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quinta-feira, 12 de abril de 2018


PADRE CÍCERO, DE CRATO



                   Há vários textos elaborados por historiadores, com base racional e adotando os métodos tradicionais cartesianos, através dos quais se explora as possibilidades históricas do que não se deu. Imagine como seria o mundo, acaso os nazistas houvessem ganho a segunda guerra. Como teria se dado a hegemonia alemã sob o governo autoritário de Hitler? E se a bastilha não houvesse sido derrubada pelos revolucionários de 1789, como seria o mundo sem as cores liberais e democráticas da revolução francesa? Para eruditos do grau de Tostoi, a história se impõe independente da vontade de seus heroicos personagens, que ao final têm menor relevância que nos contam os livros. Será?
                   Mas, e se não houvesse aportado, no longínquo ano de 1872, ao desimportante lugarejo, hoje a metrópole Juazeiro, o pequeno e alvo sacerdote, vindo de Crato, que contra seus planos pessoais, após um êxtase onírico, resolveu fixar-se ali? Se não fosse aquele simplório e quase esquecido fato, não teria acontecido o milagre da hóstia, não teriam existido os dois inquéritos contra o padre, não teria havido o pujante desenvolvimento de Juazeiro, sua emancipação política, suas rixas com o Crato, e todos os demais fatos decorrentes diretos da obra do santificado patriarca de Juazeiro. Como seria o Cariri, alijado desses fatos e da imprescindível figura de padre Cícero?
                   A obviedade conduziria à primeira conclusão de que o Crato seria maior e mais importante, concentrando toda a pujança da economia caririense em seus arrogantes limites, subjugando, como sempre fez, os vizinhos menores. Tal qual intentou fazer com o Juazeiro e seu patriarca no movimento de resistência à emancipação política da comuna cicerana. Conhecendo a empáfia da elite cratense, contudo, tão bem representada pela ignomínia de Antônio Luis, chefe político de Crato ao tempo da fundação de Juazeiro, daríamos razão a Tostoi, para concluir que o Crato se aniquilaria sozinho, independente da atuação política seja do padre Cícero, seja de qualquer outra força estrangeira. A ilusão de deter um poder oligárquico e nobre, hereditário por sua própria natureza, é a grande quimera que povoa o imaginário coletivo cratense já desde suas origens, mas ainda hoje fortemente presente no pensamento de sua elite. É uma elite autofágica, portanto.
                   Tudo, sem embargos de que as demais forças políticas e econômicas locais ainda que sem a liderança do padre, se uniriam contra o Crato, como a cabo e a vez fizeram em moção de apoio à emancipação de Juazeiro. Sabidamente, haviam muitas outras questões no entorno desse apoio, como o ranço entre os líderes políticos de Milagres e Crato e o sentimento de necessidade de desenvolvimento econômico das outras localidades. Nossos historiadores talvez estejam devendo uma análise desde o enfoque das forças econômicas que se apresentaram naquela ocasião enquanto um dos mais importantes fatores da ascendência de Juazeiro.
                   Afinal, foram os chamados adventícios (os forasteiros, atraídos inicialmente pelas notícias do milagre, mas que logo formaram a base da crescente economia juazeirense), sarcasticamente chamados pelos nativos de romeiros, quem financiaram a longa luta do patriarca contra a hierarquia católica, o movimento emancipacionista da comuna, assim como a própria revolução de 1914, que galgou o padre Cícero às alturas de ser a maior liderança política de todo o nordeste brasileiro. Foi a economia quem moveu o xadrez da política. Não o contrário.
                   Talvez a inexistência da chegada do padre em 1872 até houvesse deslocado o sítio dos acontecimentos. Quiçá mesmo não tivesse vindo a ser fundada a Juazeiro, o que por certo modificaria a geografia local em vários aspectos. Mas as forças econômicas ainda assim teriam atuado sobre o sertão, em especial sobre o Cariri. A velha “coronelhada” cratense teria sucumbido à decadência de sua economia agrícola manufatureira, para dar lugar a uma nascente classe de comerciantes, que trataria de ampliar as forças de sua atuação também para os outros municípios.
                   Na mesma toada, o sentimento de orfandade do povo nordestino trataria de conceber um guia espiritual, capaz de lidera-lo e socorrê-lo em suas gritantes necessidades, capaz de dar continuidade à importante obra de Ibiapina. Mais que tudo, a sensibilidade de padre Cícero soube ser catalizadora desse sentimento enrustido no penoso e antigo sofrimento de nosso povo. Foi exatamente essa necessidade inconfessa de todo um povo que se fez representar no sonho que convenceu o patriarca a fixar-se definitivamente em Juazeiro: aqueles treze homens, postos em uma mesa, os apóstolos em volta do Nazareno; a entrada no ressinto de numerosa quantidade de retirantes, miseráveis e maltrapilhos; do lamento de Cristo para o estado de coisas do mundo atual e, por fim, do chamamento dirigido diretamente ao sacerdote: “E você, padre Cícero, tome conta deles”.
                   Os nordestinos precisavam (e ainda precisam) de um padrinho amável, resiliente e comprometido no combate a suas dores. Foi Cícero o homem que teve a sensibilidade e coragem de encarnar essa luta. Pagou o preço da perseguição, tendo sido afastado das ordens e por várias outras formas vilipendiado em sua dignidade. Colheu também os frutos, tendo se tornado o santo popular do Brasil, absolutamente alheio aos desidiosos ritos do processo canônico. Mas para além de suas lutas, manteve o apego às suas raízes tradicionais. Conforme ele mesmo se definiu, “sou filho do Crato, é certo, mas Joazeiro é meu filho”
Jorge Emicles

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