D.
FIDERALINA AUGUSTO LIMA
Quando nasceu, pelos idos de 1832, o Brasil era um
império, governado então pela regência do Segundo Pedro, formando um estado
unitário, nem tão unido, mas definitivamente avesso ao ideário federalista.
Onde nasceu, foi no seio de tradicional família, de ascendência nobre,
vinculada ao marquês de Aracati, conforme registram fidedignas fontes
historiográficas. Ainda assim, foi batizada pelo inusitado nome de Fideralina, em
homenagem à República Federativa que seria fundada décadas depois de seu
assento batismal e ambiente no qual reinaria soberana e insubstituível.
Foi matriarca em terra de coronéis, onde o poder
se forjou através do fogo do bacamarte e da humilhação do grilhão. Reinou entre
homens, em um universo absolutamente machista e intransigente. Somente pela força
poderia e pôde se impor. Embora sempre tenha tido a política no sangue de sua
ascendência, se engajou no sujo jogo de poder pela necessidade de sobreviver e
criar com dignidade sua vasta prole, vez que a viuvez a alcançou ainda em tenra
idade. Até então, contudo, igual a todas as damas dos sertões, era conhecida
somente como a mulher do major Ildefonso Correia Lima, grande benfeitor e líder
de Lavras da Mangabeira.
Enquanto vigeu o coronelismo no Brasil, foi
senhora absoluta de seus domínios, de onde ninguém foi capaz de lhe apear. Ela
mesma, porém, jamais exerceu qualquer cargo. Não seria necessário, pois seu
nome sempre foi bem maior que qualquer função que lhe pudesse ser atribuída.
Ela era dona Fideralina e ponto. Não deixou, contudo, de indicar seus favoritos
para os cargos de maior honor na municipalidade e na Província. Mas não admitia
ser desatendida em nada. Tanto que mandou apear do comando do Partido
Republicano local, à força, seu próprio filho, Honório, o Torto. Não sem a recomendação de que estava vedado aos cabras a
quem se distinguia a missão derramar uma gota que fosse do sangue do rebento.
Também ganhou fama de vingativa. Conta a lenda
familiar que a seu mando, dezenas de cabras foram até A Vila de Princesa, na
Paraíba, de lá retornando com um rosário cheio de orelhas humanas, retiradas dos
cadáveres dos assassinos de seu neto primogênito, Ildefonso Augusto Lacerda
Leite. Ali, completa a história, ela regularmente fazia suas orações.
Mesmo com o declínio da oligarquia Acioly no
Ceará, na qual exerceu papel de importância na manutenção do poder local, ainda
assim conseguiu resistir no poder. Tanto que fez com que Lavras da Mangabeira fosse
a única comuna do Cariri a não cair diante de invasores armados (1910), como também
apoiou destemidamente o movimento revolucionário liderado por padre Cícero
Romão Batista, que em 1914 derrubou o presidente do Estado do Ceará, Franco
Rabelo. Naquela ocasião, fez seu filho e sucessor político, Gustavo Augusto
Lima, Vice-Presidente do Estado.
Tão grande era seu gênio e tão inigualável a
grandeza que ostentou como a matriarca do sertão nordestino que, parafraseando
o seu biógrafo, Dimas Macedo, somente a morte poderia depô-la, o que se deu em janeiro
de 1919. Nem isso, talvez, porque mesmo fisicamente extinta, seguiu dona Fideralina
de Lavras como uma inigualável lenda, mantida seja na tradição oral, repetida e
reinventada por seguidas gerações no seio da família; seja no imaginário das
rimas do cordel ou do que de mais nobre há na literatura nacional; seja mesmo
pelo resgate de diversos historiadores, através de referências em dezenas de
livros, documentários e até músicas.
Para a imortal da Academia Brasileira de Letras
Rachel de Queiroz, Fideralina foi a inspiração que deu asas à personagem Maria
Moura, do famoso romance, que inclusive virou minissérie de televisão. Em Maria
Moura claramente se percebe a fortaleza da personalidade de Fideralina, assim
como o destemor no trato com a jagunçada, a fidelidade do caráter e o drama de
ser uma mulher infinitamente à frente do seu tempo. Assim como na casa de Maria
Moura, a casa grande do Sítio Tatu, reduto de Fideralina e de toda a sua
descendência, também havia um cubico,
compartimento secreto reservado como esconderijo indevassável, cujo único
acesso era através do próprio quarto da matriarca.
Tanto é que, cem anos após o seu falecimento, Fideralina
Augusto Lima segue tão viva, marcante e insuperável quanto nos seus primeiros
anos de poder.
Jorge
Emicles
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