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quinta-feira, 3 de janeiro de 2019


D. FIDERALINA AUGUSTO LIMA



                   Quando nasceu, pelos idos de 1832, o Brasil era um império, governado então pela regência do Segundo Pedro, formando um estado unitário, nem tão unido, mas definitivamente avesso ao ideário federalista. Onde nasceu, foi no seio de tradicional família, de ascendência nobre, vinculada ao marquês de Aracati, conforme registram fidedignas fontes historiográficas. Ainda assim, foi batizada pelo inusitado nome de Fideralina, em homenagem à República Federativa que seria fundada décadas depois de seu assento batismal e ambiente no qual reinaria soberana e insubstituível.
                   Foi matriarca em terra de coronéis, onde o poder se forjou através do fogo do bacamarte e da humilhação do grilhão. Reinou entre homens, em um universo absolutamente machista e intransigente. Somente pela força poderia e pôde se impor. Embora sempre tenha tido a política no sangue de sua ascendência, se engajou no sujo jogo de poder pela necessidade de sobreviver e criar com dignidade sua vasta prole, vez que a viuvez a alcançou ainda em tenra idade. Até então, contudo, igual a todas as damas dos sertões, era conhecida somente como a mulher do major Ildefonso Correia Lima, grande benfeitor e líder de Lavras da Mangabeira.
                   Enquanto vigeu o coronelismo no Brasil, foi senhora absoluta de seus domínios, de onde ninguém foi capaz de lhe apear. Ela mesma, porém, jamais exerceu qualquer cargo. Não seria necessário, pois seu nome sempre foi bem maior que qualquer função que lhe pudesse ser atribuída. Ela era dona Fideralina e ponto. Não deixou, contudo, de indicar seus favoritos para os cargos de maior honor na municipalidade e na Província. Mas não admitia ser desatendida em nada. Tanto que mandou apear do comando do Partido Republicano local, à força, seu próprio filho, Honório, o Torto. Não sem a recomendação de que estava vedado aos cabras a quem se distinguia a missão derramar uma gota que fosse do sangue do rebento.
                   Também ganhou fama de vingativa. Conta a lenda familiar que a seu mando, dezenas de cabras foram até A Vila de Princesa, na Paraíba, de lá retornando com um rosário cheio de orelhas humanas, retiradas dos cadáveres dos assassinos de seu neto primogênito, Ildefonso Augusto Lacerda Leite. Ali, completa a história, ela regularmente fazia suas orações.
                   Mesmo com o declínio da oligarquia Acioly no Ceará, na qual exerceu papel de importância na manutenção do poder local, ainda assim conseguiu resistir no poder. Tanto que fez com que Lavras da Mangabeira fosse a única comuna do Cariri a não cair diante de invasores armados (1910), como também apoiou destemidamente o movimento revolucionário liderado por padre Cícero Romão Batista, que em 1914 derrubou o presidente do Estado do Ceará, Franco Rabelo. Naquela ocasião, fez seu filho e sucessor político, Gustavo Augusto Lima, Vice-Presidente do Estado.
                   Tão grande era seu gênio e tão inigualável a grandeza que ostentou como a matriarca do sertão nordestino que, parafraseando o seu biógrafo, Dimas Macedo, somente a morte poderia depô-la, o que se deu em janeiro de 1919. Nem isso, talvez, porque mesmo fisicamente extinta, seguiu dona Fideralina de Lavras como uma inigualável lenda, mantida seja na tradição oral, repetida e reinventada por seguidas gerações no seio da família; seja no imaginário das rimas do cordel ou do que de mais nobre há na literatura nacional; seja mesmo pelo resgate de diversos historiadores, através de referências em dezenas de livros, documentários e até músicas.
                   Para a imortal da Academia Brasileira de Letras Rachel de Queiroz, Fideralina foi a inspiração que deu asas à personagem Maria Moura, do famoso romance, que inclusive virou minissérie de televisão. Em Maria Moura claramente se percebe a fortaleza da personalidade de Fideralina, assim como o destemor no trato com a jagunçada, a fidelidade do caráter e o drama de ser uma mulher infinitamente à frente do seu tempo. Assim como na casa de Maria Moura, a casa grande do Sítio Tatu, reduto de Fideralina e de toda a sua descendência, também havia um cubico, compartimento secreto reservado como esconderijo indevassável, cujo único acesso era através do próprio quarto da matriarca.
                   Tanto é que, cem anos após o seu falecimento, Fideralina Augusto Lima segue tão viva, marcante e insuperável quanto nos seus primeiros anos de poder.

Jorge Emicles

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