VAI PASSAR - CONTO
(DO LIVRO CONVERSAS COM A MORTE)
I.
Um turbilhão incontrolável de imagens,
sons, e, sobretudo, sentimentos povoou sua mente sem qualquer prévio aviso. Era
tudo tão intenso e vivo, que a própria realidade não se apresentaria tão
veemente. Naquele instante, porém, não haveria mesmo como distinguir a vigília
do onírico. Estava naquele estágio onde o realismo era tal que dor, sofrimento
ou alegria se apresentavam em vivacidade tamanha que tudo efetivamente era;
onde não caberia existir a imaginação, nem mesmo o delírio. Verdade que não é muito
comum termos consciência deste estado, mas acontece com freqüência maior que
somos capazes de aperceber de estarmos nele, onde nada existe separadamente,
sendo tudo um conjunto uniforme e inseparável. Como se todas as coisas, todos
os lugares e todas as pessoas formassem um único bloco, uma só e insuperável
realidade, em que absolutamente nada estivesse fora dela. Talvez seja assim que
Deus perceba o cotidiano de nós, suas sofridas criaturas humanas. O tempo e o
espaço seriam dimensões pequenas demais para Sua imensurável consciência, por
isto não deve mesmo perceber o perpassar das eras, o evoluir das gerações, os
clamores, as ofensas e orações repetidos incessantemente por já tantos
milênios. Tudo deve Lhe chegar como um som uníssono, repetido na constância de
um mantra. Lhe parecerá, talvez, que seja uma somente a mãe que lamuria a perda
do filho; o órfão que lastima a fome; o idealista que morre para mudar o mundo;
o amante desprezado; o pai drogado que maltrata a família; a amante que
sacrifica seus sonhos em nome de um amor que perecerá pela sua própria vontade
de ser eterno. Lhe parecerá que há somente um doente, em perene sofrimento,
rogando no âmago de sua dor por uma solução extrema, porém rápida a sua peleja:
a morte ranha ou a vida plena.
Se é tal qual ela agora que Deus percebe
a realidade universal não se sabe, nem se poderia pretender que soubesse
qualquer humano desta espécie, por mais assenhoreado que fosse das coisas
Superiores. Muito menos àquela pobre menina se poderia pretender tanto, pois
que além de jovem, cuida de problemas mais mundanos e se preocupa com as dores
dos homens, de sua realidade mais material, de seus sofrimentos mais atrozes,
daqueles que Deus, por ser Supremo, não tem como perceber. Coisas afinal de
contas pequenas demais para consciência tão Alta. O que sabe é que todos os
fatos que se deram com ela; todos os sentimentos que viveu; todas as pessoas
que conheceu encontram-se todas juntas, embaralhadas e fora de foco, como
teriam de estar sem a dimensão do tempo e do espaço que nos traduz o que
conhecemos por realidade. Naquele estado não lhe pareceu sequer estranho o
fenômeno, pois tudo se apresentava como lhe percebia deveria se dar. Ali as coisas eram, sem qualquer
racionalização ou ordem esperada. Na história dessa menina não há uma seqüencia
lógica ou cronológica dos fatos porque foram assim exatamente que se deram. Na
essência, passaram-se mesmo foi simultaneamente, como se fossem a transmissão
de diversos canais de televisão funcionando todos ao mesmo tempo, cujas
frenquencias estranhamente se embaralhavam. Como não há inteligência para
contar juntas todas as coisas de uma história, assim é que a capacidade deste
simplório narrador conseguiu traduzi-los em palavras.
II.
Um turbilhão imenso de água é a imagem na
qual se concentra primeiro. Para algum urbano morador de qualquer metrópole,
parecerá inimaginável que exista tamanha quantidade de água acumulada. Talvez
somente nos oceanos. Mas em regra, as águas oceânicas, tirante as ocasiões de
revoltas tempestades, que afinal de contas são mais raras que se propaga,
costumam se apresentar calmas e convidativas para a exploração. Aquelas águas
que via a menina, não. Eram caudalosas e corriam numa constância única, quase
sem sofrer as influências de outros fatores físicos, como os que o vento e a
lua fazem com o mar. Na verdade, observando com acuidade, se verifica que são
dois os turbilhões, vindos de diferentes direções e naturalmente se misturando
para seguir um curso único. Para a menina, que lha apresentamos como Elza, essa
é uma das mais antigas lembranças que tem da infância, quando era trazida até a
orla de sua cidade natal, para apreciar o caloroso encontro das águas de dois
gigantes, o rio Tapajós, que ali morria, com o rio Amazonas, que agora
alimentado da imensurável vazão do outro grande rio, seguia sua trilha até o
mar, do qual somente muito mais tarde teria a oportunidade de admirar, quando
já nem menina era. Por enquanto não. Seu mar da meninice cabocla era aquela
orla de fofo areal, onde corria e se banhava nua, como as índias ancestrais de
sua mãe certamente fizeram ainda quando por ali o que existia era uma tribo de
belos e valentes guerreiros; de formosas e prendadas índias; de gente feliz e
satisfeita, como não se consegue encontrar nem nas grandes, nem nas pequenas
cidades dos brancos.
Para a menina Elza, contudo, nada disso
existia. O que havia era somente o prazer puritano de mergulhar em pelos nas
águas do Tapajós e depois deixar-se secar pelo vento, com a naturalidade que se
esperaria de qualquer índia nascida e criada na Pérola do Tapajós, descendente
dos remanescentes indígenas que antes da invasão dos padres habitaram aquelas
paragens. A tez da menina sempre fora de índia. Do pai puxara um pouco da
brancura da pele, mas os cabelos negros, o porte pequeno dos indígenas
amazônicos, o corte de cabelo típico, que sempre conservou e do qual sempre
teve orgulho, além das grandes bijouterias que desde sempre habituara a manter
como enfeites corporais, como eram os brincos, colares, pulseiras e tantos mais,
não deixavam qualquer dúvida de sua natureza de índia, que não conseguiria
mesmo adaptar-se a outra forma de viver senão prenhe dos valores do seu povo.
Imediatamente, da orla do Tapajós deslocou-se mentalmente apenas um quarteirão,
e já estava na velha escola Frei Ambrósio, onde aprendeu suas primeiras letras,
mas sobretudo onde conheceu os ardores da paixão e as conseqüências dele
advindas. Mas não é disso que se lembra agora, mas sim das carreiras que deu
nos velhos corredores daquela escola, que lhe disseram era a mais antiga da
cidade. Numa foto mental, ela se viu pequenininha trajando o conhecido uniforme
da escola. No mesmo instante, corria pelas ruas de uniforme e com uma velha
mochila postada às costas, dirigindo-se para casa, morta de fome após a aula e
ansiosa para descobrir que delícia sua mãe teria preparado para o almoço da
família. Nunca fora rica a menina Elza, porém teve a mais feliz das infâncias.
III.
De repente aparece no quadro mental
Gabriel. Como sempre, estava garboso e irresistível, mas de uma maneira muito
especial daquela vez. Seus cabelos estavam mais negros e finos, sua pele mais
bronzeada ainda que quando o conheceu. Na realidade dos fatos, Gabriel lha fora
apresentado num tempo em que a menina não mais corria sem pecados nas ruas de
Santarém, no qual as maiores preocupações que tinha era o cardápio do almoço;
as brincadeiras na rua onde morava; os segredos inocentes que trocava com as
amiguinhas da vizinhança. No onírico estado em que se encontrava, porém, não
haveria como separar as lembranças no tempo. Gabriel, as brincadeiras da
infância e mesmo as pelejas que vieram depois dele eram tudo um amontoado só de
coisas, que instigavam seu coração e povoavam sua mente exatamente com a mesma
indelével intensidade. Como se (e de fato era assim) tudo estivesse ocorrendo
ao mesmo tempo. A visão mental do mancebo, contudo, lha irradiava paz de
maneira que mesmo diante do imenso sofrimento a dor se desacelerava,
tornando-se quase, por um instante que fosse, quase que suportável.
Primeiro Gabriel lha apareceu muito
jovem, ainda com rosto de menino, tal qual da primeira vez o vira. Ela uma
indiazinha se metendo a mulher, que fazia pouco experimentara seu primeiro
soutean, já atenta ao turbilhão hormonal do amor que se avizinhava e findou por
apresentar-se no corpo bem formado daquele gajo, que sem pedir licença foi
chegando, lha beijando e tocando o corpo nas partes que conseguiu, e mais ainda
teria feito logo no primeiro encontro, não fosse a heróica resistência da
menina, inocente, mas já prevenida pela mãe dos perigosos tormentos da paixão.
Os conselhos maternos não valeram tanto assim, porque logo ao terceiro encontro
a jovem cedeu, e com prazer natural e ao mesmo tempo sobre humano se deu ao seu
macho, sem nenhum pingo de remorso, medo ou dúvida. Se entregou com a rara
certeza de que ali estava para todo o sempre o amor mais caro e único de sua
vida. Com o mesmo destemor continuaram se vendo por um bom par de anos. Mas, de
repente, a imagem do homem envelhece um pouco. Não muito, fique claro, porque
temporalmente falando, haveriam de ter-se passado não mais que cinco, talvez
seis anos. Embora moço, contudo, o que viu Elza, que pode-se dizer era ainda uma
menina, foi um rosto inerte, desacordado e já com as cores da morte. Tal qual o
viu deitado naquela pista, rodeado de mórbidos e desconhecidos curiosos, que
aqui e ali soltavam comentários desrespeitosos. Ao lado do corpo, a motocicleta
que fora tolhida violentamente por um auto, o qual logo em seguida fugira e de
cujo motorista jamais se teve qualquer notícia, senão a conversa passada à boca
miúda de que na certa se trataria de um tal filho de gente influente na cidade,
eternamente protegido pelo manto poderoso da impunidade. E apesar de tantos
momentos felizes, foi a última imagem de Gabriel, a que mais atormentava Elza
mesmo já passados um bom bocado de anos.
IV.
Misturada à tez mórbida daquele último
encontro, ainda apareceu-lhe vigorante, às vezes com cara de raiva, produto dos
momentos de briga, outras com ternura e inesgotável carinho. Gabriel recebeu a
virgindade de Elza como muito poucos jovens são capazes de compreender a
dimensão daquela entrega e, diferente de seus pares que colecionavam e competiam
pelos hímens destruídos, devorando as puras moças na mesma velocidade que seus
pais devoravam a floresta, este preferiu aquietar-se, receber e retribuir o
amor da outra. Ficaram descobrindo as aventuras do amor por dois deliciosos
anos mais ou menos, até que a desprecavida moça engravidou. Aí, os pais dela
obrigaram praticamente ao casamento. Mas casaram com gosto. Ela principalmente,
com a certeza inarredável de que somente aquele homem lha interessaria.
Foi difícil suportar ao mesmo tempo os
incômodos da gravidez, a deformação gradual do seu corpo, o conseqüente
desinteresse do seu homem, a novel rotina de iniciar trabalho e conciliar as
obrigações domésticas, a tristeza inexplicável que vem depois do parto, as
saídas misteriosas do marido em horas impróprias, quando o que mais ela queria
era o afago e sexo dele. Porém Maria, sua filhinha, findou por fazê-la entender
que o novo, mesmo inevitável, também pode trazer boas coisas, afinal, apesar de
tudo diferente, o casal se amava mais que brigava, sobrando ainda alguns
momentos em que buscavam rememorar as já antigas primeiras intimidades. Este
amor se remoçou ainda mais com a mágica presença da menininha esperta, que
crescia em tamanho e se apresentava a cada dia mais sabida. Com todos os
obstáculos de uma vida a dois; com todas as brigas que quando em vez lhes
ocorria, ainda assim eram felizes. Adoravam os domingos, quando iam à casa dos
pais dela, lá ficando todo o dia. As mulheres iam para a cozinha preparar o
almoço, ao mesmo tempo em que falavam sobre tudo. Dos assuntos mais recorrentes
era sobre sexo e o desempenho dos seus maridos. Ultimamente a mãe de Elza
andava se queixando do pobre Carlos, alegando que andava envelhecido e um tanto
preguiçoso. Afirmava que o velho até a procurava uma ou duas vezes por semana,
mas logo ejaculava, esquecendo do prazer da companheira. Elza, garbosa, dizia
sem pudores à própria mãe, de como era intenso o seu marido. Mesmo sem conhecer
outros homens, achava-o insuperável. Não contava, porém, que era menos procurada
depois que pariu Maria, que sentia desconforto na cicatriz da cesariana e na
barriga um pouco protuberante que jamais tivera e que tudo aquilo lha fazia se
achar desinteressante. Não, para a mãe estranhamente somente contava dos
momentos de volúpia, jamais das dores.
Também havia os domingos em que iam
somente os três, aquela pequena família, à orla, tomar banho na concorrida
praia. Nestas ocasiões sempre Gabriel se embriagava, o que embora
inconfessadamente, agradava a Elza, porque nestas vezes, sempre que chegavam em
casa se amavam com intensidade maior. Parecia que o álcool aflorava o amor dele
por ela, que nos últimos anos andava um tanto retraído. Nada, contudo, que
merecesse um reclamo que fosse da pobre Elza. Ela, afinal, viveu com enorme
prazer todos os dias que teve com seu amor. Poucas vezes se maldisse. Nenhuma
verbalizou arrependimento. Foi boa e fiel a ele e com prazer dele recebeu todos
os acalantos que lha quis dar. Nada fez para merecer ter recebido a fatídica
notícia de que Gabriel acabara de se acidentar, sair correndo ao local, perto
da sua casa, e em lá chegando se deparar com a horrenda cena de tê-lo exposto
aos nefastos olhares dos curiosos, inerte e sem vida, aguardando passivamente
um inútil socorro. Até a última hora se enganou dizendo que ele apenas
desmaiara. Não suportou ouvir, não sabe nem de quem, a terrível verdade. Esteve
em estado de torpor durante todo o velório e enterro. A despedida de verdade
que teve do seu amor foi no sétimo dia de sua morte, quando sozinha e em
segredo voltou ao local do acidente e indiferente à curiosidade dos passantes,
acendeu uma vela e ali ficou por longo tempo vendo o fogo consumir a cera
enquanto mentalmente dizia, cheia de lágrimas, o tamanho da saudade que sentia,
como fora feliz naquele amor, que jamais admitiria outro homem em sua vida e
que tudo dali por diante seria um vazio eterno e sem sentido. Acreditava
piamente que jamais as coisas poderiam tornar-se pior que já estavam. Piamente,
acreditava.
V.
Mas as coisas são como são, indiferentes ao
que achemos que sejam. Por isto, por mais insólito que se pudesse crer, tudo
dali por diante ficou ainda pior. De tudo, talvez o maior sofrimento tenha sido
o da primeira vez que recebeu a notícia. Não se passara sequer um ano da
partida de Gabriel quando recebeu do frio médico, com o prazer sádico dos que
se acham sábios, a tenebrosa sentença de que portava um linfoma e
irremediavelmente deveria se submeter a tratamento quimioterápico. Sem delongas
e mantendo um ar distante, que era muito mais de indiferença que de frieza,
passou a vomitar uma extensa lista de efeitos colaterais, riscos e sofrimentos
inerentes ao tratamento, os quais conduziriam, ao final, a uma estatística e
incerta possibilidade de sobrevida maior que cinco anos. Talvez sim, talvez não.
Nada era certo.
Não poderia ser desta forma, bradou a
infeliz a si mesma. Era apenas algum desvio da coluna, por isto as dores. Que
lhe passasse algum inocente antiinflamatório de última geração. Certamente uma
tal nova droga lhe poria fim às dores que a atormentavam. Talvez se comprasse
um novo modelo de colchão, daqueles anatômicos, magnéticos, que prometiam cura
a todos os males. Quem sabe mesmo um massoterapeuta lha pudesse complementar o
tratamento. Até mesmo um fisioterapeuta, pois dizem que são ótimos, operam
verdadeiros milagres com os exercícios que infligem a seus pobres pacientes. Um
linfoma, porém, não poderia ter. Com seu olhar rogou silenciosamente ao
empedernido médico que verificasse melhor os exames, pois certamente acusariam
alguma falha, algum erro grosseiro praticado por qualquer que fosse dos
brutamontes dos técnicos que operavam o tomógrafo. Era tanta gente apinhada,
todos os dias, fazendo exames uns, apanhando-os outros que certamente o seu
haveria de ter sido trocado por o de alguém, este sim o verdadeiro doente. Mas
ela, a menina Elza, não. Ela havia sido criada com amor, conhecera o homem mais
vibrante da terra, mas Deus, provavelmente também por algum desapercebido
equívoco, pois que Deus, diante de tantos humanos e passados já tantos e tão
repetidos séculos certamente haveria de ter se atordoado em algum Decreto,
fustigando o pobre e bom Gabriel, pecador apenas de ínfimos delitos, ao invés
de um verdadeiro pecante, que merecesse de fato ser separado de sua pequena
filha e terna mulher.
Com muita sofreguidão até poderia,
apegada na firmeza da fé, vir a perdoar Deus por seu injusto descuido. Um
linfoma, porém, depois de um ano quase todo de deprimente sofreguidão era
impossível, afinal não existia sofrimento mais intenso que o que vivera,
sentada no acostamento daquela movimentada via, vendo queimar lentamente a cera
das velas que acendera no duro leito fúnebre de seu amor, indiferente que
estava a tudo a sua volta, o risco de ser acidentada, inclusive. Sofrera,
continuavam dizendo seus intensos olhos negros ao cego médico, todas as dores
possíveis de uma só vez. Deus necessariamente a pouparia de outros sofrimentos,
porque enganara-se em um seu Decreto, que acabara por ser funesto. O exame
estava errado! Certamente era esse o caso, porque pior que ficaram, as coisas
não poderiam ser. Achava, ao menos, que não poderiam ficar, pois que as coisas
na verdade simplesmente são o que são, sobretudo, terrivelmente indiferentes ao
que ousemos compreender que sejam e ao sofrimento que pensemos sermos capazes
de tolerar. Elas, as fatídicas coisas, simplesmente acontecem, por mais
atônitos que nos coloquem.
Somente agora, no meio do turbilhão de
emoções e fatos, todos eles misturados em uma insólita massa de sensações,
verdadeiras todas, mas na mesma medida irreais, é que a menina compreende que
foi exatamente o tamanho do sofrimento que teve quem causou a doença e todo o
sofrimento seguinte, numa trágica demonstração de que dor e sofrimento não
constroem a sabedoria ou a glória, mas apenas mais dor e mais sofrimento, tanto
quanto a morte só constrói a morte, a destruição a própria destruição e assim
em diante. Ainda não compreende a menina, porém, o que lhe magoou mais, se a
notícia de que sua tragédia estava apenas no epílogo ou o ar superior e inatingível
do médico lhe revelando os misteriosos detalhes de sua moléstia, por onde
sutilmente lhe comunicava o fim próximo, tenebroso e inevitável. O desgraçado
lhe queria caçar ainda o último trunfo de que ainda dispunha que era a
esperança. Uma esperança frágil, irracional e sobretudo insólita, mas ainda
assim uma honesta esperança.
VI.
Novamente apareceu o grande rio com sua
caudalosa correnteza. Ela, ao revés de outras visões onde avistava o turbilhão
de água de distância respeitável, agora estava no seio dela. Mais ou menos
segura, porque apesar de seca sentia vivamente seu corpo deslocar-se na direção
e ritmo que lhe mandavam as forças da água. No estágio de consciência em que se
encontrava, não diferiria, talvez, a sensação de estar voando magicamente ou
acomodada dentro de um barco, daqueles bem grandes, apinhado por centenas de
passageiros que cruzavam lentamente as infinitas vastidões das estradas
fluviais tão comuns no mundo que habitava, único existente em sua ínfima
consciência até então, onde não existiam grandes rodovias congestionadas por
barulhentos carros, arranha-céus sem fim e pessoas em número tão incalculável
que pareceria impossível existirem tantos seres humanos em uma só cidade.
Definitivamente, não poderia saber se voava, como voavam todas as suas memórias
desordenamente diante de si, tão convulsiva e obstinadamente, a ponto de
evocar-lhe a loucura, ou se simplesmente navegava em um barco, por dias a fio
como tantas vezes fizera entre Santarém e Belém, tantas destas vezes com a ânsia
do enjôo, tão natural da flutuação, potencializado às dezenas pelos nefastos
efeitos da quimioterapia que lhe haviam
ministrado a apenas poucos dias.
Não saberia talvez, considerando que seu
estado mais aceitaria o impossível ao certo, se tantas e tão vivas não
houvessem sido as viagens de barco; se tão intensos, choquentos, angustiantes,
deprimentes e tenebrosas não houvesse sido a reação de seu estômago e sua alma
a cada movimento antiperistáltico do vômito; a cada gofada eliminando além da
parca comida que conseguira custosamente ingerir, também um pedaço de sua vida,
um naco da cada vez mais tênue esperança que alimentava insolitamente durante a
desterradora jornada das viagens, da ingestão sempre trágica da medicação, do
retorno cada qual mais horrendo e deprimente que o outro e do desgosto de saber
que dali a poucos dias teria de repetir tudo de novo. Daquela vez, diferente de
todas as outras viagens que fizera de verdade (se é que em tal estado
poder-se-ia dizer ser algo verdade, ou uma gota sequer dos pensamentos e
imagens que lhe povoavam mentira, afinal, diferente que fosse, em ordem
distinta que tivesse sido, mesmo que com os personagens e a cronologia
trocados, todos aqueles fatos efetivamente se deram, eram todos ao mesmo tempo
igualmente intensos e reais, como uma mentira jamais poderia intentar a ser),
exatamente naquela viagem onírica de seu moribundo devaneio não encontrara a
companhia da zelosa mãe, a mais presente em todos os doridos momentos, a
inseparável companheira que certamente teria sofrido menos se fosse capaz de
absorver as dores e angústias da filha, poupando-a totalmente das auguras que
lha tinham sido anunciadas. Por esta única ausência é que teve dúvidas de estar
voando ou embarcada na nave.
VII.
Ainda maior que a dor do tratamento era a
de sentir-se doente, com a morte habitando e predizendo cada parte do seu
sempre e mais frágil corpo, sentimento que crescia na mesma proporção que as
células cancerígenas. Maior que todas as dores físicas que sentiu e mais
terrível que todos os enjôos era a incerteza do porvir. Todo o sofrimento
poderia simplesmente redundar em nada, ou no nada que os médicos lhe chamavam a
morte. A mesma morte que talvez lhe viesse mais indolor e amiga se simplesmente
se deixasse ficar quieta em seu canto, em sua terra, em companhia de sua filha,
esta cada vez mais distante à medida que o tratamento e o sofrimento avançavam.
Não era mais Elza que comparecia às sessões, mas um frágil espectro do que um
dia fora, já sem forças, já sem ânimo. Quase sem vontade de nada, nem de viver.
Quase, mesmo, sem vida. A Elza verdadeira, que amou a vida, que amou Gabriel,
que amou Maria, que amou seus pais, se não tinha morrido quedava-se com muita
vontade de morrer. Estava sôfrega de saudades do seu amor e, incongruentemente,
não fosse a saudade que certamente sentiria ainda maior de sua filha e
genitores, simplesmente teria se entregado ao doce beijo da morte sem qualquer
pesar ou arrependimento. Com a convicção juvenil de que, por pouco que houvesse
vivido, vivera intensamente todas as oportunidades que a existência lhe
permitira. Com a convicção de quem não se arrependera nem do que fizera nem do
que deixara de fazer.
Afinal (e aquele estado em que se
encontrava lha tornava ainda mais cônscia desta certeza) a maior de todas as
verdades, porque a única certeza impostergável é a morte. Delírio é a sensação
de se sentir vivo, como se de fato os nossos sentidos fossem capazes de nos
revelar o extasiante mundo que nos rodeia. Como se não mentissem, tal qual
mente o próprio mundo ao nos fazer pretendê-lo real.
VIII.
Mas tinha Maria. A única inevitavelmente
inocente em toda a insólita tragédia que lhe empurrara goela abaixo sua torpe
vida, sem perguntar se pretendia ou sequer mesmo ponderar se era capaz de
consolar-se diante de cruz tão temível. A ela, a menina Elza, se lha poderia
imputar o pecado do amor. Inconsequente e leve como não se poderia tolerar na
pútedra realidade mundana. A Gabriel se assacaria o delito ativo da sedução, do
desejo igualmente inaceitável pelo terrível contraste com a tristeza e feiúra
que sempre povoará a realidade da miséria humana. A todos os amarelos doentes
que passaram a povoar sua realidade também se haveria de responsabilizar por
algum mau feito, tanto quanto a todos os habitantes do mundo. À Maria, porém, à
pequena e inocente Maria, que crescia ignorante ao sofrimento da mãe, como
também sem consciência do quanto a falta que os cuidados diários, o braço
carinhoso e o cheiro inconfundível lhe fariam quando fosse ciente do infortúnio
destas ausências logo quando era tão frágil e incônscia das ditas carências, à
pobre infante nada se poderia imputar. Daí porque o seu era o mais infame e sem
sentido dos sofrimentos, porque tanto não punia quanto não ensinava. E de todas
as penas, aquela graciosa, que não serve para incultar cônscio sofrimento ou
temível dor; aquela que sequer mesmo aproveita ao sádico desejo de vingança de
algum juiz putrefo ou amante traído; a que não alegra nem mesmo o frígido
coração de qualquer avaro carrasco; que não possui um antecedente fático, seja
justo, seja injusto, seja real ou roto que a justifique não poderá se tolerar,
nem mesmo no frívolo mundo que se descortinou diante de Elza através da morte e
da doença.
Ali onde estava sem propriamente estar
nem até mesmo saber se estava ou deixava de estar, no lugar que não era lugar,
mas onde cabiam todos os lugares, todas as lembranças, todos os acontecimentos,
onde as cousas eram todas ao mesmo tempo e ao mesmo tempo também não eram cousa
alguma. Exatamente ali, se concentrou por infinito instante exclusivamente na
imagem da inculpável Maria e decidiu que aquela pobre não mereceria viver sem a
mãe, sem seu carinho e cuidados, sem seus conselhos zelosos e companhia
frugurosa. Decidiu também que a incorruptível infante não teria capacidade de
sobreviver longe da genitora, somente quem a protegeria dos infortúnios com a
sagacidade e presteza da qual apenas possuíam os sobreviventes das misérias em
que andava metida. Ali mesmo decidiu que sobreviver à moléstia era a única
maneira de sublevar não apenas as suas próprias dores, mas também as dores que
não permitiria que a filha vivesse e que exortaria de si mesma dali por diante.
Decidiu, pois, que sua melhora era o único caminho capaz de recompensar o seco
ardor de tão inglório sofrimento.
Decidiu apenas. No meio quase
intransponível de um somente, mas também infinito momento, decidiu que
sobreviveria. Sem ponderar as opiniões céticas dos outros que, sem sentir
qualquer dor, nem o mais leve desconforto que fosse, mirando fixamente para seus
volumosos tomos de sofisma, fingiam adivinhar o lamurioso futuro da torpe
doença. Decidiu porque a doença antes de patológica é um estado d’alma e antes
que pela alopatia, se cura pelos mesmos alimentos que fortalecem ao espírito
dos desalentados: pelo desejo e pela fé. Decidiu, enfim, porque diante daquele
infinito instante, o único instante infinito que já vivera; o único, pois, que
não fora efêmero, compreendeu que se assim não o fizesse, então seria a vez da
morte decidir por ela. E a vantagem é sempre do infortúnio.
IX.
Aquilo que se compilava em sua
consciência como um emaranhado de acontecimentos aparentemente desconexos, mas
em verdade unidos indelevelmente pela robusta cola do sofrimento e dor, untando
infortúnio e alegria numa massa uniforme e densa, temperada por todos os
sentimentos ao mesmo tempo doces e macabros, ao final do preparo redundava em
uma receita sofrível de amargo sabor, provando assim que o produto da vida dos
homens será sempre de fel, pois que a memória da dor suplanta a do amor, tal
qual a morte ao termo de todas as lutas suplanta a vida; a fragilidade da
velhice vence a robustez da mocidade e a esperança da vitória ao cabo da
insistência, se permite vencer pela realidade da derrota.
Assim também deveria se dar com Elza, porque
não poderia ser outra a triste sina dos filhos de Eva, concebidos dos
pecaminosos atos a séculos denunciados pelos padres, e tanto quanto em todos os
rincões da velha Europa, repetidos no meio do surdo farpalhar das batinas
também na antiga pátria dos Tapajós, estes sim, concebidos em sua rude
mitologia sem pecados, filhos dos Deuses da natureza, ao revés daquele pródigo
Deus Único, vingativo e muitas vezes perverso. Pois aquilo que neste instante
se apresenta diante de Elza como sendo um somente instante, na realidade dos
fatos redundaram em muitas centenas de dias, contados em quase dois pares de
anos. Dentre as batalhas mais sofríveis, as mais vivas de todas foram as que
travou contra a doença e contra o tratamento, pois que aqueles venenos dedicadamente
ministrados pelas serenas enfermeiras, que se não eram simpáticas pelo menos
representavam um papel de delicada compaixão pela dor e vigorante fé no
conhecimento que lhes custou tanto a adquirir, assassinavam a força vital das
células sãs da menina mais que as indisciplinadas tumorações que teimavam em
crescer, numa sistemática desobediência aos conhecimentos da medicina.
E nesta dúplice luta de se tratar e ao
mesmo tempo resistir ao tratamento, onde foi testemunha de dezenas de
desafortunados pacientes para quem a cuidadosamente medida dose de remédios,
responsavelmente ministradas pelas quase sempre mesmas enfermeiras, de cura
transmudou-se em mote do perecimento, foi passando Elza pelas incessantes fases
do tratamento, cada qual prometendo ser a última, mas insistentemente impondo
novos exames, novos diagnósticos, novo ciclo do que chamava a menina de
envenenamento. No turbilhão de fatos que se lha apresentam neste momento,
percebendo a grandiosa dosagem de químicos que docemente administraram aquelas
enfermeiras, à guisa de humanística terapia, consistiram mesmo em uma
planejada, sofrível e insistente tentativa de morte. Se os déspotas da história
tivessem esta ciência, certamente que homicidariam seus inimigos por um método
mais eficaz, planejado, lento, extremamente doloroso e inescapável, pois que
maior que esta a humanidade jamais concebeu tortura mais degradante, que
destrói o corpo ao tempo em que aniquila a alma.
Foi através desta certeza que novamente
viu no quadro da mente a praia de Boa Viagem, tal qual da primeira vez,
percebendo sua diferença das praias de Belém, especialmente na cor da água.
Aquele, sim, era o mar de verdade, que de verdade dava vistas ao oceano
Atlântico. Mais de três anos depois da tenebrosa entrevista com aquele nojento
médico de Santarém, que friamente lhe deu pela primeira vez a notícia que não
aceitou ouvir, se deparou diante de uma nova realidade, num lugar inóspito
tanto porque era grande, quanto por ser desconhecido. Sobretudo, teve ainda
mais medo das razões que levaram a ela e sua destemida família à violenta
Recife, um lugar do qual, além das tenebrosas histórias que ouvira nada sabia a
respeito. Um lugar, mais tarde verificaria, que apesar do orgulhoso sotaque
puxado ao holandês se constituía em uma das cidades mais miseráveis das
Américas, de longe mais desumana que a já temível Belém. E se a cidade lha se
apresentou tão inóspita, imaginou, que agonias não lhe trariam o tratamento,
com aquelas sempre serenas e disciplinadas enfermeiras a ingerir-lhe metodicamente,
em quantidades precisas os velhos e os novos venenos da quimioterapia...
Mas Elza foi forte. Apesar de todas as
vicissitudes, Elza foi bastante forte.
X.
Eram realmente enormes os corredores que
aos poucos habituou-se a percorrer diariamente, numa sofrível rotina já
cumprida maquinalmente, tão iguais que foram os dias passados no enorme
hospital do Recife. Do peculiar estado de consciência em que misteriosamente se
viu inserida, a menina percebia ainda melhor a grandeza daquele lugar, formado
que era por pelo menos meia dúzia de prédios, a maioria interligada por
curiosas conexões, pois que de certa forma despidas de harmonia arquitetônica,
tão cara aos expertos engenheiros e arquitetos, sejam os modernos e formados
nas frias universidades contemporâneas, sejam os antigos, informados pela
experiência do empirismo. Por mais que cheirassem aqueles corredores à
modernidade da sabedoria dos homens, o fato é que não era elegante o choque
verificado entre as antigas e novas construções daquele complexo. Ainda mais
quando somados aos desníveis entre uma construção e outra, ou mesmo no meio de
uma entrada mau concebida se somava o sofrimento das centenas de almas que
diariamente padeciam nos seus leitos e corredores, seja nas adornadas
habitações dos ricos, seja nas apinhadas e quase fétidas dos pobres, todas,
claro, muito bem separadas tanto para que os ricos não imaginassem ser
realizável a miséria aos extremos que se verificava alí, seja para que os
pobres não imaginassem que seria possível um tratamento mais humano e digno que
o recebido friamente na parte a eles destinada (pois que até as enfermeiras dos
abastados são mais belas e doces). Pareceria certamente aquele hospital e seus
corredores quase infinitos com uma imensa cidade, todos bem sinalizados como as
vias de qualquer movimentado centro, se além de seus limites não se desdobrasse
uma metrópole de verdade, aquela em especial cortada por enormes avenidas, boa
parte delas por canais que talvez tenham sido algum dia legítimos braços do
velho rio Capibaribe, onde os homens brigavam com o mangue por espaço e onde o
mangue, na estação chuvosa retomava, mesmo que provisoriamente, o espaço seu
invadido.
A apressada mudança de Santarém a Recife,
após a catastrófica notícia de que o tratamento da menina Elza somente poderia
continuar em um centro de maiores recursos médicos. A decisão da família em
permanecer junta, para junta dividir todas as vicissitudes. O novo emprego
conseguido pelo pai da menina na desconhecida cidade nova. O inevitável medo do
novo, quase mais pavoroso que o da morte que em todos os instantes povoou a
consciência da indulgente. A consolação de sua mãe, justificando que ao final
de tudo ainda tinham boa sorte, pois que conseguiram seguir juntos, pois que o
bom patrão de Carlos fizera uso de seus contatos para arranjar-lhe emprego na
terra desconhecida. Junto à visão panorâmica da praia de Boa Viagem e seu
calçadão cheio de corpos esbeltos e felizes, ao mesmo tempo que os infinitos
corredores do hospital que habitara por muito tempo, todas estas coisas lhe
sobressaíram na consciência com naturalidade, sem qualquer desassombro, pois
que naquele estado tudo seria normal. Definitivamente, não lhe pareceram
antagônicas as torneadas formas de uma mulher qualquer, em mínimos trajes
correndo ao longo da praia ao lado da magreza triste de dezenas de
desafortunados que, como a menina, morriam a cada dia em que lutavam pela vida.
Sobretudo, as palavras da mãe de Elza lhe
ecoavam na consciência, consolando-a e advertindo que ainda pior que a sua,
centenas de dores existiam no mundo; centenas de pacientes teriam sorte pior
que sua própria, de maneira que era sempre de bom agouro agradecer a Deus pela
melhor sorte que nos tivesse legado, por mais sofrida e pálida que fosse ela.
XI.
A evocação das consoladoras palavras
maternas trouxeram à tona da cena as dezenas e dezenas de pacientes que
conhecera ao longo da jornada. Todos sofriam, mas cada qual padecia de uma
diferente dor. Ao contrário da uniforme e indiferente forma com que lhes
tratavam os médicos, enfermeiras, técnicos, enfim, toda a alva equipe do
hospital, que apesar da brancura dos trajes haveria de ter enegrecida a
consciência pelo desprezo indigente do acéfalo tratamento despendido aos
doentes, não eram todos iguais, mesmo que padecessem da mesma enfermidade;
mesmo que se lhes infligisse o mesmo e único transplante de medula óssea.
Adoeceram por motivos diferentes, todos absolutamente desconhecidos da
medicina. Lutavam pela vida também por motivos diferentes e se houvessem de
medir em laboratório descobrir-se-ia que suas lágrimas tinham diferente teor de
sódio, pois que exatamente diferentes são as razões que lhes conduzem ao
pranto, às vezes copioso, mas na maioria discreto e quase silente. Cada doente
percebe o seu enquanto o maior dos sofrimentos, porque somente ele tem
consciência plena de sua dor. As horas inertes que passou deitada a menina, sem
absolutamente o que fazer, como se estivesse no umbral da eternidade, no
entanto, fizeram-na perceber que na realidade haviam sim padecimentos maiores
que o seu próprio e que perceber os outros desafortunados sobreviver a tamanho
infortúnio representava valiosa lição a ela própria: que era possível
sobreviver e nesta luta sermos capazes de suportar sofrimentos muito maiores
que nos percebemos capazes.
De todos os padecentes, porém, nenhum que
de longe se comparasse a Severino. No rodízio de companheiros de quarto, nas
diárias sessões de envenenamento (como insistia a menina em chamar as
aplicações de químio), foram muitas as vezes em que se encontrou com o tal.
Jamais o viu com acompanhante, pois que sempre se apresentava solitário.
Diferente dos outros enfermos, não tratava das reações e esperanças decorrentes
do tratamento. Falava dos lugares que frenquentava, todos proibidos a alguém no
seu frágil estado, da obstinada desobediência que praticava contra as
recomendações médicas e até das drogas lícitas e ilícitas que mesmo
convalescente consumia. Dizia que a maconha era terapêutica, pois que diminuía
os enjôos. Que o álcool minorava a tristeza provocada pelos remédios. Que era
melhor morrer vivendo que, como se dava com seus colegas de infortúnio, viver
morrendo, um naco a cada gota de veneno que lhes penetrava o sangue ou a cada
instante que perdiam nas espremidas e deprimentes paredes do inóspito hospital.
Foi então que todos os rostos dos
pacientes que conhecera ao longo da sofrível jornada, enfileirados que estavam
um a lado do outro, cada qual com sua história, chorando suas tristezas, foram
transmudando-se em um só, formando a face negra, bexigosa e fedida de Severino.
Como mais tarde aprendera no quase épico poema do pernambucano João Cabral, o
Severino que conhecera naquele gigantesco hospital do Recife, era uma mais das
milhares de faces que têm a miséria humana e a injustiça da sociedade. Não
importa a qualidade das terras, nem o renome dos hospitais, pois que sempre
será miserável a jornadas dos pobres severinos, a morrer como os insetos
encandeados pela luz ofuscante ou a teimar vivendo, mesmo com a fome e miséria
reinantes. Tal qual Severino, o retirante, este, o enfermo, também veio do
interior à capital não na busca de cura, mas seguindo o próprio enterro. Igual
ao homônimo retirante, o Severino que conhecera à menina Elza tinha a mesma
cabeça grande, o mesmo ventre crescido, tudo muito mal equilibrado pelas mesmas
pernas finas. Ao final, o sofrimento daquele Severino não era nem maior nem
menor que o dos demais.
Morreu de repente, como é costume morrer
os pacientes naquele tipo de tratamento. Ainda assim, Elza fez questão de
comparecer ao seu velório, embora tenha se mantido a aconselhável distância do
cadáver, pois que temia ser contagiada por alguma bactéria que teria posto fim
a mais este Severino. Nunca soube em que cemitério se deu o enterro, mas não
duvida que se lho tenham inumado em cova rasa e sem qualquer epitáfio. Sua
história virou quase uma lenda repetida baixinha nos tristes corredores do
hospital. Para os médicos, era prova de que o não atendimento às suas
recomendações pelos pacientes os conduziria fatalmente à morte. Para os
enfermos, uma esperança de que mesmo na doença seria ainda possível sentir-se
um leve que fosse sopro de vibrante vida. Mesmo que por um instante efêmero e
conduzisse ao prematuro fim, porque ali, naqueles corredores, a única certeza
mesma era a da morte inafiançável.
XII.
Mas apesar da morte ronhenta,
persistente, que ali naquele hospital rondava vestida em muitos jalecos brancos
havia a Deus, mais presente ainda que a própria morte. A pequena capela do
gigante hospital era onde sempre esteve todas as vezes que pode. De tanto
contemplar a magra imagem do Cristo, em destaque no vão principal do lugar, já
a adivinhava em todos os mínimos detalhes. Especialmente ali, naquele estado
Cósmico elevado que estava, as minúcias eram ainda mais perfeitas, fazendo sobressaírem
a profundidade das chagas, a espessura e cor do sangue e a profunda face de
sofrimento, absolutamente apropriada a quem padecia e purgava todos os males da
humanidade. Somente diante do sereno sofrimento
crístico era possível alimentar a esperança no porvir. Era o mantimento da
fé, a única que cura, aquela que mesmo no âmago da penúria extrema que era
aquela sentença irrecorrível do fim, ainda assim poderia lhe sorrir com uma
nova vida. Era a fé e somente a fé quem lhe dizia que tudo teria um bom fim,
que sua morte viria, mas não agora, nem agonizante e sofrida como lha agouravam
aquelas centenas de jalecos brancos, todo o tempo lha auscultando,
indelicadamente fuçando seus orifícios, às vezes apertando, outras enfiando
termômetros, insistentemente injetando as medidas doses do diário veneno,
inseridas com milimétrica precisão pelos barulhentos (desengonçados, quase)
infusores. O veneno nosso de cada dia, que por mais que fosse eficaz não seria
nunca mais que a pura e simples fé.
Foi à fé que agradeceu quando da primeira
vez lha diagnosticaram remida (aqueles infelizes médicos nunca usam as palavras
corretas, mais simples e eficazes. Se ao invés de remi-la a houvessem curado, é
certo que tudo se teria findado precocemente). Também à fé recorreu quando da
outra vez lha declararam novamente remida (mas agora não remida de curada,
perdoada, liberta e sim remida porque outra vez adquirira a infame moléstia).
Para muito além da lingüística, lhes afirmaram os médicos que seriam coisas
insondáveis à sapiente medicina as razões verdadeiras da metástase, mas que
ainda assim haveria a esperança do transplante, possível só em longínquas
terras. Pois que foi exatamente à fé que recorreu quando, mirando a imagem de
seu corpo nu defronte ao grande espelho do quarto compreendeu que o sinal da
cura estava em seus longos cabelos, misteriosamente preservados, mesmo após
aquelas longas e intensas sessões de renitente quimioterapia. Pois como seus
heróicos cabelos, lustrosos e negros, sobreviveria à nova intempérie com a
mesma obstinação que eles se preservaram presos ao coro cabeludo da menina,
sarcasticamente desmentindo aquelas incógnitas previsões dos alvos jalecos.
Como uma aura, os pelos lha preservariam das más energias tanto quanto seriam o
símbolo incorruptível da supremacia divina que sobre ela pairava. Enquanto
estivesse protegida por eles teria plena confiança na fé que a sustentava acima
de todas as desgraças.
Considerado o grau de sofrimento ao qual
já fora submetida a menina, nada estranho pareceria desejar a morte, pois que
esta seria a mais digna das saídas e a menos sofrível das opções que se
apresentaram. Principalmente quando estava cônscia de que seja tardiamente após
a cura, seja precocemente pelas complicações de saúde, o fim era certo e
inevitável. Viver mais alguns anos talvez fosse querer padecimentos ainda mais
cruéis que os já suportados. O esquecimento para depois da morte era ainda mais
certo, fosse agora no padecimento, fosse mais adiante na velhice, mesmo que
terna. Logo, viver mais tempo não significaria ser mais feliz, querida ou
lembrada. Nem a sabedoria mesmo poder-se-ia dizer acumulada pelo simples
perpassar dos tempos. A única utilidade real que compreendia Elza da
possibilidade da cura era o exercício do supremo prazer de ver sua filha
crescer, aprender, pecar, mas também evoluir pelas experiências e tornar-se
apta a também ser mãe e mulher, pronta para enfrentar as agruras da existência
com a fortaleza de ter tido sua própria mãe presente e firme a acolhê-la na dor
e orientá-la nas dúvidas. Pois foi suficiente esta possibilidade de
supostamente poder vir a servir sua querida filha na sua própria caminhada,
podendo viver o prazer de ser-lhe últil como sua própria mãe estava sendo agora
e sempre. Era por estar cônscia do quanto sua mãe lhe fora, lhe é e sempre lhe
será imprescindível; era por compreender a magnificência desse amor, único
incondicional e indelevelmente insubstituível que desejou poder dar o mesmo à
sua própria filha, para o que somente poderia contar com a mais pura e simples
fé, somente com ela, cujo símbolo elegeu nos seus cabelos vistos naquele dia
defronte ao espelho, que também refletia seu corpo nu e insolitamente peludo mesmo
após o já longo tratamento. Muito depois dessa cena, envolta agora na névoa
onde tudo e todas as coisas eram uma só e mesma realidade, a menina percebe com
a mais límpida das clarezas de consciência o quanto fora difícil aquela
decisão, mas também que fora a escolha mais corajosa e correta que poderia ter
tomado, a única capaz de conduzi-la adiante na longa jornada que ainda a
aguardava.
Ainda possuía os lindos cabelos longos e
negros, vaidosamente penteados e enfeitados quando conheceu Zé Alves. Não
duvida que foi pelos cabelos que ele primeiro se apaixonou, antes mesmo que
pela triste sina da menina, com sua história sofrida e corajosa. Mas com pouco
os cabelos se foram, restando somente a menina, de sofrida sina e triste
coragem, já quase sem formas de mulher; já quase sem alma de mulher.
XIII.
No seu lôbrego estado, mesmo porque não
diferenciasse o tempo nada estranho lha pareceu a visão emparelhada dos seus
dois homens, lado a lado, cônscios e orgulhosos da importância que um e outro
tiveram respectivamente na sina da menina. Na divagação nem um estava vivo nem
o outro morto. Eram diferentes e por isto importantes de maneiras distintas.
Embora cônscios da existência recíproca uns dos outros, não havia ciúmes.
Nenhum deles se lha apresentou como seu dono, mas na verdade como senhores de
coisas diferentes, presentes todas ante a mesma pessoa. Da mesma forma que ela
os amou de maneira diferente, eles também a amaram em forma variegada. Gabriel
fora ardente, viril e incisivo enquanto Zé Alves se apresentou paciente,
precavido e sábio, sabendo tudo fazer e suportar na medida certa. Calou quando
foi preciso, mas se impôs no tempo conveniente, sempre astuto e sensível às
energias e aos fatos em seu derredor. Foram ambos tão igualmente e com a mesma
força tão distintamente importantes que no sonho andavam agora os três de mãos
dadas, contemplando serenamente a insólita paisagem em sua volta, repleta que
estava de imateriais pensamentos e desconexos, invencivelmente ilógicos, fatos.
Gabriel lha cobrindo com o tórrido amor do sexo, ao mesmo tempo que Zé Alves
com o insólito bálsamo da compreensão inabalável. Exatamente tudo do que
precisava aquela frágil moribunda era-lhe fornecido por aqueles delicados
homens.
Zé Alves não era bonito, mas a simpatia e
os bons modos lhe desentortavam um pouco a silhueta um tanto desaprumada de sua
figura alta, magra e desengonçada. Como a palavra lhe fluía fácil e o sorriso
era sempre a primeira retribuição que devolvia aos que lhe indagassem ou
qualquer outro contato oral ou mímico com ele mantivessem, tanto quanto ainda
com a mesma expressão evocava a atenção alheia quando lhe importava chamá-la,
acabava por se tornar fácil em demasia gostar dele. Para Elza, tomado em conta
a afeição indisfarçada que desde sempre revelava ele pela menina, foi ainda
mais inevitável o apego naturalmente devotado ao outro desde a primeira vez que
o avistara ela, mesmo de longe ainda. Era o tal primo da nova vizinha Edna,
esta cá também elevada alma, caridosa e quase uma irmã, que se lha apresentara,
era convicta Elza, como encantada resposta aos silentes gritos de revolta e
dor, antes de tudo mesmo de desespero, que irrogara a Deus em certa noite de
terrível aflição. Zé Alves nesta dita ocasião já conhecia toda a triste
história de Elza, contada da boca da indiscreta prima alguns dias antes, porém
manteve discreto silêncio na frente da enferma, esperando que ela própria fosse
aos poucos ganhando sua confiança, revelando neste exato ritmo suas dores e
mágoas. Antes de mais nada, tornaram-se profundos amigos. Fora ele quem lha
demovera da tristeza perene que insistia em rondar sua aura renitentemente,
tentando alegrá-la pelas mais tolas formas; quem lembrara a importância da
filha, do amor dos pais e da amizade de todos os outros que por uma forma ou outra
torciam e rogavam por sua recuperação. Fora ele quem disse à menina das
centenas de pessoas que ali e alhures conheciam seu padecimento e que o mínimo
que faziam era pedir eles a Deus por sua felicidade e cura. Não havia uma única
pessoa que fosse entre estas centenas de almas, dizia-lha Zé Alves, que lha
desejasse o mau ou mesmo que dela guardasse a menor que fosse das mágoas. Elza
era uma boa pessoa, das melhores índoles que já pudera conhecer, e isto somente
era suficiente razão para poder usufruir ela de outra chance. A cura era algo
possível sim, sempre dissera Zé Alves, e Elza merecedora irrenunciável dela,
carecendo só e somente de uma atitude mental adequada para a poder alcançar.
Não se submeteram a qualquer jogo. Foram
sempre honestos e naturais. Tão honestos e tão naturais que observá-los de
longe não induziria qualquer suspeita sobre algum romance entre os dois. Se
tocavam raramente e sempre como amigos, mas passavam bastante tempo juntos. O
quanto pode Elza ficou em casa e nestas ocasiões era comum e esperado receber
visitas do enamorado. O tempo que passou no nosocômio, porém, continuou a
receber as regulares visitas. Chegaram a passar tardes inteiras juntos no
hospital, sempre momentos onde Zé ouviu mais que falou. E foi exatamente esta qualidade
de ouvinte que fez Elza se render ao outro, mesmo tendo prometido a si mesma
não entregar nunca mais seu coração a ninguém, tanto pelo amor superior de
Gabriel, que em instante algum arrefeceu, senão apenas ampliou-se mais e mais a
cada dia que passou, seja mesmo simplesmente para não sofrer nem fazer sofrer,
como até pareceria mais natural nestas alturas. Quando percebeu que os novéis
remédios, por serem ainda mais potentes foram agora capazes de destruir a
fortaleza de seus cabelos, ainda assim, mesmo sabedora da admiração sincera que
devotava a eles Zé Alves, não envergonhou-se nem sentiu-se feia, correndo para
ele para prantear a moderna dor sem receios ou preconceitos dela para consigo
mesma. E disto não se arrependeu, pois que exatamente no final da conversa
deste específico dia descobriu o quanto imaterialmente o amava, tão intensa e
profundamente que a carne do sexo nem lembrança nem vontade deixava. Estariam
os padres de Santarém certos, pensou ela, ao renegar as tentações da carne como
condição para a salvação da alma?
XIV.
Por força da insolubilidade do estado que
vivia, não se poderia dizer que a menina Elza estaria em si mesma, integrada
plenamente ao seu próprio ser, parte indissolúvel de si própria. Ao mesmo tempo
igualmente não se poderia afirmar que estivesse despregada de seu ser,
mirando-se de fora, quase como se fosse uma observadora distante e imparcial de
sua pessoa, nem porque não estava desatenta aos sentimentos que vivia, nem
muito menos porque não se sentisse participante de tudo o ocorrido. Ela tinha
plena consciência de sua individualidade e mais que no estado comum, de
vigília, da dimensão superior que suas percepções galgavam. Por isto não se
trata de uma simples projeção, mas de uma profunda e insólita viagem que deu de
fazer a menina, de si para si mesma, onde desarmadas foram as armadilhas do
ego, que maquiam as verdadeiras razões dos sentires, murchando a consciência
que cada qual é capaz de ter do seu próprio ser, negando o conhecimento dos
motivos verdadeiros de todas as razões, de todas as palavras e de todos os
desejos. Ali ela percebe quanto mentimos ao cabo da existência, mas que a
maioria destas inverdades contamos a nós mesmos. E somos crédulos de nossas
próprias imposturas mais que das que pregam os outros ao longo do viver. Mas
ali, naquela insolubilidade de que falamos, não havia mentiras. Nem dela para
com os outros, porque a projeção que tinha das pessoas e coisas fora de si eram
na verdade provenientes dela mesma, nem muito menos era possível emonar-se a menina
com a inverdade, porque é como se ela soubesse de todas as coisas e sentisse
todos os sentimentos, tudo ao mesmo tempo, o que formava uma consciência alta
ao mesmo tempo que incongruente.
E tal estado, porque incongruente, era ao
mesmo tempo bom e tenebroso. Era bom porque possível sentir-se a brisa leve mas
também fortificante do amor que recebia dos seus, compreendendo longe dos
engastes do mundo cotidiano a sinceridade e o desapego destes sentimentos, como
era o de sua família e de seus dois homens. Era tenebroso porque com esta mesma
pujança compreendia a absurda desumanidade dos que tanto por delegação da
existência, quanto por pessoal escolha, deveriam ser os guardiões da vida e o
símbolo da esperança, mas que falsamente encarnavam a sabedoria, que na verdade
findava por ser a máscara da soberba que impregnava seus falsos saberes.
Descortinadas as máscaras da falsidade com que uns se apresentam diante dos
outros na sociedade, o insólito estado da menina a fazia enxergar claramente a
mentira, a indiferença e a inveja por detrás de dezenas de frases amáveis que
inocentemente ouvira. Eram poucos, realmente, os puros sentimentos que lhe
emanaram, mas ao mesmo tempo eram tão fortes que seu poder era em muito
superior às máquinas e aos venenos que lhe ofereciam aqueles desgraçados
jalecos. Ela agora percebe o quanto os médicos temem seus pacientes, receando
que descubram seus erros e feitos maus não pela morte ou sofrimento que
causaram aos doentes e familiares, mas pela fama que perderiam e pelo dinheiro
que deixariam de ganhar. Não tinham compromisso algum com a cura, dela
propriamente não conheciam nada senão um conjunto tantas vezes irrazoáveis de
protocolos e intervenções alopáticas. De saúde, vida, amizades e troca de
sentimentos não conheciam, mas somente a anatomia e a química, informações que
lhes serviam para localizar as dores e indicar as drogas que as aliviariam. Mas
tal, compreendia a menina, faziam por inocência, pois que estavam muito longe
de compreender a profunda dimensão que possui a vida, para muito além das
funções metabólicas do organismo humano. Alma, eles mesmos não sabiam possuir
uma.
Pois que por esta ciência, não deveria a
menina guardar qualquer mágoa de seus inconscientes algozes, vez que lhe
ministravam com sincera crença aqueles malditos venenos, absolutamente firmes
na fé de que lhe trariam a cura e não a morte, como testemunhou ela às dezenas
durante a sofrida sina que vivia. Ela sabia, mas os jalecos não, que muito mais
eficaz que as drogas, as quais em verdade matam mais que curam, uma palavra de
fé ou um abraço de amor puro e despretensioso têm poder em muito superior.
Apenas Márcia (aquela gentil enfermeira, pele de jambo e alvo sorriso, que
sentava-se ao seu lado na cama, contava histórias engraçadas e dava testemunho incansável
das dezenas de milagres que presenciara ao longo da carreira) é quem parecia
vislumbrar a realidade que se apresenta diante da menina no insólito estado em
que se encontra. Os demais, não. Estes criam apenas no conhecimento que em
verdade não possuíam, pois que era falsa sua sabedoria e mau postados os
pilares do seu sofisma, que só por sofisma ser, já basta para revelar a
inconsistência de seu conteúdo. Mas, repetia novamente a menina para si mesma,
não haveria como eles saberem de sua própria pequenês, pois que o mundo era
ainda muito maior que o já tão complexo que lhes apresentou a ciência e esta
longe estaria de desvendar os insondáveis mistérios guarnecidos pela fé
inabalável e pela consciência superior de que a vida se descortina por permissão
de dezenas de leis naturais, fundamentadas todas elas na existência de uma
inteligência Superior, da qual os jalecos, por seus tantas vezes torpes mas
briosos métodos científicos jamais compreenderiam. Era preciso ter pena e não
raiva deles, pois que estas mesmas leis que supedaneiam a vida no tempo devido
também daqueles jalecos lhes cobrará o tributo do existir, somente quando,
postos no incômodo lado da vítima do tratamento desumano aos quais submetem
compulsoriamente seus doentes, perceberão a dimensão do sofrimento e a
intensidade da dor que afligem indiferentemente eles mesmos aos outros. Serem
amigos de outros jalecos brancos talvez os poupe dos sofrimentos mais
terríveis, principalmente dos relacionados à indiferença de uma vida humana
sobre a outra, mas não os livrará de tudo, pois que nas horas mais caliginosas
ainda estarão solitários, como sempre estão solitários os humanos nas
principais passagens da existência, que são o nascimento e a morte. E então,
somente terão alento e esperança de sobrevida os jalecos que irracional e
inconscientemente se entregarem à fé; a mais pura e simples crença de que
somos, todos os seres humanos, existências débeis diante do mundo, incapazes de
mantermos por nossa própria arte as funções mais elementares deste existir, de
maneira que apenas pelo amor Supremo do nosso Criador seremos capazes de
suplantar as dificuldades tanto da vida biológica quanto espiritual, coisa que
se galga exclusivamente pela crença.
Para Elza mesma não foi fácil compreender
assim, pois que a dor que sentia erguia um espesso muro de revolta. O desejo
mais fácil a alimentar era o da revolta e não fosse poder se encontrar na
insolidez do estado em que se encontrava, onde não existe o tempo nem o espaço
e onde por isto mesmo não sabe precisar em quanto já se demora nele ou como
poderia estar em todos os recantos que já conhecera sem de verdade haver se
deslocado a nenhum deles, certamente não conseguiria alimentar o perdão pela
consciência da ignorância, afinal os jalecos lhe punham em risco a existência
sinceramente crentes de que lhe conduziam à cura, da mesma forma que uma
pequena criança leva sua própria mão à chama da vela que vê admirada, acesa,
longe de crer que além de brilhante e bela, aquela luz também é quente e na
mesma medida em que embeleza sua vista lhe corroerá dolorosamente a carne tão
logo a consiga alcançar. Pois que na beleza daquele sublime estado a menina
olvidaria dos jalecos, prendendo-se somente às pessoas e aos valores que lhe
engrandecessem e fortalecessem o espírito. E tal a menina sabia, encontraria
somente em sua família, da firme companhia de sua mãe, com sua esperança
inabalável; na regular presença do pai, sempre pronto para lhe valer; no
bálsamo da presença da filha, disposta a receber e a dar o mais puro dos amores;
na companhia dos amigos, especialmente Edna, quem se transformou na melhor
delas; mas sobretudo em Zé Alves, que presente estivera mesmo nas ausências e
até mesmo no passado na floresta quando não se conheciam fisicamente.
XV.
Definitivamente ninguém poderia ser mais
doce, dedicado, presente e incondicional quanto o seu Zé Alves. Ela não estava
preparada para o amor e muito antes disso não alimentou tal desejo em qualquer
momento que tenha tido desde a morte de Gabriel. Muito ao reverso, compreendia que
a enfermidade em si mesma a excluiria daquele universo das carícias, paixões e
cumplicidades. Sem declinar palavra, o mundo inteiro lha dizia que o amor não
era para os moribundos; que estes se contentassem já bastante se acaso tivessem
a atenção da família. Especialmente aquela menina deveria achar-se
especialmente feliz, pois que apesar da gravidade do caso e da quase
indeclinável catástrofe mortificante que se lha abateria mais cedo ou mais
tarde, tinha ela a sublime presença não somente da mãe, mas na verdade da
família inteira. Era das muito poucas enfermas que conseguira preservar
amizades, pois que em geral os amigos festejam as alegrias e as vitórias, sendo
arredios a participar dos banquetes da desesperança dos moribundos, tanto mais
quando as doenças se prolongam por anos, como se dava com aquela teimosa
menina, corajosamente resistindo ano após ano ao degradante tratamento. Muito
menos ainda poderia ter um doente o direito de amar. Amar é para os que tem
esperança de vida, não aos que estejam condenados à morte por algum daqueles
sisudos jalecos brancos, que impáfios distribuem tanto a vida quanto a morte
pelos seus venenos inglórios. Não se pode amar sem esperança do porvir; sem os
planos inevitáveis no futuro; sem construir mentalmente a futura morada do
casal, minuciando quantos quartos, banheiros, corredores e salas terão o
imóvel, nem o tamanho do belo jardim que ali será cultivado. Não se pode amar
sem planejar os filhos que se pretende ter, seu sexo, mas especialmente quais
traços corporais puxarão do pai, quais da mãe. Não se pode amar sem desejar que
estes filhos sigam os passos que os genitores não conseguiram trilhar por si
mesmos. Não se pode amar sem concomitante a isto planejar a paralela carreira,
com os sucessos, aumentos salariais e mudanças de cargos que virão com o
progresso nela. Não se pode amar sem planejar a festa de casamento e muito
menos sem especificar o destino da inesquecível viagem de lua-de-mel. Também
não se pode amar sem desejar fazer dezenas de outras viagens a lugares
paradisíacos, nos quais serão vividos os momentos mais inesquecíveis da vida de
cada qual. Não se pode amar quando é arriscado fazer planos para os próximos
trinta dias, mesmo os planos mais elementares como é o de permanecer vivo,
simplesmente.
Não. A menina Elza não planejou, sequer
cogitou ser agitada por este amor, pois que juntamente com a mensagem silente
do mundo ela mesma compreendia a impossibilidade desta experiência. Os
moribundos não amam nem são amados, quando muito conseguem sobreviver. Tanto
menos seria capaz de imaginar na desengonçada imagem de Zé o amor se
apresentando. Sempre gostou dele, é verdade, mas nunca foi um gostar de desejo,
mas de amizade e gratidão. Sempre aceitou suas atenções mais por necessidade
que por atração. Sempre gostou de sua companhia mais pela solidão que pela
volúpia. Mesmo assim sempre esperou por suas visitas, sempre se alegrou
infinitamente por elas e sempre sentiu tristeza no coração quando não as pode
ter. Primeiro sentiu necessidade dele, de suas palavras doces, de suas atenções
dedicadas, de suas ações caridosas. Sempre que teve medo, foi com ele que
buscou fortaleza. Sempre que a tristeza foi maior que suas forças, foi nos
ombros dele que encontrou amparo. Sempre que o corpo se abalou pelos efeitos do
tratamento foi também nele que encontrou o bálsamo do alívio e da resistência.
Ele foi tão imensamente bom para com ela que se tornou absolutamente inevitável
não tê-lo antes de tudo enquanto uma invencível necessidade. Sua presença
tornou-se curativa e se forças a menina teve para chegar tão longe na sua luta,
é sem dúvidas ainda mais merecimento dele e seu inquebrantável e ao mesmo tempo
desapegado amor que dela própria.
Mas de todas as dificuldades que
enfrentaram juntos, a mais difícil de todas foi quando a menina recebeu a
medula do transplante. O órgão estava contido em uma bolsa transparente a qual
continha um líquido espesso de cor mais escura que o sangue e tal qual numa
transfusão foi inserida em sua corrente sanguínea, por meio da qual deveria
fazer nascer a nova medula, como se ali estivessem as sementes de uma árvore
prestes a eclodir na vida. Para quem estivesse de fora, tudo pareceria muito
simples e indolor. Para a receptora, no entanto, não era tão simples assim. Não
sabe as razões, se por efeito das drogas que inseriam na matéria prima com o
objetivo de conservá-la ou mesmo por natural reação do organismo, em luta
instintiva contra um provável invasor. O que sabe é que juntamente com o
líquido espesso inseriu-se em seu organismo também uma sensação agonizante, a
qual não saberia descrever por informações objetivas. Poderia ser dito que a
pressão sanguínea subitamente baixou, como também elevaram-se os batimentos
cardíacos da menina, ao mesmo tempo em que um frio inexplicável consumia-se
inesgotavelmente ao longo de todo o seu corpo. Também, a partir de dados
descritíveis materialmente dir-se-ia que a garganta ficou seca e que por muito
pouco não lha faltaram os sentidos. Nenhuma destas descrições, porém, seria
capaz de informar as verdadeiras sensações que invadiram a alma da menina. Mais
tarde diria ela a Zé Alves, que também a tudo testemunhara pegado firme que
estivera em sua mão esquerda, que o sentimento era a agonia da morte e que
jamais teria sentido ao longo de todo o tratamento sensação mais eminente do
fim que aquela específica oriunda da infusão recebida.
Depois de tudo acalmado, quando tanto a
agonia mortífera quanto outras testemunhas já não estavam no quarto, recobrando
um pouco os sentidos quase perdidos a menina deu-se conta que Zé Alves ainda
permanecia no recinto firmemente pregado em sua mão esquerda, na posição que
deveria estar já desde muito tempo, ela sentiu uma ternura e gratidão tão
grande por ele, certa que estava que era dali que ainda conseguia tirar forças
para permanecer vivendo, que desejou de alguma forma lhe retribuir. Mais tarde,
pela noite, mandada para dormir em casa, percebendo um momento mais que pudera
estar sozinha com ele em casa (a mãe, o pai e a filha estavam na vizinha
conversando e conforme era seu costume demorariam um pouco lá) compreendeu que
era chegada a hora de retribuir tamanho amor. A menina, por força do tratamento
não sentia volúpias sexuais, era verdade. Mas estava ela mesma carente do calor
de outro corpo. Sem revelar suas intenções, trancou a porta de seu quarto, foi
até o banheiro e de lá retornou completamente despida, absolutamente careca
como se encontrava àquela fase do tratamento e ainda em silêncio mostrou-se
para o seu Zé, que disfarçando a surpresa levantou-se, beijou-a na boca pela primeira
vez e tocou-a levemente.
Estava magra a menina. A feiúra do corpo
era ainda mais destacada pela pele amarelada e sem pelos em parte alguma. Zé
Alves não via aquilo, contudo. Em silêncio deitou-a na cama, despiu-se também e
penetrou-lhe com carinho, mas vigorosamente. A menina estava fraca, não sentiu
prazer físico, não haveria como chegar ao orgasmo. Pelo avesso, a penetração
foi-lhe bem dolorida. Mas tal não deixou demonstrar, pois que naquele ato era
como conseguiu exprimir o tamanho do amor e da gratidão que sentiu ao perceber
o amparo material e imaterial daquele pujante aperto em sua mão esquerda no
momento mais terrível que tivera, que foi o da agonia da morte. Nada pagaria
aquele aperto de mão. Nem a dor da penetração, nem mesmo o que viria depois do
sexo. Nada poderia ser maior que o amor emanado de um só aperto de mão.
XVI.
A súbita lembrança daquele expressivo
aperto de mão, da gratidão por ele gerada e da ação praticada por conseguinte
trouxeram vivamente à mente da menina a sequência exata dos fatos posteriores à
inesperada aventura sexual que tivera com o seu Zé. Subitamente, não eram mais
todas as coisas que passavam juntas em sua mente, nem haviam mais todos os
lugares reunidos dentro de sua cabeça. Agora deram-se de maneira límpida os
fatos em sucessão cronológica, fazendo-a finalmente compreender os motivos do
desterro final que vivera, assim como as razões mesmas do anárquico estado em
que se encontra modernamente.
Logo no dia seguinte amanheceu com febre,
o que era quase esperado tendo em vista o estado de absoluta ausência de
qualquer corpúsculo de defesa em seu sistema imunológico. Aliás, propriamente a
menina não possuía àquela altura o sistema imunológico mesmo, restando no
aguardo de que surtisse efeito positivo o implante recebido no dia anterior.
Até lá estaria absolutamente à mercê de qualquer infecção, a qual por mais tola
que parecesse poderia perfeitamente ser a fatal. Qualquer agente poderia
contaminá-la, qualquer mesmo, fosse um espirro lançado em suas proximidades, algum
alimento mau higienizado e mesmo uma inocente relação íntima com seu amado,
quaisquer destes fatores poderiam conduzi-la inevitavelmente à morte. No
segundo dia a febre estava ainda mais forte e por conta deste estado a menina
começou a desvairar-se, perdendo parcialmente a noção das coisas. Sem querer,
quase revelou sua insólita aventura à mãe, como costumava fazer quando viviam
em Santarém. Sua mãe, contudo, não seria capaz de acreditar em tamanha
insensatez e por isto sequer suspeitou levemente do ocorrido. No outro dia a
menina não conseguia mais nem se alimentar nem sequer se comunicar com os seus.
Não reconheceu nem a presença do amado Zé, nem a da mãe nem a de ninguém. Não
falava coisa com coisa. Os médicos enfim revelaram apreensão, dizendo que iriam
lutar bravamente contra aquela poderosa infecção, que não sabiam ainda ser
bacteriana ou viral, mas que pela auscutação verificaram estar localizada nos
pulmões mais já se irradiando a outros órgãos. Disseram enfim que a única
esperança seria internar a menina na UTI, mas que não alimentassem esperanças
em excesso, pois que talvez estivesse chegando o momento inevitável do
tratamento.
Já faziam nove dias que a menina Elza se
encontrava inerte no leito quatro da UTI do grande hospital do Recife. Foram dias
de negrume, pois que a menina não sonhara nem tivera qualquer tipo de sensação,
fosse das espirituais, fosse das físicas. Era tudo escuridão e inconsciência
até que repentinamente ela deu de ter sentimento das coisas, percebendo todas
ao mesmo tempo numa volúpia torrencial e verdadeiramente indescritível. Não
sabe quanto tempo durou tudo, pois que como o espaço não existia em seu tórrido
delírio, muito menos o tempo poderia haver. Sabe apenas o quanto foi pujante a
experiência. Sobretudo, o quanto ensinou à pobre menina. Mesmo com todos os
sofrimentos, agora de todos sabidamente muito atrozes, ela jamais esteve tão
decidida sobre seus quereres. Seu desejo era o da vida, mas o da vida plena,
longe dos venenos. Seu desejo era o de ter próximo a si as pérolas mais
preciosas da existência, que eram seu pai, sua mãe, sua filha e seu Zé. Seu
desejo era o de que Deus a protegesse.
Às favas os médicos e sua imbecil
sabedoria!
XVII.
Foi neste exato momento que pareceu à
menina ter percebido algo de seu ouvido físico. Era um bip inicialmente regular
mas que de repetente começou a se tornar incômodo. Também percebia algum tipo
de pancada seca, como se uma coisa insistisse em chocar-se em outra repetidas
vezes. Abriu os olhos e viu sem ainda compreender o que se passava um corpo de
uma senhora, esquelética e em claro sofrimento debater-se ao seu lado. Não sabe
se pedia socorro ou desejava morrer.
Achegou-se uma mulher paramentada de
médica, que ao tempo em que tentava desengonçadamente segurar os braços da
senhora para que não danificassem os caros aparelhos hospitalares gritou a
plenos pulmões convulsão no três, convulsão no três. Acorreram dois homens, um
claramente o chefe da equipe, que foi quem ao mesmo tempo em que enfiava uma
agulha com indisfarçada brutalidade no braço da mulher dizia que porra, isso é
lá hora dessa velha imbecil morrer!
Elza já estava a muito tempo em coma e
por esta razão ninguém ainda da equipe deu apercebê-la de olhos arregalados,
mirando meticulosamente todos os detalhes da cena. Por isto também não cuidaram
de abrir a cortina que separa os leitos da UTI. Aquilo foi o suficiente para a
menina respirar fundo e dizer a si mesma que tudo aquilo iria passar. Logo logo
vai passar, foi como disse. E quando passar ela enfim terá uma vida plena e
feliz. E assim ficou repetindo até que deram conta dos seus olhos abertos, o
que aconteceu apenas já depois de novamente calmo o ambiente, com o defunto
devidamente desentubado, coberto e retirado do recinto. Por todo este tempo ela
apenas permaneceu dizendo centenas de vezes: vai passar, vai passar, vai
passar...