CECÍLIA
Cecília
Campos Augusto era a filha secreta da trágica história da doce Dulce e do infensivo
Ildefonso. Filha secreta, mas também legítima de um amor legal, consentido, mas
ainda assim terminado a custo de violência desditosa, quase gratuita. Espraiou-se
entre sua parentela que o pai morrera após um acesso de injusto ciúmes de um
energúmeno delegado, inconformado pela preferência dada por sua mãe ao pai da
infanta, que culminou no ato extremo da humilhante morte imposta ao seu genitor,
ferido à traição, arrastado sem defesa pelas ruelas da vila de Princesa Isabel
e enterrado em cova rasa, com os pés a descoberto, no tempo em que ela mesma, a
menina Cecília, era ainda um anônimo feto depositado no ventre da mãe.
Também
se conta entre os famosos Augustos, seiva poderosa da cepa dos coronéis
nordestinos, que apesar de todo o mandonismo, talvez mesmo por causa dele, não
foram capazes de evitar o trágico desfecho da vida do médico genial e
carismático, que chegou à vila paraibana com a honorífica missão de dar combate
à epidêmica peste bubônica que assolava toda aquela região, enchendo de medo e
desterro uma terra já tão castigada pela seca e pela miséria. A verdade,
contudo, é que por detrás da romanceada história de amor mal sucedida,
escondia-se um onipotente plano de expansão e domínio do poderio da família,
que através da atuação de Ildefonso em terras paraibanas, se pretendia tomar as
rédeas do poderio do Major Feliciano Rodrigues, mandatário local, e dali
expandi-lo para toda a região e alhures.
A
romanceada história de final tão chocante era na verdade um plano de poder e
seu desfecho a contrarreação brutal do outro grupo. Matar Ildefonso era
imperioso à conservação dos poderosos do momento. O método dos atacantes era
inovador e sagaz, pois ao invés da bala, utilizou a mandatária do clã, a
famigerada Fideralina Augusto, a sutileza de um casamento conveniente do neto Ildefonso
com a filha do maior capitalista da
região, o pai de Dulce, o que garantiria a manutenção futura do poder político
através da força do dinheiro. Tanto que, após perpetrado o homicídio do médico,
tentaram ainda assassinar seu sogro, que por muito pouco escapou também do
desterro fatal.
A
matriarca dos Augustos, logo que soube da tragédia a transmudou em algo ainda
mais brutal. Incontinente, envia cabras à vila de Princesa Isabel com expressas
ordens para matar a todos os algozes do neto. O mal foi feito, e contam os
ditos populares que os vingadores trouxeram para a patroa um cordão unindo as
orelhas de tantos quantos tombaram vítimas desse ataque. Era a origem da
decantada lenda do rosário de orelhas, no qual regularmente, diziam, orava a
velha Fideralina Augusto até os tempos finais de sua vida.
Secretamente,
trouxeram aos domínios da matrona, a encantada Lavras da Mangabeira, no Ceará,
a viúva do médico, que foi posta sob os cuidados e proteção de Fideralina até o
parto da menina, chamada Cecília por decisão da mãe e sob o argumento de que
seria também o nome de preferência do pai. Para garantir a segurança da
infanta, a mãe é enviada ao Recife, para permanecer em companhia do pai e a
criança continuou mantida sob a sigilosa proteção da bisavó. Para não chamar
atenção, Cecília foi criada com discrição no sítio Melancias, propriedade de
antigos amigos de Fideralina, e para a família espalhou-se a história de que a
criança havia morrido no parto, deixando assim Ildefonso sem descendência viva.
Fideralina
era conhecida como mulher sisuda, que não ria nem demonstrava simpatia ou
carisma em público. Mandava através da força do seu prestígio, garantido sempre
através do poder do bacamarte. Viveu numa época em que os políticos não
precisavam de votos, pois os tinham garantidos e contados nos seus currais
eleitorais. Com a pequena Cecília, no entanto, a velha se tornava
irreconhecível. Mesmo com as limitações de sua idade, já então avançada, agachava-se
para apanhar a criança, fazia caras, falava com ternura e sempre a enchia de
mimos e doces. Regularmente, convidava a menina a lha visitar em seus domínios,
no Sítio Tatu, epicentro do infinito universo do poder familiar. Os cuidados da
velha para com aquela criança aparentemente alheia aos interesses da família
punham a muitos dos parentes que cercavam a matriarca cheios de ciúmes, pois
lhes parecia inútil e sem razão aqueles desdobros sobre uma criança indiferente
aos destinos do poder. A criança fora batizada e registrada no assento civil
com o nome de família de seus genitores, mas isso permaneceu em sigilosa
reserva. Era assim conhecida como Cecília Batista, agnome de seus cuidadores, a
quem até a juventude reconheceu sempre como seus pais.
Foi
pouco antes de a velha matrona ser acometida do mal que lhe aniquilaria a vida,
a nova peste da gripe espanhola, que ainda teve tempo de cuidar dos destinos da
bisneta. Vendo que já se punha em idade de puberdade, estando apta a casar e
procriar, tomou as necessárias precauções para lhe ter uma conversa reservada e
longa, onde com emoção lhe contou toda a verdade, revelando enfim que por
detrás daquele zelo inconfesso que sempre lhe dedicara estava escondido o amor
à família e à memória do neto barbaramente homicidado. Derramaram lágrimas e
confessaram uma a outra o amor incondicional que as unia. Cuidou então Fideralina,
quase como se estivesse a adivinhar seu fim próximo, de casar a bisneta com um
primo legítimo, como era o costume da família, que assim fortalecia ainda mais
o poder do clã. Embora sempre tivesse sido uma legítima Augusto, foi somente a
partir do casamento que passou a ser socialmente chamada por Cecília Augusto,
casado com Gustavo, neto do herdeiro político de Fideralina, também de nome Gustavo.
Na família era comum o casamento dentro do sangue e a repetição de nomes, quase
que como aconteceu com os Buendia, de Macondo.
E
assim Cecília viveu longos anos. Feliz no casamento, discreta na vida social,
sem revelar a ninguém sua verdadeira origem, senão a estreito círculo de
absoluta confiança. Teve quatro filhos, mas a nenhum chamou de Ildefonso, tanto
para não dar pistas de sua ascendência como também para não rememorar a tragédia
de seus genitores. Por algumas vezes, em viagem ao Recife, esteve com a mãe, que
permaneceu doce como seu nome, fiel e casta à memória do pai, embora sempre
triste na medida em que jamais se desvencilhou das miseráveis lembranças que
envolveram seu curto casamento de menos de um ano, ao termo do qual substituiu
a alegria das núpcias pelo desterro da saudade sem fim. Dulce, contudo, desligou-se
completamente das relações com a família do marido.
Até
que a alcançou Cecília a idade de oitenta e três anos. Já era avó de doze netos
e bisavó de outros quatro. Querida por todos, chegou saudável à terceira idade.
Fora o trauma de seu nascimento, que embora conhecesse pelos relatos contados
não guardava nenhuma lembrança, teve uma vida pacífica e feliz. Seus filhos
foram bem educados e gozavam todos de prestígio social e dinheiro. Seu marido
lhe foi fiel e zeloso. Mesmo assim, o tempo que a tudo transforma em
provisório, corroeu o castelo de felicidade e perfeição que construíra durante
décadas com esmero e inabalável fé. Em realidade, tudo continuou a ser como
sempre, salvo sua memória, que por processo insondável passou a confundir as
coisas, num misterioso processo de amalgamar os eventos, as pessoas e o tempo
numa massa uniforme e indivisível. Até o instante em que, da sua perspectiva,
todas as coisas eram ao mesmo tempo.
Para
quem a via de fora, era uma lástima enxergar que a mulher altiva, de
personalidade marcante, mas ao mesmo tempo meiga e solícita, que transformou o
amor que recebera dos pais adotivos e da avó postiça (como chamavam Fideralina)
em diligente cuidado à própria família, que com esmero e trabalho incansável
transformou em exemplo de harmonia; naquela outra criatura decrépita, que não
reconhecia mais nem aos seus, que não era mais capaz de realizar por si mesma
as necessidades fisiológicas nem o asseio mínimo indispensável à boa saúde.
Como era triste ver a mulher que com facilidade dava testemunho de fé, convicta
nas razões superiores das coisas de Deus amesquinhada pelo esquecimento de si
própria, mentecapta diante da maldade de qualquer estranho, que por isso
necessitava de cuidados incessantes posto que, naquela condição, ela mesma
punha em risco a si própria. Como era medonho ver a tristeza estampada nos
olhos dos filhos e netos, pois perderam ainda em vida a conselheira e diretora
de todas as coisas da família, senhora que sempre fora de todas as decisões,
importantes ou mesquinhas. Como eram decepcionados os olhos do marido a
perceber que se fora a companheira e cúmplice de uma vida inteira, pondo-se em
seu lugar uma criança indefesa, mas desinteressante, na companhia de quem não
mais sentia regozijo, mas sim desespero pela constatação de que por mais que
aquela velha decrepita se assemelhasse a sua amada Cecília, nela não enxergava
sequer uma longínqua sombra de sua enamorada desde a juventude. Aquela era uma
criatura a quem se deveria cuidar por espírito cristão, mas que nada tinha da
mulher, mãe e avó tão amada de todos.
Do
lado de dentro da doente, no entanto, tudo era encantamento. Na medida em que
ia vendo as coisas da família se acomodando e suas obrigações diminuindo, mais
e mais foi se incorporando às práticas da fé. O tempo antes dedicado ao
encaminhamento dos filhos, que, sob a rigorosa vigilância da mãe, precisaram
estudar com afinco, construir carreiras pródigas, enamorar-se de boas moças,
filhas de famílias equilibradas e capazes de se conduzirem como pilares das
novas famílias a serem construídas, assim como ela própria fora tudo isso a seu
marido e filhos; foi compreendendo e se preparando para a vida espiritual.
Pouco a pouco as suas orações a conduziram ao desvelamento da realidade
espiritual, fazendo-a, enfim, compreender ser esta a única realidade de fato.
Deus
é o eterno presente. Nele se encontram todos os tempos, todos os lugares, todas
as coisas. São as limitações humanas que impõe a percepção do continuar do
tempo e da expansão do espaço. Mas na Mente do Criador, Tudo significa todas as
coisas no mesmo instante A física já provou a inexistência efetiva nem do tempo
nem do espaço. Desde a antiguidade pré-histórica do Egito Hermes Trimegisto já
pontificara que Tudo está em Deus e que, por isso, a realidade tal qual a compreendemos,
é mental, não uma efetividade. Os místicos quando iluminam sua compreensão da
Grande Obra sentem a necessidade de se desligar das coisas da matéria, porque
não há mais sentido na compreensão fragmentada da realidade própria da mente
humana.
E,
para os que não se elevaram no plano da Criação, tudo isso parecerá perigosa
loucura.
Em
um famoso romance de Hermann Hesse, o Jogo das Contas de Vidro, há um sensível
personagem, um sábio professor de música, quem dedicou toda a sua existência à
compreensão da harmonia dos acordes e à prática do bem irrestrito. Ao final de
longas décadas de atividade, foi se alheando de toda a realidade, se pondo num
estado de êxtase perpétuo, estando sempre calmo, num incessante sorriso,
aparentando não conhecer os que lhe rodeavam e totalmente indiferente a todas
as sensações físicas. Embora gozasse da perfeita saúde de seus órgãos, não se
comunicava com os próximos, embora deixasse transparecer seu profundo contentamento
com tudo a seu redor. Se integrou a tal ponto à Inteligência de Deus, que
também para o personagem inexistia o tempo e o espaço.
Eram
assim os que se iluminavam.
Embora
ninguém da família se tivesse apercebido, tal foi o que aconteceu a Cecília. Imiscuiu-se
a tal ponto na infinitude de Deus que traspassou a segmentação das coisas, do
tempo e do espaço por partes. Tudo, como o Criador, passou a ser unívoco, sem
quaisquer divisões. Ainda no início do processo imaginou quanto seria tormentoso
a um ser humano caso gozasse da onisciência do Todo. Como seria insuportável
saber e sentir todas as dores de todas as mortes e de todos os sofrimentos e
malogros universais. Como seria inumana a capacidade de viver todas as dores de
todas as mães que perderam os filhos, de todas as esposas que não tinham mais
maridos, de todos os amantes abandonados com crueldade, de todos os órfãos
famintos... Se não temos condições tantas vezes de suportar os míseros
sofrimentos de uma única existência, que dizer então de todas elas cumuladas ao
longa das eras e em todos os lugares? Teve um vislumbre, assim, da dolorosa
angústia de Jesus, no seu diálogo com o Pai, narrada por José Saramago na sua
obra ficcional O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Com
o aprofundamento desse estado místico, no entanto, tudo foi se reunindo,
deixando clara a realidade unívoca que de fato existe por detrás das limitações
do intelecto humano. Descobriu curiosamente que Deus não é cartesiano, razão pela
qual não divide as coisas no máximo de fragmentos possíveis e nem busca explicá-las
por partes. Há uma só, indivisível e única realidade. E foi assim que ela
também passou a compreender o mundo.
Não
havia mais as diferentes épocas da vida. Um tempo em que foi criança, outro
adolescente e um terceiro adulta. Não tinha mais a época de solteira, de jovem
casada, de mãe inexperiente e de avó zelosa. Os filhos não tinham mais
diferentes idades e tempos distintos. Eram ao mesmo tempo as crianças turronas,
os adolescentes apaixonados, os pais nervosos e os maridos ciumentos.
Fideralina não era mais aquela lembrança distante da mocidade quase esquecida.
Convivia agora sem nenhum estranhamento com os filhos, netos e bisnetos. Todos
num único tempo e no mesmo espaço.
Aquilo
que a família lastimava como uma doença terrível, Cecília vivia como um glorioso
êxtase, pois somente nesse grau de compreensão desapareceram as dores das
mortes, a separação dos queridos, as saudades dos tempos idos. Tudo era
presente e imutável.
Mãe
Didinha! Minha amada Fideralina, dizia ela diante da incompreensão dos
ouvintes, cuidado com esse querido capeta do Gustavinho, ele ainda lhe põe a
perder. Ele é criança, mas também é pai de dois lindos filhinhos. Se parecem
com os da família. É uma criança tão estudiosa, mas também um homem tão
trabalhador. Sempre fiel à família. Veja quem chega! É o papá. Vem em companhia
de Papai Gustavo, que é seu tio e avô do meu marido Gustavo. Veja que confusão
essa de ser parente dos dois lados na família. Só você mesma, Mãe Didinha, para
aprontar dessas... Papá está feliz, repare, porque quando se lembra do seu amor
por mamã se põe em regozijo. Bem sei que mamã não é mais uma mulher triste. Ainda
hoje papá estará com ela e não precisam se separar. Nunca se separaram, aliás.
Mas, e o Francisco Augusto? Francisquinho... será que já casou? Será que é
formado? Já haverá arrumado emprego? Vês como é linda a família dele! Que
mulher amorosa que tem. Ele também casou com a prima, vejam só! Como é bom ver
tanta gente reunida. Hoje estão todos aqui. Os antigos e os novos, sem faltar
ninguém. Como é bom ver todos juntos, como no final sempre estiveram. Que
alegria... Que beleza é enxergar as coisas como de verdade são...
Jorge Emicles