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domingo, 15 de abril de 2018


SÍRIOS DO MUNDO INTEIRO, UNI-VOS!



                   Tuas origens são quase mais antigas que a história da humanidade. Teus feitos, oh mãe Síria, se contam há mais de cinquenta séculos. Sempre fostes grande, forte e impoluta. Tua vocação, a de compor impérios os mais matizados. Pertencestes dos fenícios a Alexandre e mesmo na pós-modernidade da pseudo dignidade humana continuas cobiçada pelas culturas de todo o mundo. Pretendem te desposar ainda, mesmo pela violência, a pafiosa Rússia, o fanático Isis, o arrogante franco e o inculto ianque.
                   O ouro pelo qual te cobiçam é tua cultura.
                   Tu és rica em valores, em história, mas sobretudo, tua maior riqueza é teu povo guerreiro e sábio. De teu solo (quando em ti habitava a Líbia), brotou Hiran Abiff, o arquiteto do grande templo de Salomão, o guardião da sagrada arca e o sítio onde ainda hoje lamentam os judeus sua triste sina. Hiran, o guardião dos maiores segredos da humanidade, que três vezes morreu para não revelar os enigmas do templo sagrado. Também és a gentil mãe de Gilbran, poeta sublime que em suas doces palavras cantou ao mundo tuas belezas e a infinita sabedoria que guardada em tua cultura. A sabedoria do profeta, a simplicidade da mestria, a divindade do Cristo. Tudo isso, foste tu, mãe Síria, quem ensinaste ao sutil poeta Gilbran. E o mundo seguirá te agradecendo não somente a poesia, mas também as próprias letras, matéria prima de qualquer poeta, pois também é de tua inesgotável cultura que surgiu o alfabeto.
                   Mas Damasco não está em paz, na opulenta e calma guarda de todos os mistérios da humanidade. Damasco está em guerra, bombardeada e vilipendiada em sua dignidade de mãe de riquezas insondáveis. A ganância dos homens põe em risco todos os seus infinitos tesouros, vilipendia toda a sua incontestável autoridade. Te golpeiam e te expõe as vísceras já tão cheias de cicatrizes pela necessidade do ego, pela desonestidade da ganância e pela imbecilidade da propaganda. Nenhum dos teus agressores de verdade quer libertar teu povo, mas submetê-lo a novas opressões. Qualquer deles honestamente não está interessado em estancar tuas dores, preocupado em poupar um filho teu que seja, oh mãe Síria.
                   Se não querem que tuas criancinhas morram de fome ou de balas, pois que parem todos de atirar nelas!
                   Teus filhos, tão dizimados que já foram, por tantas e imemoriáveis guerras, hoje habitam o mundo todo. Mas mesmo os exilados, até os que ganharam novas pátrias adotivas, todos ainda sentem teu quente sangue correr por suas veias e lá no fundo, mesmo que não lembrem, ainda se revoltam contra as infames agressões que sofres. Ainda oram inconscientemente pela pacificação de tua pátria, pela renovação de tuas gerações e pela esperança de que as próximas gerações de teus filhos desconheçam os horrores da guerra e se esqueçam do ocre cheio de sangue queimado por balas e bombas.
                   Filhos da Síria, unamo-nos em oração em prol da nossa amada mártir!

Jorge Emicles

quinta-feira, 12 de abril de 2018


PADRE CÍCERO, DE CRATO



                   Há vários textos elaborados por historiadores, com base racional e adotando os métodos tradicionais cartesianos, através dos quais se explora as possibilidades históricas do que não se deu. Imagine como seria o mundo, acaso os nazistas houvessem ganho a segunda guerra. Como teria se dado a hegemonia alemã sob o governo autoritário de Hitler? E se a bastilha não houvesse sido derrubada pelos revolucionários de 1789, como seria o mundo sem as cores liberais e democráticas da revolução francesa? Para eruditos do grau de Tostoi, a história se impõe independente da vontade de seus heroicos personagens, que ao final têm menor relevância que nos contam os livros. Será?
                   Mas, e se não houvesse aportado, no longínquo ano de 1872, ao desimportante lugarejo, hoje a metrópole Juazeiro, o pequeno e alvo sacerdote, vindo de Crato, que contra seus planos pessoais, após um êxtase onírico, resolveu fixar-se ali? Se não fosse aquele simplório e quase esquecido fato, não teria acontecido o milagre da hóstia, não teriam existido os dois inquéritos contra o padre, não teria havido o pujante desenvolvimento de Juazeiro, sua emancipação política, suas rixas com o Crato, e todos os demais fatos decorrentes diretos da obra do santificado patriarca de Juazeiro. Como seria o Cariri, alijado desses fatos e da imprescindível figura de padre Cícero?
                   A obviedade conduziria à primeira conclusão de que o Crato seria maior e mais importante, concentrando toda a pujança da economia caririense em seus arrogantes limites, subjugando, como sempre fez, os vizinhos menores. Tal qual intentou fazer com o Juazeiro e seu patriarca no movimento de resistência à emancipação política da comuna cicerana. Conhecendo a empáfia da elite cratense, contudo, tão bem representada pela ignomínia de Antônio Luis, chefe político de Crato ao tempo da fundação de Juazeiro, daríamos razão a Tostoi, para concluir que o Crato se aniquilaria sozinho, independente da atuação política seja do padre Cícero, seja de qualquer outra força estrangeira. A ilusão de deter um poder oligárquico e nobre, hereditário por sua própria natureza, é a grande quimera que povoa o imaginário coletivo cratense já desde suas origens, mas ainda hoje fortemente presente no pensamento de sua elite. É uma elite autofágica, portanto.
                   Tudo, sem embargos de que as demais forças políticas e econômicas locais ainda que sem a liderança do padre, se uniriam contra o Crato, como a cabo e a vez fizeram em moção de apoio à emancipação de Juazeiro. Sabidamente, haviam muitas outras questões no entorno desse apoio, como o ranço entre os líderes políticos de Milagres e Crato e o sentimento de necessidade de desenvolvimento econômico das outras localidades. Nossos historiadores talvez estejam devendo uma análise desde o enfoque das forças econômicas que se apresentaram naquela ocasião enquanto um dos mais importantes fatores da ascendência de Juazeiro.
                   Afinal, foram os chamados adventícios (os forasteiros, atraídos inicialmente pelas notícias do milagre, mas que logo formaram a base da crescente economia juazeirense), sarcasticamente chamados pelos nativos de romeiros, quem financiaram a longa luta do patriarca contra a hierarquia católica, o movimento emancipacionista da comuna, assim como a própria revolução de 1914, que galgou o padre Cícero às alturas de ser a maior liderança política de todo o nordeste brasileiro. Foi a economia quem moveu o xadrez da política. Não o contrário.
                   Talvez a inexistência da chegada do padre em 1872 até houvesse deslocado o sítio dos acontecimentos. Quiçá mesmo não tivesse vindo a ser fundada a Juazeiro, o que por certo modificaria a geografia local em vários aspectos. Mas as forças econômicas ainda assim teriam atuado sobre o sertão, em especial sobre o Cariri. A velha “coronelhada” cratense teria sucumbido à decadência de sua economia agrícola manufatureira, para dar lugar a uma nascente classe de comerciantes, que trataria de ampliar as forças de sua atuação também para os outros municípios.
                   Na mesma toada, o sentimento de orfandade do povo nordestino trataria de conceber um guia espiritual, capaz de lidera-lo e socorrê-lo em suas gritantes necessidades, capaz de dar continuidade à importante obra de Ibiapina. Mais que tudo, a sensibilidade de padre Cícero soube ser catalizadora desse sentimento enrustido no penoso e antigo sofrimento de nosso povo. Foi exatamente essa necessidade inconfessa de todo um povo que se fez representar no sonho que convenceu o patriarca a fixar-se definitivamente em Juazeiro: aqueles treze homens, postos em uma mesa, os apóstolos em volta do Nazareno; a entrada no ressinto de numerosa quantidade de retirantes, miseráveis e maltrapilhos; do lamento de Cristo para o estado de coisas do mundo atual e, por fim, do chamamento dirigido diretamente ao sacerdote: “E você, padre Cícero, tome conta deles”.
                   Os nordestinos precisavam (e ainda precisam) de um padrinho amável, resiliente e comprometido no combate a suas dores. Foi Cícero o homem que teve a sensibilidade e coragem de encarnar essa luta. Pagou o preço da perseguição, tendo sido afastado das ordens e por várias outras formas vilipendiado em sua dignidade. Colheu também os frutos, tendo se tornado o santo popular do Brasil, absolutamente alheio aos desidiosos ritos do processo canônico. Mas para além de suas lutas, manteve o apego às suas raízes tradicionais. Conforme ele mesmo se definiu, “sou filho do Crato, é certo, mas Joazeiro é meu filho”
Jorge Emicles

sexta-feira, 6 de abril de 2018


A TEMEROSA PRISÃO



                   Brasil em polvorosa. Decretada a prisão do ex-Presidente da República. Até parece notícia requentada, tão decantado já havia sido a previsão do fato. As ruas seguem aparentemente indiferentes ao ocorrido, mas no silêncio do atribulado cotidiano percebe-se algo estranho. Uma energia sutil a denunciar não ser este mais um apenas, entre outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano. Nunca antes na história desse país um ex-Presidente foi preso por corrupção. E, ao que parece, as cadeias de Curitiba não comportarão o tanto de novos condenados que estão por vir. O Brasil mudou. Definitivamente. Mas estará mesmo se transmudando em um país melhor? Em quanto, afinal, nosso povo se modificou através dessa tão penosa provação histórica?
                   Nas redes sociais as opiniões se dividem. Como sempre e cada vez de forma mais acirrada. Há os que comemoram, agendam churrascos com o propósito de festejo. Há os que se indignam, lembrando o legado deixado pela sua administração, denunciando a superior compreensão de mundo pelas esquerdas, o que motiva a lastimável perseguição política ao líder maior, inconteste virtual vencedor das eleições que se aproximam.
                   Os atos de resistência que vem sendo agendados a exaustão nos parecerão vazios e inúteis. Saramago já alertou que se as manifestações pacíficas de vero resolvessem o âmago dos problemas que denunciam, simplesmente seriam proibidas pelos governos do mundo. Talvez seja uma forma de se enaltecer o estar vivo, capaz de se interpor contra a poderosa máquina estatal, que a tudo manipula e determina desde a arbitrária arrogância dos detentores do poder simbólico. De que valerão os brados de injustiça, os discursos constitucionalistas e os alertas contra a dominação se os injustiçados todos seguirem na mesma miséria, no mesmo cárcere, na mesma ignorância? Gritar talvez seja uma maneira de não nos sentirmos inúteis e impotentes contra a incontrolável força da história, que secamente nos impõe a realidade da vida em absoluta indiferença a nossos sonhos, crenças e obstinações.
                   A esta altura dos acontecimentos nem nos preocupamos mais se o malfazejo apartamento triplex foi mesmo o pagamento de propina; se de fato pertence ao ex-Presidente ou mesmo qual teria sido o ato por ele praticado em troca da vantagem ilícita. Quase não tem mais importância a egocêntrica necessidade de um juiz construir uma sentença com mais de cem páginas (ele deve ser capaz de publicar um livro para cada sentença de prolata) sem deixar de maneira límpida e inequívoca para todo o país estas evidências, que são elementos centrais do tipo penal e por isso condicionantes legais de uma condenação com base no direito.
                   No momento em que a mídia nacional repercute uma única notícia, num desafinado samba de uma nota só, a culpabilidade do preso até nos parece questão menor, porque diferente dos indignados pela injustiça ou dos felizes paladinos da boa moral, somente conseguimos mirar a atenção ao sistema penitenciário daqui e de alhures. Não enxergamos o líder perseguido pelos algozes nem o corrupto flagrado com as mãos sujas. Vemos um senhor de tez abatida, sofrimento indisfarçável mesmo por trás do sorriso fácil de sempre; recentemente enviuvado e cujas causas remotas do passamento da companheira de tantos anos estão ineludivelmente ligadas ao processo que sofreu; senhor de vida confortável e frequentemente chamado a intervir nos grandes temas nacionais, de repente jogado na ignomínia do cárcere, alijado de sua honra, despido de sua liderança, degenerado em sua autoridade.
                   Pena maior que ser dilapidado moralmente todos os dias e em horário nobre da televisão não haverá. Pior punição que receber achincalhes cotidianos através das redes sociais não existirá. Apenado, portanto, ele já está sem que em nenhum instante a mídia social tenha se atentado sobre o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência. Encarcerar, contudo, um senhor de mais de setenta anos, privando-o dos últimos anos de convívio com o que lhe restou da família; sem lhe permitir pôr os netos ao colo e regozijar-se de suas inocentes traquinagens... ah, isso já é desumano! E é nesse instante onde questionamos até que ponto de fato e diante dos sofrimentos morais que atravessamos como povo os últimos anos, nós brasileiros nos tornamos melhores. O radicalismo das opiniões contra e a favor da prisão nos denoda uma resposta pessimista.
                   O ex-Presidente será alojado em dependências de relativo conforto, o que ainda assim não descaracteriza o fato do cárcere. Mas, e os milhões de outros presos em condições absolutamente desumanas, submetidos a ambientes tão inóspitos que a alocação de uma criatura viva em tais dependências em si mesmo é terrível ato de tortura física e moral? A pergunta de fundo, a que não quer nem pode calar é por quais razões submetemos seres humanos à tortura regrada e legitimada pelo Estado, diante do hipócrita discurso da pena como instrumento de ressocialização. É preciso mesmo perguntar em que grau os cidadãos encarcerados nos presídios brasileiros se melhoram como pessoas e se reintegram alegremente à sociedade. Por mais desumanos que tenham sido seus praticados, o que nos legitima a acharmos correto o encarceramento de algum ser humano? (Como diria Kundera, nós e eles, todos defecamos, o que nos torna iguais). Afinal, o que mesmo pretendem dizer os constitucionalistas mundo afora quando advogam a supremacia do princípio da dignidade humana e a efetividade dos direitos fundamentais? Não teria razão Lassalle ao denunciar as constituições como meros pedaços de papel sujos de tinta?
                   É lastimável a prisão de um ex-Presidente da República, que já ostentou a bandeira de ser um grande líder nacional. Mais temeroso, contudo, é acharmos correto o tratamento desumano e indigno dirigido aos nossos presidiários. Revoltante mesmo é o silêncio de nossas autoridades constituídas diante desse secular mal. Afinal, por qual nome acoimaríamos um juiz que conscientemente envia um seu jurisdicionado ao sistema legal de tortura chamado presídio? Onde terá acesso ao mais desumano dos tratamentos, franqueado o direito de ingressar no crime organizado, o verdadeiro comandante do sistema prisional?
                   Se não é honesto o nome desse ato, então por certo será exemplo de mais uma patologia corruptiva praticada todos os dias, por todas essas autoridades. Que pena mereceria esse juiz hipotético, então?

Jorge Emicles

segunda-feira, 2 de abril de 2018


GUARAMIRANGA




                   Subir os numerosos degraus daquela vasta escadaria que conduz à bela igreja matriz de Guaramiranga é quase como elevar-se em espírito às alturas do firmamento, tão pululante são as lembranças que avivam ao espírito. Lembranças de um tempo passado, por tão pouco não esquecido. Um tempo vivido por outros olhos e sentido por outros corações. Mas algo tão firme de vida, que por gerações afora segue palpitando nas arritmias da descendência.
                   No topo da escadaria um sofrido Cristo, vividamente pregado à cruz eterna que carrega em benefício da humanidade inteira, placidamente perdoando a todos os pecantes por seus males e vilezas escandidos. Não importam as vossas torpezas, anuncia o Cristo, o arrependimento sincero vos perdoará sem titubeio. É para isto o rubro do meu sangue e a imensurabilidade da minha dor. Perdoem uns aos outros, anuncia, e o mundo inteiro se cobrirá do mais plácido e eterno amor!
                   É semana santa. Nada mais penetrante haveria que essa insofismável mensagem, infinitamente mais charmosa e bela que a secular arquitetura à sua volta e mesmo que a exuberante paisagem ao fundo. Diante do tocante anúncio de amor e perdão crístico, até pereceria menos bela a construção que guarnece o altar que protege a bela imagem de Maria, símbolo do superior amor materno, novamente a espraiar este infinito sentimento a toda essa sofrida e tola humanidade. Igualmente menor, diante desse sentir, até pareceria a cândida estátua de São Francisco no mosteiro também cravado na mesma cidade serrana.
                   A vastidão de águas que guarnece a localidade, com tantas cachoeiras e correntes firmes, por onde limpam a terra das impurezas dos pensamentos humanos, mas igualmente renovam a natureza através do ciclo incessante da vida. Nunca haverá morte nos domínios da mãe natureza, mas na verdade, a perene renovação da vida, que evolui e se renova a cada novo ciclo de existência. Como essa realidade simples e profunda deveria servir à nossa ingênua espécie! Os sentimentos verdadeiros não se findarão jamais, mas se renovarão sempre, no ritmo das correntes de vida que habitam nossa existência. Sempre renascerão a cada novo ciclo, maiores e mais perfeitos que nunca, até a maturidade plena, quando então se elevarão a superiores níveis da existência cósmica.
                   Mirar o Cristo morto e sofrido, mais ainda que inerte anunciando a renovação da vida; espiar o passar monótono das águas, que mesmo diante das tortuosidades do rio não possui qualquer dúvida sobre qual será o seu destino... Observar a isso placidamente, compreendendo a calma e rotina com que esses ciclos se repetem, serve mesmo de alento ao desejo de sermos melhores. A tortuosidade da vida não haverá de nos abalar, desde que saibamos que nosso verdadeiro propósito é o de trilharmos o caminho de volta, que é o caminho do Cristo. Somente através da capacidade do perdão e da renovação é por onde chegaremos lá.
                   O amor, se é verdadeiro, jamais nos abandonará. Segurar as mãos certas enquanto se contempla o Cristo morto ou se deleita com a viagem das águas é suficiente para compreender essa sublime, indelével, mas ao mesmo tempo profunda e simples verdade...

Jorge Emicles