JOSEFINE -
CONTO
CONTO
Vendo de longe, pareceu que tudo foi bem
romântico; que a consciência aflorou à mente de toda uma geração de miseráveis,
fazendo-os tomar as rédeas da história e daí criando ambiente favorável para a quebra
de todas as injustiças do mundo. Aquele populacho, romanticamente chamado de os
sem calções, não simplesmente invadiu
e tomou, mas fez desmoronar, pedra sobre pedra a temível prisão da Bastilha.
Nas ruas parisienses, enquanto a república fazia
cair incontáveis cabeças na antiga praça Luiz XV, as famílias de bem-nascidos
seguiam a sua monótona vida, quase sem preocupações com a revolução que ameaçava
por fim ao mundo inteiro. Pelo menos ao mundo na forma como a conheceu aquela
esquecida geração.
Foi a escassez de pão e seu alto custo que levou
os sans cullotes a se insurgirem
contra os excessos de glamour e favores da rainha estrangeira, Maria Antonieta.
Tão bela, fogosa e infiel, que fez enojar profundamente as pobres e famintas
mulheres do povo, que inutilmente choravam as misérias pessoais e a
desesperança delas e de seus filhos. Quantas daquelas mulheres não morreram de
fome à custa do sustento dos desmedidos favores e luxos da rainha?
Ao cabo, a rainha, assim como o próprio rei antes
dela, foi presa, humilhada e decapitada pela lâmina nacional, que ao tempo em
que apartava a cabeça do corpo inerte, fazia justiça a todos os desvairados do
antigo reino de Carlos Magno. A Maria Antonieta que compareceu à guilhotina já
não era mais a mesma ensimesmada que não aceitava abrir mão por qualquer
condição dos privilégios do primeiro estado, o da aristocracia. Quem esteve
diante da navalha nacional foi uma velha, triste e sem ânimo, de cabelos
totalmente grisalhos, sem nenhuma beleza a demonstrar e profundamente
desesperada por a haverem separado de seus filhos. Seu pobre rebento, chamado
impropriamente de Luís XVII viria ele mesmo a morrer pouco depois, vítima da
ausência crônica de saúde.
De nada adiantou, contudo, a morte de tantos
nobres. O pão continuou caro e inacessível. Os pobres de toda a França seguiram
morrendo à margem de qualquer estatística. Paradoxalmente, todos os mentores da
queda da bastilha caíram eles mesmos vítimas da vingança nacional. Os
jacobinos, os puros, propalaram que somente a intolerância seria capaz de restituir
a paz à nação e o alimento às mesas. Apenas um incorruptível poderia ser o
mentor dessa limpeza geral. A intolerância de Robespierre ante a corrupção e os
maus costumes de todos os revolucionários que fraquejaram diante das mais
ignóbeis tentações, conduziu outra leva de almas à guilhotina. Tantas vezes não
existiam fatos concretos que houvessem levado à pena capital. Àqueles dias
bastava a suspeita, por mais desbaratada que fosse. Assim, nobres e plebeus
seguiam em procissão em cima de carroças até a praça Luís XV, hoje rebatizada
de praça da Concórdia (vindo a ser a maior de Paris) onde aguardavam a sua vez
de se ter com a famigerada comedora de cabeças. Uns se resignavam, outros se
desesperavam e também haviam os corajosos, que nas últimas palavras alertavam
para o abismo em que toda a nação mergulhava através da irracionalidade de um ideal
de purismo do qual nenhum ser humano, por sua própria condição, é capaz de ter.
O povo, a tudo assistia com alegria, como se as cabeças a menos de alguma forma
lhes valessem mais pão.
O último dos impuros a ser sacrificado naqueles
dias de terror foi o próprio Robespierre.
Mesmo com tantas cabeças decapitadas, ainda assim
rareava o pão na mesa dos sem calções. A moeda criada pela novel república era
simplesmente desprezada pelo povo, porque não possuía qualquer valor de comércio.
Mais valia o escambo àquele dinheiro sem valor e sem sentido.
Ninguém foi mais feliz, livre ou lúcido que antes
da revolução. Depois de tantas cabeças haverem literalmente rolado, o poder
mudou de mãos, mas continuou sendo tão opressor e injusto como sempre. E o pão,
razão de ser de toda aquela carnificina que durou mais de dez anos seguiu tão
raro e caro como antes. A França abandonou o despotismo esclarecido de Luís XVI,
para onze anos depois da queda da bastilha, receber triunfante nas ruas de
Paris o general Napoleão Bonaparte, que por não estar contente em ser o
governante absoluto da França, preferiu dominar o mundo inteiro.
Foram nesses dias tumultuados que conheci
Josefine, formosa cortesã, de carícias insuperáveis, que se aproximou de mim
temendo a palidez da lâmina nacional, tão propensa a maltratar a beleza de
jovens nobres como ela. No fogo da juventude, cria absolutamente que o amor era
capaz de vencer barreiras, que dali em diante todos seríamos cidadãos livres e
conscientes, capazes de construir um mundo novo, pleno de igualdade, insuperável
em fraternidade. A tenra idade daquele jacobino verdadeiramente puro que fui me
fez acreditar na superioridade do amor e no bálsamo do recomeço incondicionais.
Assim, recebi aquela mulher maravilhosa em minha
vida, admitindo-a em minha humilde casa, prevenindo-a a respeito dos novos
valores igualitários que inspirariam o mundo dali em diante e, sobretudo,
perdoando-a pelos atos insensatos que houvera praticado quando a riqueza, a
ganância e o espírito de superioridade lhe dominaram a existência. Josefine era
de tal ordem adepta dos valores aristocráticos que evitava sempre pronunciar a
letra erre nas palavras que dizia, sempre num francês culto e bem pronunciado.
Tudo o que se referisse à Revolução lhe era ignóbil.
Pensei que era o amor que a impulsionava a admitir
estar junto de um revolucionário. Até cheguei a achar bonito sua forma elegante
de renegar os valores da república. Dizia sentir-se humilhada pela nova
bandeira, a oprimir o branco, cor da monarquia, entre o azul e o vermelho. A
realeza de França não merecia aquilo, dizia.
Me iludi. Sinceramente me iludi achando que
somente o sentimento maior e sem medida do verdadeiro amor poderia conduzir uma
mulher como aquela aos braços de um jovem sem família nobre, sem dinheiro e sem
títulos. Meu único privilégio era o de ser admitido no clube dos jacobinos e de
ser ouvido entre meus pares. Era um dos melhores amigos de Danton. Me encantava
com a sua capacidade de oratória. Assisti de coração apertado seu julgamento e
reconheço que foi por muito pouco que não se safou da guilhotina. Já havia
dominado o ambiente através da superioridade de sua capacidade de expressão. O
veredicto lhe teria sem dúvidas sido favorável, se propositadamente (não duvido
que por artimanha de Maximilien Robespierre – o incorruptível) não tivessem
adiado a conclusão de tudo para a manhã seguinte. Dessa forma, seus detratores
tiveram toda uma noite para confabular o seu triste desterro.
Eu não sabia, mas Josefine confiava mais na
amizade que tinha com a verve de Danton, que na verdade do amor que fingia nutrir
a mim. Nunca soube em vida, mas é fato que ela se insinuou a Danton logo após a
viuvez precoce dele. Ele, contudo, preferiu uma jovem virgem com quem se
deleitou escandalosamente até seu trágico fim. Depois de seu passamento, do fim
paulatino dos anos de terror e do restabelecimento da ordem na França, ela foi
se afastando de mim.
Já não eram mais tão quentes seus afagos. Já não
se interessava tanto em me fazer mimos. Eu já não era mais tão insubstituível
quanto me dissera ser durante anos. Meus favores já não lhe eram mais
necessários. Minha lasciva já não lhe interessava também.
De minha parte, segui amando como sempre. Mas
aprendi a ocupar o espaço do seletivo desprezo com a política. Nunca fui tão
ousado quanto naqueles derradeiros anos da revolução. Agora, com todos os
grandes nomes enterrados em valas comuns, expulsos muitos do Panteão de Paris,
era à nova geração de revolucionários, como eu, a quem cabia tomar a frente da
resistência.
Fui contra a ascensão de Bonaparte. Sempre lhe reconheci
como o déspota que era. Era ali na Champs-Élysée
que estava àquela noite, cedo em hora ainda. Montado sob um pequeno palanque
discursava com valentia, denunciando a ditatura que se instalara em França após
tantos anos de sofrimentos causados pela revolução. Inspirado na força de
oratório da Danton, buscando imitá-lo em gestos e entonações, dizia que a
república não merecia aquilo. Um povo que com tanta obstinação buscou libertar
ao mundo inteiro da opressão das monarquias não poderia ser ele mesmo atado
pela tirania de um general.
Exatamente no auge desse discurso, percebi um
jovem se aproximar de onde estava, sacar um revólver, aponta-lo para mim. A
última coisa que vi foi o fogo aceso que saiu da boca da arma. Depois disso um
sono profundo e final me dominou.
O pensamento que me ocorreu antes do balaço que
atingiu em cheio minha fronte, causando morte imediata, foi o de que o tiro era
a mando de Bonaparte. Mas não. Aquele jovem que de alguma forma me emboscou era
o mais novo amante de Josefine. Estava decido a não mais dividi-la comigo nem
com ninguém mais.
Pelo menos de mim ele se livrou naquela ocasião.
Jorge
Emicles