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sexta-feira, 6 de abril de 2018


A TEMEROSA PRISÃO



                   Brasil em polvorosa. Decretada a prisão do ex-Presidente da República. Até parece notícia requentada, tão decantado já havia sido a previsão do fato. As ruas seguem aparentemente indiferentes ao ocorrido, mas no silêncio do atribulado cotidiano percebe-se algo estranho. Uma energia sutil a denunciar não ser este mais um apenas, entre outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. Nunca antes na história desse país um ex-Presidente foi preso por corrupção. E, ao que parece, as cadeias de Curitiba não comportarão o tanto de novos condenados que estão por vir. O Brasil mudou. Definitivamente. Mas estará mesmo se transmudando em um país melhor? Em quanto, afinal, nosso povo se modificou através dessa tão penosa provação histórica?
                   Nas redes sociais as opiniões se dividem. Como sempre e cada vez de forma mais acirrada. Há os que comemoram, agendam churrascos com o propósito de festejo. Há os que se indignam, lembrando o legado deixado pela sua administração, denunciando a superior compreensão de mundo pelas esquerdas, o que motiva a lastimável perseguição política ao líder maior, inconteste virtual vencedor das eleições que se aproximam.
                   Os atos de resistência que vem sendo agendados a exaustão nos parecerão vazios e inúteis. Saramago já alertou que se as manifestações pacíficas de vero resolvessem o âmago dos problemas que denunciam, simplesmente seriam proibidas pelos governos do mundo. Talvez seja uma forma de se enaltecer o estar vivo, capaz de se interpor contra a poderosa máquina estatal, que a tudo manipula e determina desde a arbitrária arrogância dos detentores do poder simbólico. De que valerão os brados de injustiça, os discursos constitucionalistas e os alertas contra a dominação se os injustiçados todos seguirem na mesma miséria, no mesmo cárcere, na mesma ignorância? Gritar talvez seja uma maneira de não nos sentirmos inúteis e impotentes contra a incontrolável força da história, que secamente nos impõe a realidade da vida em absoluta indiferença a nossos sonhos, crenças e obstinações.
                   A esta altura dos acontecimentos nem nos preocupamos mais se o malfazejo apartamento triplex foi mesmo o pagamento de propina; se de fato pertence ao ex-Presidente ou mesmo qual teria sido o ato por ele praticado em troca da vantagem ilícita. Quase não tem mais importância a egocêntrica necessidade de um juiz construir uma sentença com mais de cem páginas (ele deve ser capaz de publicar um livro para cada sentença de prolata) sem deixar de maneira límpida e inequívoca para todo o país estas evidências, que são elementos centrais do tipo penal e por isso condicionantes legais de uma condenação com base no direito.
                   No momento em que a mídia nacional repercute uma única notícia, num desafinado samba de uma nota só, a culpabilidade do preso até nos parece questão menor, porque diferente dos indignados pela injustiça ou dos felizes paladinos da boa moral, somente conseguimos mirar a atenção ao sistema penitenciário daqui e de alhures. Não enxergamos o líder perseguido pelos algozes nem o corrupto flagrado com as mãos sujas. Vemos um senhor de tez abatida, sofrimento indisfarçável mesmo por trás do sorriso fácil de sempre; recentemente enviuvado e cujas causas remotas do passamento da companheira de tantos anos estão ineludivelmente ligadas ao processo que sofreu; senhor de vida confortável e frequentemente chamado a intervir nos grandes temas nacionais, de repente jogado na ignomínia do cárcere, alijado de sua honra, despido de sua liderança, degenerado em sua autoridade.
                   Pena maior que ser dilapidado moralmente todos os dias e em horário nobre da televisão não haverá. Pior punição que receber achincalhes cotidianos através das redes sociais não existirá. Apenado, portanto, ele já está sem que em nenhum instante a mídia social tenha se atentado sobre o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência. Encarcerar, contudo, um senhor de mais de setenta anos, privando-o dos últimos anos de convívio com o que lhe restou da família; sem lhe permitir pôr os netos ao colo e regozijar-se de suas inocentes traquinagens... ah, isso já é desumano! E é nesse instante onde questionamos até que ponto de fato e diante dos sofrimentos morais que atravessamos como povo os últimos anos, nós brasileiros nos tornamos melhores. O radicalismo das opiniões contra e a favor da prisão nos denoda uma resposta pessimista.
                   O ex-Presidente será alojado em dependências de relativo conforto, o que ainda assim não descaracteriza o fato do cárcere. Mas, e os milhões de outros presos em condições absolutamente desumanas, submetidos a ambientes tão inóspitos que a alocação de uma criatura viva em tais dependências em si mesmo é terrível ato de tortura física e moral? A pergunta de fundo, a que não quer nem pode calar é por quais razões submetemos seres humanos à tortura regrada e legitimada pelo Estado, diante do hipócrita discurso da pena como instrumento de ressocialização. É preciso mesmo perguntar em que grau os cidadãos encarcerados nos presídios brasileiros se melhoram como pessoas e se reintegram alegremente à sociedade. Por mais desumanos que tenham sido seus praticados, o que nos legitima a acharmos correto o encarceramento de algum ser humano? (Como diria Kundera, nós e eles, todos defecamos, o que nos torna iguais). Afinal, o que mesmo pretendem dizer os constitucionalistas mundo afora quando advogam a supremacia do princípio da dignidade humana e a efetividade dos direitos fundamentais? Não teria razão Lassalle ao denunciar as constituições como meros pedaços de papel sujos de tinta?
                   É lastimável a prisão de um ex-Presidente da República, que já ostentou a bandeira de ser um grande líder nacional. Mais temeroso, contudo, é acharmos correto o tratamento desumano e indigno dirigido aos nossos presidiários. Revoltante mesmo é o silêncio de nossas autoridades constituídas diante desse secular mal. Afinal, por qual nome acoimaríamos um juiz que conscientemente envia um seu jurisdicionado ao sistema legal de tortura chamado presídio? Onde terá acesso ao mais desumano dos tratamentos, franqueado o direito de ingressar no crime organizado, o verdadeiro comandante do sistema prisional?
                   Se não é honesto o nome desse ato, então por certo será exemplo de mais uma patologia corruptiva praticada todos os dias, por todas essas autoridades. Que pena mereceria esse juiz hipotético, então?

Jorge Emicles

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