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domingo, 18 de outubro de 2020

 

CECÍLIA



 

 

                   Cecília Campos Augusto era a filha secreta da trágica história da doce Dulce e do infensivo Ildefonso. Filha secreta, mas também legítima de um amor legal, consentido, mas ainda assim terminado a custo de violência desditosa, quase gratuita. Espraiou-se entre sua parentela que o pai morrera após um acesso de injusto ciúmes de um energúmeno delegado, inconformado pela preferência dada por sua mãe ao pai da infanta, que culminou no ato extremo da humilhante morte imposta ao seu genitor, ferido à traição, arrastado sem defesa pelas ruelas da vila de Princesa Isabel e enterrado em cova rasa, com os pés a descoberto, no tempo em que ela mesma, a menina Cecília, era ainda um anônimo feto depositado no ventre da mãe.

                   Também se conta entre os famosos Augustos, seiva poderosa da cepa dos coronéis nordestinos, que apesar de todo o mandonismo, talvez mesmo por causa dele, não foram capazes de evitar o trágico desfecho da vida do médico genial e carismático, que chegou à vila paraibana com a honorífica missão de dar combate à epidêmica peste bubônica que assolava toda aquela região, enchendo de medo e desterro uma terra já tão castigada pela seca e pela miséria. A verdade, contudo, é que por detrás da romanceada história de amor mal sucedida, escondia-se um onipotente plano de expansão e domínio do poderio da família, que através da atuação de Ildefonso em terras paraibanas, se pretendia tomar as rédeas do poderio do Major Feliciano Rodrigues, mandatário local, e dali expandi-lo para toda a região e alhures.

                   A romanceada história de final tão chocante era na verdade um plano de poder e seu desfecho a contrarreação brutal do outro grupo. Matar Ildefonso era imperioso à conservação dos poderosos do momento. O método dos atacantes era inovador e sagaz, pois ao invés da bala, utilizou a mandatária do clã, a famigerada Fideralina Augusto, a sutileza de um casamento conveniente do neto Ildefonso com a filha  do maior capitalista da região, o pai de Dulce, o que garantiria a manutenção futura do poder político através da força do dinheiro. Tanto que, após perpetrado o homicídio do médico, tentaram ainda assassinar seu sogro, que por muito pouco escapou também do desterro fatal.

                   A matriarca dos Augustos, logo que soube da tragédia a transmudou em algo ainda mais brutal. Incontinente, envia cabras à vila de Princesa Isabel com expressas ordens para matar a todos os algozes do neto. O mal foi feito, e contam os ditos populares que os vingadores trouxeram para a patroa um cordão unindo as orelhas de tantos quantos tombaram vítimas desse ataque. Era a origem da decantada lenda do rosário de orelhas, no qual regularmente, diziam, orava a velha Fideralina Augusto até os tempos finais de sua vida.

                   Secretamente, trouxeram aos domínios da matrona, a encantada Lavras da Mangabeira, no Ceará, a viúva do médico, que foi posta sob os cuidados e proteção de Fideralina até o parto da menina, chamada Cecília por decisão da mãe e sob o argumento de que seria também o nome de preferência do pai. Para garantir a segurança da infanta, a mãe é enviada ao Recife, para permanecer em companhia do pai e a criança continuou mantida sob a sigilosa proteção da bisavó. Para não chamar atenção, Cecília foi criada com discrição no sítio Melancias, propriedade de antigos amigos de Fideralina, e para a família espalhou-se a história de que a criança havia morrido no parto, deixando assim Ildefonso sem descendência viva.

                   Fideralina era conhecida como mulher sisuda, que não ria nem demonstrava simpatia ou carisma em público. Mandava através da força do seu prestígio, garantido sempre através do poder do bacamarte. Viveu numa época em que os políticos não precisavam de votos, pois os tinham garantidos e contados nos seus currais eleitorais. Com a pequena Cecília, no entanto, a velha se tornava irreconhecível. Mesmo com as limitações de sua idade, já então avançada, agachava-se para apanhar a criança, fazia caras, falava com ternura e sempre a enchia de mimos e doces. Regularmente, convidava a menina a lha visitar em seus domínios, no Sítio Tatu, epicentro do infinito universo do poder familiar. Os cuidados da velha para com aquela criança aparentemente alheia aos interesses da família punham a muitos dos parentes que cercavam a matriarca cheios de ciúmes, pois lhes parecia inútil e sem razão aqueles desdobros sobre uma criança indiferente aos destinos do poder. A criança fora batizada e registrada no assento civil com o nome de família de seus genitores, mas isso permaneceu em sigilosa reserva. Era assim conhecida como Cecília Batista, agnome de seus cuidadores, a quem até a juventude reconheceu sempre como seus pais.

                   Foi pouco antes de a velha matrona ser acometida do mal que lhe aniquilaria a vida, a nova peste da gripe espanhola, que ainda teve tempo de cuidar dos destinos da bisneta. Vendo que já se punha em idade de puberdade, estando apta a casar e procriar, tomou as necessárias precauções para lhe ter uma conversa reservada e longa, onde com emoção lhe contou toda a verdade, revelando enfim que por detrás daquele zelo inconfesso que sempre lhe dedicara estava escondido o amor à família e à memória do neto barbaramente homicidado. Derramaram lágrimas e confessaram uma a outra o amor incondicional que as unia. Cuidou então Fideralina, quase como se estivesse a adivinhar seu fim próximo, de casar a bisneta com um primo legítimo, como era o costume da família, que assim fortalecia ainda mais o poder do clã. Embora sempre tivesse sido uma legítima Augusto, foi somente a partir do casamento que passou a ser socialmente chamada por Cecília Augusto, casado com Gustavo, neto do herdeiro político de Fideralina, também de nome Gustavo. Na família era comum o casamento dentro do sangue e a repetição de nomes, quase que como aconteceu com os Buendia, de Macondo.

                   E assim Cecília viveu longos anos. Feliz no casamento, discreta na vida social, sem revelar a ninguém sua verdadeira origem, senão a estreito círculo de absoluta confiança. Teve quatro filhos, mas a nenhum chamou de Ildefonso, tanto para não dar pistas de sua ascendência como também para não rememorar a tragédia de seus genitores. Por algumas vezes, em viagem ao Recife, esteve com a mãe, que permaneceu doce como seu nome, fiel e casta à memória do pai, embora sempre triste na medida em que jamais se desvencilhou das miseráveis lembranças que envolveram seu curto casamento de menos de um ano, ao termo do qual substituiu a alegria das núpcias pelo desterro da saudade sem fim. Dulce, contudo, desligou-se completamente das relações com a família do marido.

                   Até que a alcançou Cecília a idade de oitenta e três anos. Já era avó de doze netos e bisavó de outros quatro. Querida por todos, chegou saudável à terceira idade. Fora o trauma de seu nascimento, que embora conhecesse pelos relatos contados não guardava nenhuma lembrança, teve uma vida pacífica e feliz. Seus filhos foram bem educados e gozavam todos de prestígio social e dinheiro. Seu marido lhe foi fiel e zeloso. Mesmo assim, o tempo que a tudo transforma em provisório, corroeu o castelo de felicidade e perfeição que construíra durante décadas com esmero e inabalável fé. Em realidade, tudo continuou a ser como sempre, salvo sua memória, que por processo insondável passou a confundir as coisas, num misterioso processo de amalgamar os eventos, as pessoas e o tempo numa massa uniforme e indivisível. Até o instante em que, da sua perspectiva, todas as coisas eram ao mesmo tempo.

                   Para quem a via de fora, era uma lástima enxergar que a mulher altiva, de personalidade marcante, mas ao mesmo tempo meiga e solícita, que transformou o amor que recebera dos pais adotivos e da avó postiça (como chamavam Fideralina) em diligente cuidado à própria família, que com esmero e trabalho incansável transformou em exemplo de harmonia; naquela outra criatura decrépita, que não reconhecia mais nem aos seus, que não era mais capaz de realizar por si mesma as necessidades fisiológicas nem o asseio mínimo indispensável à boa saúde. Como era triste ver a mulher que com facilidade dava testemunho de fé, convicta nas razões superiores das coisas de Deus amesquinhada pelo esquecimento de si própria, mentecapta diante da maldade de qualquer estranho, que por isso necessitava de cuidados incessantes posto que, naquela condição, ela mesma punha em risco a si própria. Como era medonho ver a tristeza estampada nos olhos dos filhos e netos, pois perderam ainda em vida a conselheira e diretora de todas as coisas da família, senhora que sempre fora de todas as decisões, importantes ou mesquinhas. Como eram decepcionados os olhos do marido a perceber que se fora a companheira e cúmplice de uma vida inteira, pondo-se em seu lugar uma criança indefesa, mas desinteressante, na companhia de quem não mais sentia regozijo, mas sim desespero pela constatação de que por mais que aquela velha decrepita se assemelhasse a sua amada Cecília, nela não enxergava sequer uma longínqua sombra de sua enamorada desde a juventude. Aquela era uma criatura a quem se deveria cuidar por espírito cristão, mas que nada tinha da mulher, mãe e avó tão amada de todos.

                   Do lado de dentro da doente, no entanto, tudo era encantamento. Na medida em que ia vendo as coisas da família se acomodando e suas obrigações diminuindo, mais e mais foi se incorporando às práticas da fé. O tempo antes dedicado ao encaminhamento dos filhos, que, sob a rigorosa vigilância da mãe, precisaram estudar com afinco, construir carreiras pródigas, enamorar-se de boas moças, filhas de famílias equilibradas e capazes de se conduzirem como pilares das novas famílias a serem construídas, assim como ela própria fora tudo isso a seu marido e filhos; foi compreendendo e se preparando para a vida espiritual. Pouco a pouco as suas orações a conduziram ao desvelamento da realidade espiritual, fazendo-a, enfim, compreender ser esta a única realidade de fato.

                   Deus é o eterno presente. Nele se encontram todos os tempos, todos os lugares, todas as coisas. São as limitações humanas que impõe a percepção do continuar do tempo e da expansão do espaço. Mas na Mente do Criador, Tudo significa todas as coisas no mesmo instante A física já provou a inexistência efetiva nem do tempo nem do espaço. Desde a antiguidade pré-histórica do Egito Hermes Trimegisto já pontificara que Tudo está em Deus e que, por isso, a realidade tal qual a compreendemos, é mental, não uma efetividade. Os místicos quando iluminam sua compreensão da Grande Obra sentem a necessidade de se desligar das coisas da matéria, porque não há mais sentido na compreensão fragmentada da realidade própria da mente humana.

                   E, para os que não se elevaram no plano da Criação, tudo isso parecerá perigosa loucura.

                   Em um famoso romance de Hermann Hesse, o Jogo das Contas de Vidro, há um sensível personagem, um sábio professor de música, quem dedicou toda a sua existência à compreensão da harmonia dos acordes e à prática do bem irrestrito. Ao final de longas décadas de atividade, foi se alheando de toda a realidade, se pondo num estado de êxtase perpétuo, estando sempre calmo, num incessante sorriso, aparentando não conhecer os que lhe rodeavam e totalmente indiferente a todas as sensações físicas. Embora gozasse da perfeita saúde de seus órgãos, não se comunicava com os próximos, embora deixasse transparecer seu profundo contentamento com tudo a seu redor. Se integrou a tal ponto à Inteligência de Deus, que também para o personagem inexistia o tempo e o espaço.

                   Eram assim os que se iluminavam.

                   Embora ninguém da família se tivesse apercebido, tal foi o que aconteceu a Cecília. Imiscuiu-se a tal ponto na infinitude de Deus que traspassou a segmentação das coisas, do tempo e do espaço por partes. Tudo, como o Criador, passou a ser unívoco, sem quaisquer divisões. Ainda no início do processo imaginou quanto seria tormentoso a um ser humano caso gozasse da onisciência do Todo. Como seria insuportável saber e sentir todas as dores de todas as mortes e de todos os sofrimentos e malogros universais. Como seria inumana a capacidade de viver todas as dores de todas as mães que perderam os filhos, de todas as esposas que não tinham mais maridos, de todos os amantes abandonados com crueldade, de todos os órfãos famintos... Se não temos condições tantas vezes de suportar os míseros sofrimentos de uma única existência, que dizer então de todas elas cumuladas ao longa das eras e em todos os lugares? Teve um vislumbre, assim, da dolorosa angústia de Jesus, no seu diálogo com o Pai, narrada por José Saramago na sua obra ficcional O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

                   Com o aprofundamento desse estado místico, no entanto, tudo foi se reunindo, deixando clara a realidade unívoca que de fato existe por detrás das limitações do intelecto humano. Descobriu curiosamente que Deus não é cartesiano, razão pela qual não divide as coisas no máximo de fragmentos possíveis e nem busca explicá-las por partes. Há uma só, indivisível e única realidade. E foi assim que ela também passou a compreender o mundo.

                   Não havia mais as diferentes épocas da vida. Um tempo em que foi criança, outro adolescente e um terceiro adulta. Não tinha mais a época de solteira, de jovem casada, de mãe inexperiente e de avó zelosa. Os filhos não tinham mais diferentes idades e tempos distintos. Eram ao mesmo tempo as crianças turronas, os adolescentes apaixonados, os pais nervosos e os maridos ciumentos. Fideralina não era mais aquela lembrança distante da mocidade quase esquecida. Convivia agora sem nenhum estranhamento com os filhos, netos e bisnetos. Todos num único tempo e no mesmo espaço.

                   Aquilo que a família lastimava como uma doença terrível, Cecília vivia como um glorioso êxtase, pois somente nesse grau de compreensão desapareceram as dores das mortes, a separação dos queridos, as saudades dos tempos idos. Tudo era presente e imutável.

                   Mãe Didinha! Minha amada Fideralina, dizia ela diante da incompreensão dos ouvintes, cuidado com esse querido capeta do Gustavinho, ele ainda lhe põe a perder. Ele é criança, mas também é pai de dois lindos filhinhos. Se parecem com os da família. É uma criança tão estudiosa, mas também um homem tão trabalhador. Sempre fiel à família. Veja quem chega! É o papá. Vem em companhia de Papai Gustavo, que é seu tio e avô do meu marido Gustavo. Veja que confusão essa de ser parente dos dois lados na família. Só você mesma, Mãe Didinha, para aprontar dessas... Papá está feliz, repare, porque quando se lembra do seu amor por mamã se põe em regozijo. Bem sei que mamã não é mais uma mulher triste. Ainda hoje papá estará com ela e não precisam se separar. Nunca se separaram, aliás. Mas, e o Francisco Augusto? Francisquinho... será que já casou? Será que é formado? Já haverá arrumado emprego? Vês como é linda a família dele! Que mulher amorosa que tem. Ele também casou com a prima, vejam só! Como é bom ver tanta gente reunida. Hoje estão todos aqui. Os antigos e os novos, sem faltar ninguém. Como é bom ver todos juntos, como no final sempre estiveram. Que alegria... Que beleza é enxergar as coisas como de verdade são...

 

Jorge Emicles

segunda-feira, 15 de junho de 2020


O ETERNO RETORNO
CONTO





                   João Tenório ainda era uma criança quando na madrugada de 31 de março de 1964 a empáfia do general Olympio Mourão Filho deu o primeiro grito de sublevação militar contra a autoridade do Presidente do Brasil, prometendo lançar suas tropas de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro para a deposição do mandatário da nação. Na prática, pouco fez ou tinha a fazer, porque mesmo que tivesse o arrobo verdadeiro dos revolucionários lhe faltariam tropas bem treinadas, munição e até mesmo combustível para sitiar o Presidente em sua estadia na antiga Capital Federal. Ainda assim, sem gastar nem balas nem vidas, seu blefe foi o estopim final para o golpe, chamado de revolução pelos vencedores, que manteria os milicos ilegitimamente no poder pelos próximos vinte e um anos.
                   Tempos depois, quando se houvera instruído um pouco a respeito das revoluções e golpes de Estado, Tenório se perguntaria a exaustão como poderia uma falácia daquela natureza ser a causa de um regime sanguinário que à guisa de impor ordem e combater a corrupção, só degeneração trouxe ao povo que governou. Até que se encontrou com Tolstói, por quem se instruiu que a história é um processo inevitável; os acontecimentos se dão independente da vontade dos sujeitos que ilusoriamente imaginam terem sido o estopim dos fatos e mudanças de rumo do processo. Um general, por mais que pretenda, não tem o comando verdadeiro sobre o dedo ou o corpo do soldado, que efetivamente é quem aperta o gatilho, enfrenta corajosamente o inimigo ou simplesmente por medo recua, estando ganha ou perdida a batalha.
                   Não foi Mourão Filho a causa primeva do regime militar brasileiro. Também não foram as idas e vindas sem destino ou objetivo certo de Castello Branco ao termo daquele longo 31 de março. Muito menos as centenas de telefonemas que deu ou as conversas toscas e contraditórias que manteve. Muito menos foi o destino, mas a vontade irrefreável de um povo.
                   Assim foi porque assim quis a aristocracia, dona do capital, do prestígio elitista ou de ambos. Assim se deu porque a classe média maciçamente acreditou que a economia se renovaria, produzindo empregos, renda e melhor qualidade de vida. A classe alta queria mais lucro; a classe média mais renda; a pobreza almejava sair da miséria absoluta, descrente na promessa das reformas de base que todos atacavam como ideias de um tal de comunismo, que bem não sabiam de que tratava, mas com certeza não haveria de ser coisa do bom Deus.
                   De verdade, poucos havia que acreditavam em uma insurreição comunista tupiniquim. Assim como em 1937, o então capitão Olympoio Mourão Filho foi o artífice de uma narrativa romanceada de uma tal intentona comunista, apresentada como o famoso Plano Choen, discurso que justificou a instalação da ditadura fascista do Estado Novo; agora fazia crer na capacidade de articulação e poder efetivo de João Goulart para dar causa a um autogolpe comunista. Jango nunca foi um risco verdadeiro à democracia. As elites é que não a queriam, como jamais a quiseram de verdade. A massa do estrato social, a classe média, muito menos em tempo algum foi adepta incondicional das ideias rossoneanas. O que esses maiorais sempre quiseram é a tranquilidade da boa vida, não a consciência de mundo; não a abnegação da solidariedade; nunca a renúncia da divisão.
                   Ficaram bem vivas na memória de João Tenório todas as expressões elogiosas que seus parentes e amigos faziam à nascente ditatura. Seja no seio da intimidade, seja nas reuniões sociais, toda a casta da classe média frequentada por ele deu vivas e se mostrou otimista com o novo poder que se apresentava, firmemente erguido no pedestal de honestidade com a coisa pública e moralidade dos costumes privados. Não era preciso que não existisse corrupção; não tinha importância que não houvesse generais e padres pederastas; nem muito menos que se praticasse a tortura. Bastava que essas coisas não aparecessem nos jornais. O milagre econômico, o tricampeonato brasileiro de futebol mundial e a ordem geral que reinava na superfície da sociedade eram suficientes para aquela gente de poucos sonhos e mesquinhos propósitos.
                   Até que as refregas econômicas outra vez viesse a lhes abalar a indiferença sórdida contra o sofrimento dos assassinados sem julgamento, depostos sem motivos legítimos e toda a mais sanha de abusos e crueldades praticadas pelas armas gananciosas que empunhavam os generais e demais comandantes militares de todas as patentes, que através da arrogância das armas surrupiaram o país inteiro de suas mais comezinhas liberdades em troca da ignomínia do poder despótico e sem sentido do autoritarismo.
                   Não foi pelas lágrimas das mães que tiveram seus filhos mortos, fossem eles guerrilheiros violentos ou passantes despercebidos e confundidos por revoltosos; não foi pelos intelectuais sumariamente demitidos nas Universidades brasileiras, nem pela intervenção branca imposta a elas; muito menos foi pelas denúncias feitas pela igreja e pela OAB arrependidas do apoio inicial ao golpe que ruiu o regime militar brasileiro. Foi pura e simplesmente porque a classe média se empobreceu como consequência da grave crise econômica provocada pelo ruidoso e degringolado milagre econômico, que enfim sublevou-se contra o regime que por tantos anos aplaudiu e apoio.
                   E então, festiva, alegre e cantante como no carnaval, retornou outra vez às ruas para gritar vivas à liberdade; diretas para presidente!
                   Foi por esse tempo que João Tenório, já estudante universitário, descobriu com Hegel que a história se repete em fluxos de idas e vindas dialéticos; que aprendeu com Nietzsche a lei do eterno retorno...
                   Até que, anos depois, um outro general Mourão chega ao poder, desta feita arrastado pelos milhões de votos de um certo capitão a la Quixote. Como sempre, aplaudido e aclamado por uma risonha classe média.

Jorge Emicles

quinta-feira, 28 de maio de 2020


AS DEMOCRACIAS MORREM




                   O século vinte e um, montado no acelerado foguete da tecnologia, chegou se anunciando o êxtase da sociedade humana. A tecnologia médica através de seus equipamentos e fármacos teria a cura para todas as enfermidades; era quase a promessa do cobiçado elixir da longa vida prometido pelos alquimistas. As informações poderiam ser amplamente divulgadas pela rede mundial, possibilitando a todos a potência da sabedoria; como se conhecimento e sapiência fossem expressões sinônimas. E a democracia, filha mais legítima da Revolução Francesa, seria a cura para todas as desigualdades e tiranias; como se o etéreo conceito de Estado Democrático de Direito pudesse, ao final, conter toda a sanha de poder e ganância humana.
                   Assim como as promessas da modernidade, apregoando a liberdade como o caminho para a prosperidade das nações, a pós-modernidade não tardaria a fazer ruir também as suas. A começar pela fragilidade da sua democracia e pela falácia da sua liberdade. A tecnologia, a final, é apenas uma nova e ainda mais sutil forma de dominação. O mundo do século vinte e um continua dividido entre ricos e pobres, da mesma forma que na antiguidade clássica, na idade das trevas ou mesmo na modernidade.
                   Galgado na ideia iluminista da democracia como um mito de salvação, há famosa obra de dois cientistas políticos norte-americanos (LEVTSKI e ZIBLATT. Como as Democracias Morrem), que a despeito de analisar essencialmente o processo de ascensão ao poder Presidencial de Donald Trump, também menciona outros casos similares no mundo, onde déspotas criam regimes totalitários após chegarem ao poder através de eleições livres. A obra cita com ênfase o caso de Hugo Chávez, na Venezuela. Numa provável segunda edição, certamente fará referência ao caso brasileiro, mas o melhor de todos os exemplos da armadilha do regime democrático é o da Alemanha pós primeira grande guerra. Hitler e os nazistas conquistaram o poder através de maciça votação popular.
                   Em síntese, a obra defende a tese de que as estruturas partidárias deverão possuir um sistema de depuração, através do qual sejam excluídos todos os pretensos candidatos com tendências autoritárias do direito de concorrer às eleições. Acusa a cúpula do Partido Republicano de não ter impedido a candidatura do atual presidente norte americano. Em suma, defende a ideia de que para manter a democracia, é necessário que os partidos sejam antidemocráticos, permitindo que concorram apenas uma casta rigorosamente escolhida. Uma oligarquia de líderes iluminados. A ilação se impõe, pois os próprios autores da obra revelam nas sutilezas de suas observações sua profunda desconfiança com a democracia como um regime capaz de elevar ao poder os melhores estadistas. A verdade, contudo, é que a democracia, por natureza, tende a se entregar aos demagogos. Daí é um pulo até ao despotismo.
                   A primeira eleição presidencial no Brasil, após vinte e quatro anos de regime militar, se destacou pelo marketing collorido e bem estruturado do candidato vitorioso. A mais recente, de 2018, revela o poder sutil das mídias sociais, dos logaritmos e dos computadores travestidos de perfis de militantes políticos. Provavelmente o custo dessa nova campanha é bem mais elevado que a tradicional compra de votos das eleições municipais e profundamente mais perigosa. Mas em todos os modelos, a democracia se revela falaciosa, pois não há nem igualdade entre os candidatos, nem verdadeira liberdade entre os eleitores. Somos democráticos por convenção, porque um discurso político-jurídico chamado por Constituição nos diz isso; mas, de verdade, a liberdade não pode ser praticada entre miseráveis.
                   Embora Maquiavel tenha as honras de ser o pai da ciência política, desde os gregos antigos o assunto já era meditado por seus filósofos. Destaca-se a obra de Aristóteles, que nos legou A Política, onde analisa o Estado e suas diversas formas de governo. Dentre elas, claro, fala da democracia, pois esse regime era tradição em Atenas. Ele, como Platão, era cético com a democracia. Para o filósofo, note-se, a democracia se caracteriza não como o governo da maioria, mas como o dos homens livres. E ser livre, não é apenas não ser escravo, mas é ser cidadão, devidamente educado para poder decidir com consciência e adequação. A educação, portanto, é o único antídoto contra o despotismo autoritário, não a fórmula aristocrática proposta pelos cientistas políticos norte-americanos.
                   Há uma passagem muito relevante na obra de Aristóteles, ainda tão importante no pensamento pós-moderno e um dos autores prediletos do chamado guru do bolsonarismo (você sabe a respeito de quem falamos). Nela, até parece que o grego estava mirando o Brasil de mais de dois mil e trezentos anos depois de sua época. Após discorrer sobre o erro de tratar igualmente aqueles que por natureza são desiguais, desvela a consequência de um poder delegado por uma massa assim constituída, afirmando que “resulta daí que o Estado cai no domínio da multidão indigente e se vê subtraído ao império das leis. Os demagogos calcam-nas com os pés e fazem predominar os decretos. Tal gentalha é desconhecida nas democracias que a lei governa. Os melhores cidadãos têm ali o primeiro lugar. Mas onde as leis não têm força pululam os demagogos”.  Nesse governo, continua, “os bajuladores são honrados, os homens de bem sujeitados”, porque o governo despótico dos demagogos não é em nada melhor que o dos tiranos. E, então, prediz que o fim desse despotismo é terrível, pois seus governantes “não se limitam aos assuntos gerais, atacam os magistrados em pessoa, atribuem ao povo o direito de julgá-los e, como este se presta de bom grado a sua instigação, terminam por dissolver tudo e tudo subverter”.
                   Não era Aristóteles nenhum vidente, como Nostramus. Muito menos, precisou se valer das predições do oráculo de Delfos. Foi pelo raciocínio metafísico, cujas filigranas ele mesmo ensinou em sua obra que chegou às conclusões antecipadas com precisão tantos séculos antes de nós, sem o auxílio de qualquer modalidade de inteligência artificial. Menos ainda, não precisou das redes sociais para difundir suas verdades. O essencial para a evolução humana já existia na antiguidade mais remota da Grécia clássica.
                   Seu nome é educação.

Jorge Emicles

sábado, 23 de maio de 2020


E A VERDADE VOS LIBERTARÁ...



                   Jesus estava no Templo de Salomão quando foi procurado por escribas e fariseus. Lhe apresentaram uma mulher adúltera, solicitando que a julgasse. Jesus então mansamente respondeu que aquele que não tivesse pecado, que atirasse a primeira pedra. Agachou-se e ficou escrevendo algo no chão. Eram os pecados dos presentes que ele anotava. Silenciosamente, saíram todos, a começar pelos mais velhos. Na mesma ocasião, ainda no Templo, perguntaram ao Mestre como poderia ser válido o seu testemunho, se dava testemunho de si mesmo? Segue uma longa explicação, essencialmente dizendo que Ele é, logo, quem dá o testemunho não é propriamente Ele, mas o Pai. No meio desse profundo discurso é que Jesus diz que “se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
                   É esse o resumo do tão declamado capítulo 08, do Evangelho Segundo São João. Para conhecermos a verdade das coisas e não só do Evangelho, é preciso contextualizarmos o lugar de cada fala. Do contrário, parecerá um amontoado de frases soltas, adaptáveis a quase todas as situações. Por isso, iniciamos pela contextualização das palavras do Mestre. A verdade de que trata, é a da mensagem de amor e perdão, “pois aqueles que são ‘da verdade’ obedecem à mensagem de amor que Cristo nos transmitiu da parte de Deus” (Bíblia de Jerusalém, Paulus, 2002). Nesse mesmo capítulo (verso 44) o próprio Jesus adverte aos que faltam com a verdade (representados pelos escribas e fariseus que o admoestavam): “Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”.
                   Haveria alguma relação dessas passagens bíblicas com a gravação de uma reunião ministerial recentemente divulgada, que compõe a investigação de supostos crimes cometidos pelo Presidente da República? Convenhamos que, foi ele mesmo quem nos conduziu à passagem no livro sacro, pois desde a campanha repetia como um mantra o verso de São João, o discípulo amado do Cristo e o suposto escriba do mais místico dentre os Evangelhos Canônicos. Mas o Presidente, ao que parece, é, além de todos os defeitos que o tornam tão peculiar, também aquele velho personagem de Renato Russo (Faroeste Caboclo), que “dizia que era crente, mas não sabia rezar”, porque ao termo de tudo o que a mídia conhece a seu respeito, é razoável dizer que, se por acaso conhece o texto completo do capítulo citado, com certeza não o pratica. De tanto falar da verdade, acabou passando pelo pai da mentira.
                   A verdade que se revela das palavras e do contexto geral da dita reunião é bem macabra, mas para nos libertar, precisa mesmo ser conhecida.
                   Ao contrário do que afirmou Sérgio Moro, não está dito literalmente que o Presidente pretendia intervir na cúpula da Polícia Federal (PF) para se esquivar de investigações incômodas. O contexto dos fatos, contudo, podem autorizar a compreensão de que a “segurança” de que fala o Presidente, é na verdade a PF. Mas provas indiciárias são sempre perigosas, advirta-se. O mais grave não é isso, contudo. Estarrece ouvir a confissão de que a política regulamentar do porte de armas do Presidente esconde sua intenção de munir a população (leia-se, grupos paramilitares privados ou mesmo estatais) para uma futura e previsível guerra civil. Ele fala ser contra um golpe, mas se o golpe lhe for favorável certamente não resistirá. O Ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar o caos da pandemia que vive o mundo inteiro, para fazer aprovar na surdina a legislação necessária para incentivar o desmatamento e a invasão das terras indígenas (isso dá, no mínimo, improbidade administrativa). O Ministro da Educação pretende a prisão de todos os agentes políticos (parlamentares, a supor que apontou para a Praça dos Três Poderes), a começar pelos Ministros do Supremo (há crime contra a honra e crime contra a segurança nacional, sem dizer da falta de decoro das palavras, que também configura crime de responsabilidade). A Ministra da Cidadania, diz que está providenciando o pedido de prisão de Governadores e Prefeitos, esquecendo-se bem a propósito que quem possui competência para propor a prisão de cidadãos é o Ministério Público, não um órgão do Poder Executivo (a improbidade é certa, mas a confusão entre limites aos direitos fundamentais e abuso do exercício do poder de polícia poderá também configurar crime de responsabilidade e contra a segurança nacional).
                   Duas omissões se destacam, diante do vilipêndio de crimes sequenciais cometidos. A do Ministro da Justiça, que além de não haver tomado qualquer medida no sentido de requisitar nenhuma investigação, também não revelou esses fatos no momento de sua demissão. Sua indignação é porque não pôde manter o amigo de Lava Jato na Diretoria da Polícia Federal. Nada a ver com a acintosa sanha criminosa do Presidente e seus Ministros (ele mesmo, um deles). A outra omissão lastimável é a dos Ministros das Forças Armadas, que durante a reunião e mesmo depois de divulgado o vídeo, defenderam a normalidade de tudo o que ali houve. Quem, em nome da verdade, será o verdadeiro impatriota dessa tenebrosa história? A omissão também pode se configurar improba.
                   Mas a verdade mesmo é que, apesar de toda a movimentação que a divulgação do vídeo causou tanto na imprensa quanto nas redes sociais tende a não redundar em qualquer punição. O Procurador Geral da República não consegue esconder que é aliado do Presidente, pois, para continuarmos com a verdade, tanto Ministério Público quanto  juízes, país afora, seguem fazendo política no meio do farfalhar de suas togas (e isso não é fruto de qualquer ilação empírica. Veja, a propósito o livro Os Onze, do jornalista Felipe Recondo, além de vasta bibliografia a respeito das incestuosas relações de juízes e promotores com o poder político – sem esquecer o famoso escândalo conhecido como vaza jato). Mesmo que a denúncia por crime comum seja oferecida pelo Procurador Geral da República, ainda assim o Presidente possui a indevassável tutela do chamado Centrão, conjunto de políticos fisiológicos do parlamento, que bem se diga, representa expressiva maioria dos políticos nacionais. Um pedido de impeachment terá igual sorte.
                   A verdade é que, inversamente, as mesmas razões que fizeram Dilma Rousseff cair do poder, farão Bolsonaro permanecer nele. A falta de apoio político no primeiro caso, e a compra dele no segundo. Por mais que o Presidente e seu séquito sigam dando testemunho de si mesmos, revelando à nação seus verdadeiros propósitos, a democracia da maioria que os elegeu, mas que igualmente tanto atacam, seguirá lhes assegurando no poder. Ao menos enquanto os recursos públicos puderem pagar por essa maioria (é para isso que pagamos tantos impostos, será?). Ao mesmo tempo, há uma incômoda parcela de brasileiros que continuarão achando corretas e corajosas as ações presidenciais. São eles aqueles que defendem a insana intervenção militar democrática, ou conseguem distinguir regime militar de golpe de Estado. Jogo de palavras, para justificar o autoritarismo e o consequente abuso de poder. Alguns desses brasileiros são mal instruídos. Outros são redundantemente maus.
                   A verdade é que aqueles mesmos que faz pouco incentivavam campanha de boicote contra a globo lixo, agora anunciam nas mesmas redes sociais que não perderão o Jornal Nacional do dia por nada, pois Bonner já prepara o chumbo contra o governo da vez!
                   E então, resta saber, quem atirará a primeira pedra?

Jorge Emicles



domingo, 10 de maio de 2020


GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA



                   O paradoxo do título é a reprodução do famoso lema do Partido INGSOC, partido único e dominante absoluto na distopia de George Orwell, que retrata um mundo fictício (?) dominado por uma ideologia única. Nesse mundo distópico, se narra as artimanhas de dominação do Grande Irmão (Big Broder, talvez soe mais palatável a nossos ouvidos), líder absoluto do partido existente. O passado era sempre reescrito, a fim de apagar a memória dos dissidentes ou lhes aniquilar a reputação com mentiras, quando tal fosse mais conveniente, e isso era feito com tal intensidade que a única coisa de que não se saberia mais jamais era a verdade dos acontecimentos efetivamente ocorridos. Os indivíduos eram policiados pelo grande olho, onisciente, que através da tecnologia controlava todos os movimentos dos súditos, aplicando severas punições face ao mais sutil indício de traição aos ideais partidários. Se dizia que jamais houvera qualidade de vida melhor, porém o único fato constatável é que simplesmente não havia lembrança de um estilo de vida anterior que possibilitasse a comparação. Era o retrato de uma sociedade sem memória, por isso sem referências e consequentemente desprovida de quimeras.
                   A obra é uma evidente crítica ao modelo político do socialismo, cuja utopia ameaçou o ocidente durante quase todo o século XX. A Revolução Russa de 1917, foi sem dúvidas a maior inspiração do genial Orwell ao redigir seu famoso romance. Mas o paradigma é bem mais amplo, podendo referir-se à China, à Cuba, ao Leste Europeu e até mesmo a várias ditaduras do continente africano. Forçando um pouco a imaginação, até se poderia falar do caso da Venezuela. Talvez essa devesse ser uma obra referenciável pelos cultores, no Brasil, da Nova Política, que propugnam uma espécie inexplicável de liberalismo nacionalista, com ascensão de um poder centralizado e onipotente, para o que se impõe o forçoso fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Para os intelectuais desse sistema, certamente cabe ainda a referência à obra de Pasternak (Doutor Jivago), que denuncia as atrocidades dos primeiros anos da Revolução Russa, e necessariamente a Revolução dos Bichos, do mesmo Orwell, que satiriza a tomada do poder pela ascendente classe dos porcos. E, acima de todas essas obras, é necessário fazer a justa referência ao romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
                   É indeclinável, afinal, que um nascente regime político possua seu lastro teórico, pois é através dele que espraiará pelo mundo o discurso do vencedor. O Estado, lembremos a lição do sociólogo Pierre Bourdieu, é o monopólio do poder simbólico. Portanto, ainda mais importante que a força das armas é a força do discurso que o novo regime venha a forjar, pois é através dele que se reescreverá o passado, apagando as dores das torturas da ditadura e dissipando o respeito e a necessidade de proteção às minorias, valores irrenunciáveis em um Estado Democrático de Direito. Para que chorar os “cordéis de mortos” da ditadura ou mesmo os mais recentes da pandemia mundial, se vida e morte andam juntas? Devemos mesmo celebrar a vida, pois vivos é que estamos, e é nosso dever patriótico seguirmos com alegria, olhando para o futuro, olvidando completamente do passado, pois o passado de fato não existe, ele é fruto do que dele dizemos agora no presente.
                   Esses cultores da Nova Política, no entanto, deveriam estar atentos à evidência de que Orwell não critica simplesmente o modelo socialista, mas na verdade todo e qualquer autoritarismo. Ele era anarquista, é bom lembrarmos, que entre outros feitos lutou na Guerra Civil Espanhola. Huxley, por exemplo, inspira sua obra (também uma distopia em que um poder hegemônico domina o Estado) no pensamento de Sócrates, que constrói em A República (diálogo socrático escrito por Platão) o modelo de Estado ideal. Mas é exatamente o modelo do pensamento único, da centralização absoluta do poder, da eliminação sumária das ideias antagônicas, da paralisia social das pessoas e despolitização do discurso através de uma pseudo política; que conduz ao aniquilamento das liberdades sociais e individuais. E isso definitivamente não é bom, porque dessa maneira se destrói o próprio sentido da vida, se eliminando a noção de individualidade. Na obra de Orwell, por exemplo, nas horas vagas os membros do partido estavam obrigados a se dedicar a alguma atividade coletiva. Ou seja, não havia, de fato, horas vagas. Em Huxley, o contato sexual era terminantemente proibido, devendo a procriação acontecer mediante inseminação artificial. Na República socrática o ato sexual deveria ser coletivo, para que não se estabelecesse a noção individual de filiação.
                   É a esse tipo de paradoxo que o ideal de um Estado perfeito, no qual impere uma ideologia única, conduz. Pouco importa se quem impõe o modelo seja uma ideologia socialista ou liberal, o fim será sempre o aniquilamento das liberdades e depravação da dignidade individual de todos. A miséria apenas mudará de nome e de justificativa, mas continuará existindo do mesmo modo. O passado seguirá sendo escrito pelo presente, como em todos os tempos da humanidade.
Jorge Emicles

sábado, 2 de maio de 2020


LIBELO



                   Ainda enquanto Sérgio Moro encontrava-se nas dependências da Polícia Federal de Curitiba, prestando depoimento delatório a respeito dos motivos de sua ruidosa saída da pasta da Justiça foi divulgada, certamente não por acaso, uma pesquisa de opinião, chancelada pelo Instituto Paraná Pesquisas, também não coincidentemente com sede em Curitiba, na qual o coloca em segundo lugar na corrida presidencial de 2022. Em primeiro lugar nas intenções de voto, segue firme o capitão Bolsonaro.
                   O Instituto em questão não é dos mais tradicionais em pesquisas nacionais, embora já tenha bons anos de estrada. O tempo até a data prevista para as eleições também é gigante, fazendo presumir que o cenário da época poderá ser totalmente diferente daquele mapeado pelo instante de uma pesquisa eleitoral.  Se Lula (atualmente inelegível porque, mesmo em liberdade, segue condenado em segunda instância por corrupção), então o petista apareceria logo à frente de Moro nas intenções de voto. O Nordeste segue como o valente centro da resistência. Os próprios números podem estar distorcidos, o que afinal de contas não seria nenhuma novidade no processo eleitoral brasileiro.
                   Em uma palavra, os números não significam que teremos em 2022 um segundo turno digno das mais horripilantes ficções, como se pudéssemos livremente escolher qual cepa de vampiro preferiríamos para sugar nosso rubro vital. Os personagens podem, sim, ser outros. Os eleitores, em seu traçado ideológico, contudo, não tendem a se modificar. E é esse o grande problema.
                   Não será possível a ninguém que assista uma vez por semana, que seja, qualquer dos telejornais da televisão aberta, que não saiba que o Presidente do Brasil é favorável à ditadura militar, à tortura e execução sumária de presos comuns e políticos, contra a liberdade de manifestação cultural que defenda quaisquer das bandeiras das minorias sociais ou culturais, acredita na terra plana e, para tudo piorar, nega ter qualquer responsabilidade no combate à pandemia virulenta e letal que se abate com especial sofreguidão sobre o país. Muito menos, não haverá cristão sincero que negue as artimanhas ilícitas desenvolvidas por Moro na condução dos casos da Lava Jata, trabalhando em franca contradição à lei e ao melhor que conhecíamos do direito. Seria mais hipócrita que a própria expressão sisuda do ex-juiz pretender alguém negar sua parcialidade (talvez fosse melhor dizer verdadeira cumplicidade com a acusação), para lograr a retirada da corrida eleitoral de Lula em 2018. Já dissemos naquela época mesmo que após esse ocorrido, qualquer que fosse o resultado das eleições, ela já estaria definitivamente comprometida como um processo democrático e legítimo. Infelizmente, estávamos com a razão.
                   Que Bolsonaro é um inepto (melhor, um relativamente incapaz – já que o estatuto da pessoa com deficiência deixa como únicos incapazes absoluto os menores de dezesseis anos) todo o mundo já sabe. Que Moro é um egocêntrico, que não consegue mais disfarçar sua sanha pelo poder e as verdadeiras razões de seu pseudo heroísmo, muito menos. Nenhuma novidade nem numa coisa nem noutra. Eles seriam apenas dois equivocados, duas pessoas dignas de se submeterem ao crivo da academia de Platão, para quem a educação pode corrigir todos os vícios humanos. Um teste duro, mas um destino possível a ser dado a personagens tão pequenos da espécie humana. (E não, não defenderemos jamais nem a prisão, nem a morte para canalhas dessa estirpe. A ignorância se combate com a luz do conhecimento)!
                   O problema da pesquisa não é o nome em si dos primeiros colocados, mas sim o preocupante índice de quarenta e cinco por cento dos brasileiros que assinalam a intenção de voto em um ou em outro. Esse índice revela bem mais que uma opção eleitoral possível para uma futura eleição, mas na verdade denuncia que praticamente a metade do eleitorado brasileiro é racista, prega formas espúrias de violência do Estado como meio de controle social, despreza a educação como uma maneira de libertação das diversas formas de opressão e não tem nenhum compromisso com a democracia efetiva, pois para tanto, além de simplesmente parar de clamar pela metafórica intervenção miliar, é preciso garantir igualdade de oportunidades em todos os setores da sociedade, o que jamais existirá no âmago da miséria em que vive a maioria da população nacional.
                   Na mesma toada, essas pessoas não têm nenhum compromisso com as seguidas gerações de direitos humanos e fundamentais tão duramente conquistados no percurso sinuoso da história humana, salvo quando são os beneficiários diretos e exclusivos deles. Assim, são a favor da liberdade de mercado ao mesmo tempo em que desprezam solenemente o princípio do devido processo legal substantivo, porque tal defesa não resistirá jamais à atuação coxa do juiz símbolo da República de Curitiba.
                   Diante de tamanha pandemia moral que assola um país inteiro talvez só reste a desesperança. Esse mal, é bom dizermos, não é filho de nenhum vírus estreante que carcoma a consciência de uma sociedade quase inteira, mas é o fruto bem plantado de séculos de dominação. Nossas elites não são doentes, como é o Presidente, mas é bem cônscia da empreitada que está cumprindo e dos objetivos que pretende alcançar. Para ela, como sempre, pouco importa o nome do eleito, desde que ele, igual a todas as vezes anteriores, siga submisso a seus desideratos.
                   E para a grande massa de dominados não há mesmo esperança alguma. Não existem escolas suficientes para educá-los. Mesmo, a verdade parcial que os domina já está tão arraigada em seu espírito, que esta geração e talvez até a próxima, já estejam desencantadas de esperança. Com muito ardor, quiçá, daqui a cem quixotescos anos possamos vislumbrar alguma réstia de luz. Se, até lá, ainda existir algum sol para alumiar os escombros do que já foi o país do futuro.

Jorge Emicles