ao mesmo tempo, há uma incômoda parcela de brasileiros que continuarão achando corretas e corajosas as ações presidenciais. São eles aqueles que defendem a insana intervenção militar democrática, ou conseguem distinguir regime militar de golpe de Estado. Jogo de palavras, para justificar o autoritarismo e o consequente abuso de poder. Alguns desses brasileiros são mal instruídos. Outros são redundantemente maus.
                   A verdade é que aqueles mesmos que faz pouco incentivavam campanha de boicote contra a globo lixo, agora anunciam nas mesmas redes sociais que não perderão o Jornal Nacional do dia por nada, pois Bonner já prepara o chumbo contra o governo da vez!
                   E então, resta saber, quem atirará a primeira pedra?

Jorge Emicles



domingo, 10 de maio de 2020


GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA



                   O paradoxo do título é a reprodução do famoso lema do Partido INGSOC, partido único e dominante absoluto na distopia de George Orwell, que retrata um mundo fictício (?) dominado por uma ideologia única. Nesse mundo distópico, se narra as artimanhas de dominação do Grande Irmão (Big Broder, talvez soe mais palatável a nossos ouvidos), líder absoluto do partido existente. O passado era sempre reescrito, a fim de apagar a memória dos dissidentes ou lhes aniquilar a reputação com mentiras, quando tal fosse mais conveniente, e isso era feito com tal intensidade que a única coisa de que não se saberia mais jamais era a verdade dos acontecimentos efetivamente ocorridos. Os indivíduos eram policiados pelo grande olho, onisciente, que através da tecnologia controlava todos os movimentos dos súditos, aplicando severas punições face ao mais sutil indício de traição aos ideais partidários. Se dizia que jamais houvera qualidade de vida melhor, porém o único fato constatável é que simplesmente não havia lembrança de um estilo de vida anterior que possibilitasse a comparação. Era o retrato de uma sociedade sem memória, por isso sem referências e consequentemente desprovida de quimeras.
                   A obra é uma evidente crítica ao modelo político do socialismo, cuja utopia ameaçou o ocidente durante quase todo o século XX. A Revolução Russa de 1917, foi sem dúvidas a maior inspiração do genial Orwell ao redigir seu famoso romance. Mas o paradigma é bem mais amplo, podendo referir-se à China, à Cuba, ao Leste Europeu e até mesmo a várias ditaduras do continente africano. Forçando um pouco a imaginação, até se poderia falar do caso da Venezuela. Talvez essa devesse ser uma obra referenciável pelos cultores, no Brasil, da Nova Política, que propugnam uma espécie inexplicável de liberalismo nacionalista, com ascensão de um poder centralizado e onipotente, para o que se impõe o forçoso fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Para os intelectuais desse sistema, certamente cabe ainda a referência à obra de Pasternak (Doutor Jivago), que denuncia as atrocidades dos primeiros anos da Revolução Russa, e necessariamente a Revolução dos Bichos, do mesmo Orwell, que satiriza a tomada do poder pela ascendente classe dos porcos. E, acima de todas essas obras, é necessário fazer a justa referência ao romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
                   É indeclinável, afinal, que um nascente regime político possua seu lastro teórico, pois é através dele que espraiará pelo mundo o discurso do vencedor. O Estado, lembremos a lição do sociólogo Pierre Bourdieu, é o monopólio do poder simbólico. Portanto, ainda mais importante que a força das armas é a força do discurso que o novo regime venha a forjar, pois é através dele que se reescreverá o passado, apagando as dores das torturas da ditadura e dissipando o respeito e a necessidade de proteção às minorias, valores irrenunciáveis em um Estado Democrático de Direito. Para que chorar os “cordéis de mortos” da ditadura ou mesmo os mais recentes da pandemia mundial, se vida e morte andam juntas? Devemos mesmo celebrar a vida, pois vivos é que estamos, e é nosso dever patriótico seguirmos com alegria, olhando para o futuro, olvidando completamente do passado, pois o passado de fato não existe, ele é fruto do que dele dizemos agora no presente.
                   Esses cultores da Nova Política, no entanto, deveriam estar atentos à evidência de que Orwell não critica simplesmente o modelo socialista, mas na verdade todo e qualquer autoritarismo. Ele era anarquista, é bom lembrarmos, que entre outros feitos lutou na Guerra Civil Espanhola. Huxley, por exemplo, inspira sua obra (também uma distopia em que um poder hegemônico domina o Estado) no pensamento de Sócrates, que constrói em A República (diálogo socrático escrito por Platão) o modelo de Estado ideal. Mas é exatamente o modelo do pensamento único, da centralização absoluta do poder, da eliminação sumária das ideias antagônicas, da paralisia social das pessoas e despolitização do discurso através de uma pseudo política; que conduz ao aniquilamento das liberdades sociais e individuais. E isso definitivamente não é bom, porque dessa maneira se destrói o próprio sentido da vida, se eliminando a noção de individualidade. Na obra de Orwell, por exemplo, nas horas vagas os membros do partido estavam obrigados a se dedicar a alguma atividade coletiva. Ou seja, não havia, de fato, horas vagas. Em Huxley, o contato sexual era terminantemente proibido, devendo a procriação acontecer mediante inseminação artificial. Na República socrática o ato sexual deveria ser coletivo, para que não se estabelecesse a noção individual de filiação.
                   É a esse tipo de paradoxo que o ideal de um Estado perfeito, no qual impere uma ideologia única, conduz. Pouco importa se quem impõe o modelo seja uma ideologia socialista ou liberal, o fim será sempre o aniquilamento das liberdades e depravação da dignidade individual de todos. A miséria apenas mudará de nome e de justificativa, mas continuará existindo do mesmo modo. O passado seguirá sendo escrito pelo presente, como em todos os tempos da humanidade.
Jorge Emicles

sábado, 2 de maio de 2020


LIBELO



                   Ainda enquanto Sérgio Moro encontrava-se nas dependências da Polícia Federal de Curitiba, prestando depoimento delatório a respeito dos motivos de sua ruidosa saída da pasta da Justiça foi divulgada, certamente não por acaso, uma pesquisa de opinião, chancelada pelo Instituto Paraná Pesquisas, também não coincidentemente com sede em Curitiba, na qual o coloca em segundo lugar na corrida presidencial de 2022. Em primeiro lugar nas intenções de voto, segue firme o capitão Bolsonaro.
                   O Instituto em questão não é dos mais tradicionais em pesquisas nacionais, embora já tenha bons anos de estrada. O tempo até a data prevista para as eleições também é gigante, fazendo presumir que o cenário da época poderá ser totalmente diferente daquele mapeado pelo instante de uma pesquisa eleitoral.  Se Lula (atualmente inelegível porque, mesmo em liberdade, segue condenado em segunda instância por corrupção), então o petista apareceria logo à frente de Moro nas intenções de voto. O Nordeste segue como o valente centro da resistência. Os próprios números podem estar distorcidos, o que afinal de contas não seria nenhuma novidade no processo eleitoral brasileiro.
                   Em uma palavra, os números não significam que teremos em 2022 um segundo turno digno das mais horripilantes ficções, como se pudéssemos livremente escolher qual cepa de vampiro preferiríamos para sugar nosso rubro vital. Os personagens podem, sim, ser outros. Os eleitores, em seu traçado ideológico, contudo, não tendem a se modificar. E é esse o grande problema.
                   Não será possível a ninguém que assista uma vez por semana, que seja, qualquer dos telejornais da televisão aberta, que não saiba que o Presidente do Brasil é favorável à ditadura militar, à tortura e execução sumária de presos comuns e políticos, contra a liberdade de manifestação cultural que defenda quaisquer das bandeiras das minorias sociais ou culturais, acredita na terra plana e, para tudo piorar, nega ter qualquer responsabilidade no combate à pandemia virulenta e letal que se abate com especial sofreguidão sobre o país. Muito menos, não haverá cristão sincero que negue as artimanhas ilícitas desenvolvidas por Moro na condução dos casos da Lava Jata, trabalhando em franca contradição à lei e ao melhor que conhecíamos do direito. Seria mais hipócrita que a própria expressão sisuda do ex-juiz pretender alguém negar sua parcialidade (talvez fosse melhor dizer verdadeira cumplicidade com a acusação), para lograr a retirada da corrida eleitoral de Lula em 2018. Já dissemos naquela época mesmo que após esse ocorrido, qualquer que fosse o resultado das eleições, ela já estaria definitivamente comprometida como um processo democrático e legítimo. Infelizmente, estávamos com a razão.
                   Que Bolsonaro é um inepto (melhor, um relativamente incapaz – já que o estatuto da pessoa com deficiência deixa como únicos incapazes absoluto os menores de dezesseis anos) todo o mundo já sabe. Que Moro é um egocêntrico, que não consegue mais disfarçar sua sanha pelo poder e as verdadeiras razões de seu pseudo heroísmo, muito menos. Nenhuma novidade nem numa coisa nem noutra. Eles seriam apenas dois equivocados, duas pessoas dignas de se submeterem ao crivo da academia de Platão, para quem a educação pode corrigir todos os vícios humanos. Um teste duro, mas um destino possível a ser dado a personagens tão pequenos da espécie humana. (E não, não defenderemos jamais nem a prisão, nem a morte para canalhas dessa estirpe. A ignorância se combate com a luz do conhecimento)!
                   O problema da pesquisa não é o nome em si dos primeiros colocados, mas sim o preocupante índice de quarenta e cinco por cento dos brasileiros que assinalam a intenção de voto em um ou em outro. Esse índice revela bem mais que uma opção eleitoral possível para uma futura eleição, mas na verdade denuncia que praticamente a metade do eleitorado brasileiro é racista, prega formas espúrias de violência do Estado como meio de controle social, despreza a educação como uma maneira de libertação das diversas formas de opressão e não tem nenhum compromisso com a democracia efetiva, pois para tanto, além de simplesmente parar de clamar pela metafórica intervenção miliar, é preciso garantir igualdade de oportunidades em todos os setores da sociedade, o que jamais existirá no âmago da miséria em que vive a maioria da população nacional.
                   Na mesma toada, essas pessoas não têm nenhum compromisso com as seguidas gerações de direitos humanos e fundamentais tão duramente conquistados no percurso sinuoso da história humana, salvo quando são os beneficiários diretos e exclusivos deles. Assim, são a favor da liberdade de mercado ao mesmo tempo em que desprezam solenemente o princípio do devido processo legal substantivo, porque tal defesa não resistirá jamais à atuação coxa do juiz símbolo da República de Curitiba.
                   Diante de tamanha pandemia moral que assola um país inteiro talvez só reste a desesperança. Esse mal, é bom dizermos, não é filho de nenhum vírus estreante que carcoma a consciência de uma sociedade quase inteira, mas é o fruto bem plantado de séculos de dominação. Nossas elites não são doentes, como é o Presidente, mas é bem cônscia da empreitada que está cumprindo e dos objetivos que pretende alcançar. Para ela, como sempre, pouco importa o nome do eleito, desde que ele, igual a todas as vezes anteriores, siga submisso a seus desideratos.
                   E para a grande massa de dominados não há mesmo esperança alguma. Não existem escolas suficientes para educá-los. Mesmo, a verdade parcial que os domina já está tão arraigada em seu espírito, que esta geração e talvez até a próxima, já estejam desencantadas de esperança. Com muito ardor, quiçá, daqui a cem quixotescos anos possamos vislumbrar alguma réstia de luz. Se, até lá, ainda existir algum sol para alumiar os escombros do que já foi o país do futuro.

Jorge Emicles