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domingo, 27 de janeiro de 2019


JOSEFINE -
CONTO



                   Vendo de longe, pareceu que tudo foi bem romântico; que a consciência aflorou à mente de toda uma geração de miseráveis, fazendo-os tomar as rédeas da história e daí criando ambiente favorável para a quebra de todas as injustiças do mundo. Aquele populacho, romanticamente chamado de os sem calções, não simplesmente invadiu e tomou, mas fez desmoronar, pedra sobre pedra a temível prisão da Bastilha.
                   Nas ruas parisienses, enquanto a república fazia cair incontáveis cabeças na antiga praça Luiz XV, as famílias de bem-nascidos seguiam a sua monótona vida, quase sem preocupações com a revolução que ameaçava por fim ao mundo inteiro. Pelo menos ao mundo na forma como a conheceu aquela esquecida geração.
                   Foi a escassez de pão e seu alto custo que levou os sans cullotes a se insurgirem contra os excessos de glamour e favores da rainha estrangeira, Maria Antonieta. Tão bela, fogosa e infiel, que fez enojar profundamente as pobres e famintas mulheres do povo, que inutilmente choravam as misérias pessoais e a desesperança delas e de seus filhos. Quantas daquelas mulheres não morreram de fome à custa do sustento dos desmedidos favores e luxos da rainha?
                   Ao cabo, a rainha, assim como o próprio rei antes dela, foi presa, humilhada e decapitada pela lâmina nacional, que ao tempo em que apartava a cabeça do corpo inerte, fazia justiça a todos os desvairados do antigo reino de Carlos Magno. A Maria Antonieta que compareceu à guilhotina já não era mais a mesma ensimesmada que não aceitava abrir mão por qualquer condição dos privilégios do primeiro estado, o da aristocracia. Quem esteve diante da navalha nacional foi uma velha, triste e sem ânimo, de cabelos totalmente grisalhos, sem nenhuma beleza a demonstrar e profundamente desesperada por a haverem separado de seus filhos. Seu pobre rebento, chamado impropriamente de Luís XVII viria ele mesmo a morrer pouco depois, vítima da ausência crônica de saúde.
                   De nada adiantou, contudo, a morte de tantos nobres. O pão continuou caro e inacessível. Os pobres de toda a França seguiram morrendo à margem de qualquer estatística. Paradoxalmente, todos os mentores da queda da bastilha caíram eles mesmos vítimas da vingança nacional. Os jacobinos, os puros, propalaram que somente a intolerância seria capaz de restituir a paz à nação e o alimento às mesas. Apenas um incorruptível poderia ser o mentor dessa limpeza geral. A intolerância de Robespierre ante a corrupção e os maus costumes de todos os revolucionários que fraquejaram diante das mais ignóbeis tentações, conduziu outra leva de almas à guilhotina. Tantas vezes não existiam fatos concretos que houvessem levado à pena capital. Àqueles dias bastava a suspeita, por mais desbaratada que fosse. Assim, nobres e plebeus seguiam em procissão em cima de carroças até a praça Luís XV, hoje rebatizada de praça da Concórdia (vindo a ser a maior de Paris) onde aguardavam a sua vez de se ter com a famigerada comedora de cabeças. Uns se resignavam, outros se desesperavam e também haviam os corajosos, que nas últimas palavras alertavam para o abismo em que toda a nação mergulhava através da irracionalidade de um ideal de purismo do qual nenhum ser humano, por sua própria condição, é capaz de ter. O povo, a tudo assistia com alegria, como se as cabeças a menos de alguma forma lhes valessem mais pão.
                   O último dos impuros a ser sacrificado naqueles dias de terror foi o próprio Robespierre.
                   Mesmo com tantas cabeças decapitadas, ainda assim rareava o pão na mesa dos sem calções. A moeda criada pela novel república era simplesmente desprezada pelo povo, porque não possuía qualquer valor de comércio. Mais valia o escambo àquele dinheiro sem valor e sem sentido.
                   Ninguém foi mais feliz, livre ou lúcido que antes da revolução. Depois de tantas cabeças haverem literalmente rolado, o poder mudou de mãos, mas continuou sendo tão opressor e injusto como sempre. E o pão, razão de ser de toda aquela carnificina que durou mais de dez anos seguiu tão raro e caro como antes. A França abandonou o despotismo esclarecido de Luís XVI, para onze anos depois da queda da bastilha, receber triunfante nas ruas de Paris o general Napoleão Bonaparte, que por não estar contente em ser o governante absoluto da França, preferiu dominar o mundo inteiro.
                   Foram nesses dias tumultuados que conheci Josefine, formosa cortesã, de carícias insuperáveis, que se aproximou de mim temendo a palidez da lâmina nacional, tão propensa a maltratar a beleza de jovens nobres como ela. No fogo da juventude, cria absolutamente que o amor era capaz de vencer barreiras, que dali em diante todos seríamos cidadãos livres e conscientes, capazes de construir um mundo novo, pleno de igualdade, insuperável em fraternidade. A tenra idade daquele jacobino verdadeiramente puro que fui me fez acreditar na superioridade do amor e no bálsamo do recomeço incondicionais.
                   Assim, recebi aquela mulher maravilhosa em minha vida, admitindo-a em minha humilde casa, prevenindo-a a respeito dos novos valores igualitários que inspirariam o mundo dali em diante e, sobretudo, perdoando-a pelos atos insensatos que houvera praticado quando a riqueza, a ganância e o espírito de superioridade lhe dominaram a existência. Josefine era de tal ordem adepta dos valores aristocráticos que evitava sempre pronunciar a letra erre nas palavras que dizia, sempre num francês culto e bem pronunciado. Tudo o que se referisse à Revolução lhe era ignóbil.
                   Pensei que era o amor que a impulsionava a admitir estar junto de um revolucionário. Até cheguei a achar bonito sua forma elegante de renegar os valores da república. Dizia sentir-se humilhada pela nova bandeira, a oprimir o branco, cor da monarquia, entre o azul e o vermelho. A realeza de França não merecia aquilo, dizia.
                   Me iludi. Sinceramente me iludi achando que somente o sentimento maior e sem medida do verdadeiro amor poderia conduzir uma mulher como aquela aos braços de um jovem sem família nobre, sem dinheiro e sem títulos. Meu único privilégio era o de ser admitido no clube dos jacobinos e de ser ouvido entre meus pares. Era um dos melhores amigos de Danton. Me encantava com a sua capacidade de oratória. Assisti de coração apertado seu julgamento e reconheço que foi por muito pouco que não se safou da guilhotina. Já havia dominado o ambiente através da superioridade de sua capacidade de expressão. O veredicto lhe teria sem dúvidas sido favorável, se propositadamente (não duvido que por artimanha de Maximilien Robespierre – o incorruptível) não tivessem adiado a conclusão de tudo para a manhã seguinte. Dessa forma, seus detratores tiveram toda uma noite para confabular o seu triste desterro.
                   Eu não sabia, mas Josefine confiava mais na amizade que tinha com a verve de Danton, que na verdade do amor que fingia nutrir a mim. Nunca soube em vida, mas é fato que ela se insinuou a Danton logo após a viuvez precoce dele. Ele, contudo, preferiu uma jovem virgem com quem se deleitou escandalosamente até seu trágico fim. Depois de seu passamento, do fim paulatino dos anos de terror e do restabelecimento da ordem na França, ela foi se afastando de mim.
                   Já não eram mais tão quentes seus afagos. Já não se interessava tanto em me fazer mimos. Eu já não era mais tão insubstituível quanto me dissera ser durante anos. Meus favores já não lhe eram mais necessários. Minha lasciva já não lhe interessava também.
                   De minha parte, segui amando como sempre. Mas aprendi a ocupar o espaço do seletivo desprezo com a política. Nunca fui tão ousado quanto naqueles derradeiros anos da revolução. Agora, com todos os grandes nomes enterrados em valas comuns, expulsos muitos do Panteão de Paris, era à nova geração de revolucionários, como eu, a quem cabia tomar a frente da resistência.
                   Fui contra a ascensão de Bonaparte. Sempre lhe reconheci como o déspota que era. Era ali na Champs-Élysée que estava àquela noite, cedo em hora ainda. Montado sob um pequeno palanque discursava com valentia, denunciando a ditatura que se instalara em França após tantos anos de sofrimentos causados pela revolução. Inspirado na força de oratório da Danton, buscando imitá-lo em gestos e entonações, dizia que a república não merecia aquilo. Um povo que com tanta obstinação buscou libertar ao mundo inteiro da opressão das monarquias não poderia ser ele mesmo atado pela tirania de um general.
                   Exatamente no auge desse discurso, percebi um jovem se aproximar de onde estava, sacar um revólver, aponta-lo para mim. A última coisa que vi foi o fogo aceso que saiu da boca da arma. Depois disso um sono profundo e final me dominou.
                   O pensamento que me ocorreu antes do balaço que atingiu em cheio minha fronte, causando morte imediata, foi o de que o tiro era a mando de Bonaparte. Mas não. Aquele jovem que de alguma forma me emboscou era o mais novo amante de Josefine. Estava decido a não mais dividi-la comigo nem com ninguém mais.
                   Pelo menos de mim ele se livrou naquela ocasião.


Jorge Emicles

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019


D. FIDERALINA AUGUSTO LIMA



                   Quando nasceu, pelos idos de 1832, o Brasil era um império, governado então pela regência do Segundo Pedro, formando um estado unitário, nem tão unido, mas definitivamente avesso ao ideário federalista. Onde nasceu, foi no seio de tradicional família, de ascendência nobre, vinculada ao marquês de Aracati, conforme registram fidedignas fontes historiográficas. Ainda assim, foi batizada pelo inusitado nome de Fideralina, em homenagem à República Federativa que seria fundada décadas depois de seu assento batismal e ambiente no qual reinaria soberana e insubstituível.
                   Foi matriarca em terra de coronéis, onde o poder se forjou através do fogo do bacamarte e da humilhação do grilhão. Reinou entre homens, em um universo absolutamente machista e intransigente. Somente pela força poderia e pôde se impor. Embora sempre tenha tido a política no sangue de sua ascendência, se engajou no sujo jogo de poder pela necessidade de sobreviver e criar com dignidade sua vasta prole, vez que a viuvez a alcançou ainda em tenra idade. Até então, contudo, igual a todas as damas dos sertões, era conhecida somente como a mulher do major Ildefonso Correia Lima, grande benfeitor e líder de Lavras da Mangabeira.
                   Enquanto vigeu o coronelismo no Brasil, foi senhora absoluta de seus domínios, de onde ninguém foi capaz de lhe apear. Ela mesma, porém, jamais exerceu qualquer cargo. Não seria necessário, pois seu nome sempre foi bem maior que qualquer função que lhe pudesse ser atribuída. Ela era dona Fideralina e ponto. Não deixou, contudo, de indicar seus favoritos para os cargos de maior honor na municipalidade e na Província. Mas não admitia ser desatendida em nada. Tanto que mandou apear do comando do Partido Republicano local, à força, seu próprio filho, Honório, o Torto. Não sem a recomendação de que estava vedado aos cabras a quem se distinguia a missão derramar uma gota que fosse do sangue do rebento.
                   Também ganhou fama de vingativa. Conta a lenda familiar que a seu mando, dezenas de cabras foram até A Vila de Princesa, na Paraíba, de lá retornando com um rosário cheio de orelhas humanas, retiradas dos cadáveres dos assassinos de seu neto primogênito, Ildefonso Augusto Lacerda Leite. Ali, completa a história, ela regularmente fazia suas orações.
                   Mesmo com o declínio da oligarquia Acioly no Ceará, na qual exerceu papel de importância na manutenção do poder local, ainda assim conseguiu resistir no poder. Tanto que fez com que Lavras da Mangabeira fosse a única comuna do Cariri a não cair diante de invasores armados (1910), como também apoiou destemidamente o movimento revolucionário liderado por padre Cícero Romão Batista, que em 1914 derrubou o presidente do Estado do Ceará, Franco Rabelo. Naquela ocasião, fez seu filho e sucessor político, Gustavo Augusto Lima, Vice-Presidente do Estado.
                   Tão grande era seu gênio e tão inigualável a grandeza que ostentou como a matriarca do sertão nordestino que, parafraseando o seu biógrafo, Dimas Macedo, somente a morte poderia depô-la, o que se deu em janeiro de 1919. Nem isso, talvez, porque mesmo fisicamente extinta, seguiu dona Fideralina de Lavras como uma inigualável lenda, mantida seja na tradição oral, repetida e reinventada por seguidas gerações no seio da família; seja no imaginário das rimas do cordel ou do que de mais nobre há na literatura nacional; seja mesmo pelo resgate de diversos historiadores, através de referências em dezenas de livros, documentários e até músicas.
                   Para a imortal da Academia Brasileira de Letras Rachel de Queiroz, Fideralina foi a inspiração que deu asas à personagem Maria Moura, do famoso romance, que inclusive virou minissérie de televisão. Em Maria Moura claramente se percebe a fortaleza da personalidade de Fideralina, assim como o destemor no trato com a jagunçada, a fidelidade do caráter e o drama de ser uma mulher infinitamente à frente do seu tempo. Assim como na casa de Maria Moura, a casa grande do Sítio Tatu, reduto de Fideralina e de toda a sua descendência, também havia um cubico, compartimento secreto reservado como esconderijo indevassável, cujo único acesso era através do próprio quarto da matriarca.
                   Tanto é que, cem anos após o seu falecimento, Fideralina Augusto Lima segue tão viva, marcante e insuperável quanto nos seus primeiros anos de poder.

Jorge Emicles

terça-feira, 1 de janeiro de 2019


A PAZ QUE EM MIM HABITA



                   O estampido dos fogos do fim de ano, contrastam profundamente com o silêncio interior do ser que em mim desvela altos e inebriantes mistérios. De que essência é feito o espírito que somos, Éter do divino, concretude no imaterial, certeza no aparente vácuo do pós-túmulo. Quais razões nos impeliram a abandonar a essência e que convicções nos induzem a trilhar, mesmo que inconscientemente, o caminho de volta; de volta a quê; de volta a quem.
                   Porque de tanto e indizível sofrimento. As razões de serem a resignação e humildade poderosas ferramentas no aprendizado evolutivo.
                   As respostas, as podemos encontrar todas no silêncio, na meditação e na busca sincera. Não, contudo, no burburinho frenético dos átomos aquecidos de centenas de elementos, que coloridos pelo calor da pólvora gritam em cores as vibrantes imagens que se formam em milhares de lugares em toda a orbe terrestre. A beleza do espetáculo não é capaz de esconder a inutilidade do costume. Não para os espíritos verdadeiramente sensíveis que se preparam para o porvir magnânimo e ao mesmo tempo catastrófico que se avizinha.
                   É quase hipócrita a cena da grande praia apinhada de ricos e remediados, tupiniquins e estrangeiros, amavelmente olhando para o céu brilhante do espetáculo pirotécnico, ao mesmo tempo em que outros tantos sofrem penitências nas cadeias, favelas e hospitais. Cristo, o verdadeiro redentor, a quem socorrerá? O da agonia ou o da ignomínia?
                   De nada valem tantos peitos volumosos, bundas bem definidas, peitorais estéticos, se a cada estampido dos fogos uma pontada de culpa e uma dose de remorso apimentam o coração. Por maior que sejam os uivos dos fogos e os gritos da virada, não serão suficientes para calar o tom acusador da consciência dando conta do mal que se fez, da traição que se perpetrou ou do sangue que foi derramado. O branco dos trajes ricos e o brilho das joias suntuosas não passam tantas vezes de algum superficial verniz, que esconde dos vizinhos míopes o rubro do sangue e o negrume azedo das injustiças. O sorriso das selfies não esconde o opaco dos olhos a desmascarar o verdadeiro estado de espírito de tantas e infelizes caricaturas.
                   A aura não permite esconder a essência sobre quem somos.
                   Os verdadeiros espíritos de luz têm o dever de velar e calar. Velar em oração pela conscientização de tantos quanto se permitam dar passos na senda da evolução. Calar diante da individual e irrecorrível escolha de cada qual.
                   Já é pesado demais cuidarmos individualmente da própria salvação. Não há como decidir nem ser responsável pelas escolhas e dores alheias. Praticar a caridade não é sofrer no lugar, mas servir o suporte que se puder dar.
                   E assim, em paz com os deveres, buscando atender às exigências da jornada, mas ao mesmo tempo com consciência dos próprios limites impostos pela condição humana, ao passo em que se consegue aproximar o máximo da meta proposta, vem chegando uma calmaria no coração, uma paz tão mais interior quanto profunda. Tem a ver com o dever cumprido, mas é ainda bem mais que isso. É como uma amostra da paz que habitaremos todos quando refletirmos a perfeição do Criador.
                   Mas é uma paz terrena, material. Por isso passageira.
                   E é ela que me cala, me entrincheira no silêncio, me alimenta na solidão e me faz vislumbrar que mesmo em face de tantas pelejas a serem enfrentadas; apesar de tantas dores e sofrimentos a serem vencidos, vale a pena seguir a jornada. Mesmo que seja para sentir essa indefinível paz interior por um único instante que seja.

Jorge Emicles