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quinta-feira, 29 de novembro de 2018


EPIFANIA KARIRI



                   Antes mesmo da invasão estrangeira, tomada a cabo através das trilhas provenientes de Juazeiro da Bahia, o verde sertão que circunda a Chapada do Araripe já era rico não somente de água e belas paisagens, mas sobretudo da valente nação dos Kariri, povo guerreiro, sagaz e altamente resiliente às auguras que lhe atormentariam com a chegada dos alienígenas de origem além mar.
                Conta uma lenda registrada na obra de João Brígido que um certo escravo fugiu dos domínios dos senhores da Casa da Torre, propriedade da família dos Caramuru e imponentes desbravadores dos sertões. O tal negro veio ter na Chapada do Araripe, tendo sido acolhido pelos Kariris. Em certa ocasião, vendo que seu povo estava sendo massacrado por uma outra tribo, no meio das recorrentes guerras entre nações indígenas, teve a ideia de ir buscar auxílio junto aos antigos senhores da Casa da Torre, guiando-os até a imponente Chapada, habitat dos Kariris. Os guerreiros brancos de fato ajudaram os índios a vencer a guerra, mas em paga lhes cobrou a dominação.
                        Assim, nasceram os primeiros povoamentos brancos da região.
                  Há relatos provenientes de mais que uma fonte de que os índios Kariris teriam sido paulatinamente massacrados; que houve um verdadeiro extermínio dos amarelos. Embora tenha de fato acontecido um irreparável derramamento de sangue, necessário ao domínio dos invasores, garantindo-lhes a definitiva posse das sesmarias que se instituíram desde então, é inegável reconhecer que muitos dos primitivos habitantes sobreviveram sim até os dias atuais.
                Um tanto deles foi, na linguagem do colonizador, amansada, passando a viver pacificamente nos povoamentos inaugurados. O Curato de São Fidelis, povoamento original que redundou no hoje município de Crato, é um dos melhores exemplos desses povoamentos. O índio civilizado, se integrou de tal forma ao modo de vida do colonizador, que pareceu ter simplesmente sumido da paisagem local.
                   O que não significa dizer que não tenha resistido.
                   O caboclo que habita não somente a vasta zona rural de toda a região, mas em igual intensidade as suas pequenas e grandes cidades, aquele a quem nos habituamos a chamar simplesmente por sertanejo; o broco homem iletrado, de fala incorreta à luz das inflexíveis regras da gramática; é ele, esse cabiró, o mais legítimo herdeiro dos antigos guerreiros Kariris, os de cara triste, como é tido o significado do nome desse povo. Sua resistência se dá através de diversas entre as ricas tradições culturais da região.
                   Nada, contudo, é marca tão bela e profunda dessa resiliente resistência cultural do índio caririense quanto as bandas cabaçais, com especial nota à bicentenária dos irmãos Aniceto.
                   Observar seus pífanos de bambu, como também o conjunto dos instrumentos, danças e valores simbolizados tão ricamente através de sua arte, é como uma sensível aula de antropologia. Em tudo o que fazem e dizem há uma referência à tradição dos índios, aprendida por intermédio da mais legítima tradição oral, da mesma forma como sempre foi na prática silvícola. Isso, desde a forma de construção dos instrumentos até o simbolismo dos passos de dança e da memória que resgatam a cada uma de suas músicas e coreografias.
                   Em todos os números, contam o que se deu com seu povo, rico de uma cultura de origem esquecida, respeitadores das forças da natureza, como homem branco algum é capaz, conhecedor de artes indecifráveis para a ciência moderna, que aos poucos foram sendo obrigados a renunciar expressamente às suas tradições e valores, não sem os introduzirem quase que silenciosamente nas suas danças, músicas e festas.
                   É a história de como os índios resistiram à dominação, mesmo vencidos pela força, que conta a banda cabaçal dos irmãos Aniceto. A luta com as abelhas, a dança da coruja, o fiel cão que caça e é morto pela onça, todas essas são mais que histórias, músicas e danças que encantam às plateias mundo afora. São a própria origem e ressureição dos antigos índios agora, por força da dominação branca, adaptados na aparência do uniforme em tecido grosso em tom forte de azul, no chapéu de massa, tradição europeia e na língua do colonizador, que através do seu jeito peculiar de expressão linguística denuncia não as incorreções em comparação à língua culta, mas na verdade uma linguagem própria, carregada da memória de como era a fala na época da colonização, mas também de várias expressões dos índios mesmos.
                   Se olharmos bem, repararemos na encantadora história dos índios, sua rica cultura e resiliência, mesmo diante da atroz violência que sofreu. É a parte do Cariri que vale a pena conhecer, a que extravasa para além de suas fronteiras.

Jorge Emicles

sexta-feira, 9 de novembro de 2018


CATARSE


                   Éramos ainda crianças que arriscavam os primeiros vislumbres da idade adulta, que teimava em não vir na brevidade reclamada pela inquietação daquela época tão cheia de hormônios e incertezas e mesmo assim já nos arvorávamos senhores dos saberes mais intricados da política e da filosofia. Contávamos exatos dezesseis anos e já nos era oferecida pela história a possibilidade de votar para o Presidente da República Federativa do Brasil. Aquela seria apenas uma das muitas novidades apresentadas pelos coloridos anos oitenta que teriam desfecho magnânimo com o retorno da plenitude democrática brasileira, representada com tanta grandiloquência por aquela eleição.
                   Tínhamos no Brasil uma nova Constituição, cujo significado simbólico e suposto poder normativo somente teríamos condições de vislumbrar anos depois, no curso da futura formação jurídica que haveríamos de ter, muito embora àquele longínquo ano tivéssemos outros propósitos de formação acadêmica. O que importava mesmo era o merecimento de com tão tenra idade já sermos senhores do soberano poder de eleger o Chefe máximo do nosso Estado. Rousseau nos parecia definitivamente com a razão, pois sua célebre frase era explicitamente reproduzida na própria Constituição. O poder dali em diante era emanação do povo, somente em seu nome podendo ser legitimamente exercido. As parcas leituras de sociologia da época nos davam a vã impressão de que a história somente anda para a frente e que, por isso, retrocessos não são possíveis em seu curso. Assim, se éramos uma democracia jamais retrocederíamos a outro estágio menos elevado.
                   Permitir que as massas cegas e surdas à razão da ciência e à irrefutabilidade do método necessariamente as conduz a decisões não apenas equivocadas, mas também extremamente perigosas. Nosso primeiro voto foi regalado ao velho caudilho, que de lenço vermelho sob os ombros vociferava com destemor os abusos do decaído regime autoritário como também os riscos da candidatura que representava seus ainda vívidos interesses. O mesmo capital espúrio e dominante que apoiou a ditatura agora financiava a candidatura do caçador de marajás, que pela sua tez jovial, expressão valente e corpo atlético não permitia qualquer comparação ao ancién régime brasileiro.
                   Tais atitudes não valeram tanto, afinal. Sagrou-se vencedor o pensamento neoliberal do Estado mínimo, do desprestígio aos valores nacionais e do desrespeito às lutas sociais históricas. Era de se perdoar aquela massa de analfabetos, que iludida pelo encanto da sereia do marketing eleitoral votou no produto de embalagem mais collorida, sem reparar bem no projeto de nação que precisava ser erguida a partir daquela eleição. A democracia brasileira deveria ser jovem demais para negar o poder a aventureiros demagógicos. Ficou vívida a certeza de que dali a trinta anos coisas como aquela não seriam mais possíveis. Era preciso insistir na fórmula da democracia.
                   Um governo sem apoio parlamentar, sem raízes em movimentos sociais e sem conexão com a história nacional poderia dar em que, afinal? Em nada diferente do que deu aquele filho da primeira eleição direta para Presidente do Brasil em quase trinta anos. Uma palavra específica, importada da língua inglesa, começou a fazer sentido entre nós tupiniquins. Foi da ruína daquele governo que o impeachment passou a ser compreendido como a salvação nacional. Tudo deu na construção de um novo governo de centro direita, que fundou o marco da estabilidade econômica, na eleição e reeleição de um projeto de nação liberal e sem compromisso com a dignidade humana, a igualdade plena e efetivação de importantes direitos fundamentais.
                   Os cara pintadas até saíram às ruas, mostrando a face de uma juventude cheia de sonhos e esperanças em uma nação mais unívoca em um destino comum de direitos e oportunidades. Mas aquela era apenas uma parcela de uma juventude muita mais complexa e diferente, cujo desfecho para a história não foi tão feliz quanto prometia. Aliás, os desfechos raras vezes são nas mesmas cores da quimera.
                   Foi no sufocamento do modelo econômico de potencialização da mais valia em detrimento da realização da dignidade da massa da população favelada, explorada e torturada pelas mais diferentes formas que ascendeu enfim ao poder o operário, demonstrando que as letras bem desenhadas da academia muito antes de transformar uma sociedade, tendem a manterem inalteradas as estratificações do poder, pois também a intelectualidade faz parte da divisão das castas.
                   A promessa foi a da erradicação da fome, da ascensão social e fim de privilégios. O resultado foi a irresponsabilidade fiscal, a quebra da economia e repetidos escândalos de corrupção. Tudo bem maquiado por programas caros e antagônicos aos verdadeiros propósitos de isonomia nacional.
                   Esse tema é bem presente ainda na história nacional. A nós parece não ser possível ainda fazer uma análise clara e imparcial desse momento histórico. As cores vibrantes das últimas três eleições nacionais terão ainda suas marcar profundamente fincadas em qualquer análise séria sobre o tema. Mesmo assim, enquanto cronistas, nos embrenhamos nele, pois que é do cotidiano de que tratam os cronistas. São riscos inevitáveis aos historiadores do momento presente, que ainda no calor dos acontecimentos tentam dar algum tipo de significado a eles.
                   Plenamente cientes desse risco dizemos que aquele projeto incialmente apresentado por quatro eleições seguidas de um país igualitário e solidário, que garantisse os plenos instrumentos de desenvolvimento humano de seus cidadãos foi transmudado com a chegada ao poder. Dizendo ainda mais, aduziríamos que é condição da chegada ao poder a corrupção dos seus pretendentes. O sistema não permitirá jamais a vitória de pessoas honestas, sóbrias e firmes de propósitos éticos e puros. Juntamente com o poder, o operário tratou de construir mecanismos que garantissem a sua manutenção, de preferência perpétua. Um richer de mil anos não seria uma coisa impensável àqueles egocêntricos noviços na estrutura do poder estatal.
                   A corrupção que se instalou não foi simplesmente fruto da ganância do enriquecimento pessoal de alguns. Se tratou mesmo de um projeto de perpetuação no poder, cujo propósito último era a continuação do mesmo grupo por seguidas gerações. Contudo, nada que não tenha já sido feito por castas de empoderados anteriormente. Os canais utilizados não eram qualquer novidade aos conhecedores dos meandros dos palácios brasilienses. Para os que pretendem vislumbrar a verdadeira dimensão dos acontecimentos históricos que tiveram vez na primeira década do século vinte e um no Brasil, é preciso reconhecer que a corrupção se trata de estratégia recorrente para a consolidação e manutenção do poder. Para ficarmos exclusivamente no caso brasileiro, bastaria lembrar as peripécias da República Velha, que recorrentemente fraudava eleições e onde grassavam diferentes práticas corruptivas; o governo de Getúlio Vargas, que abusou da manipulação, das mentiras e da perseguição para se manter no poder por quinze anos consecutivos; e da própria ditadura militar, reconhecidamente a maior colaboradora do endividamento externo que conduziu o país à crise financeira das décadas de oitenta e noventa do século pretérito.
                   O operário não inventou a corrupção, mas seu governo a praticou de maneira despudorada. Não é verdade que nunca antes se tenha usurpado em tamanha dimensão as riquezas nacionais. Já houveram elites políticas mais eficientes nesse critério. O que a imprensa desvela é a percepção das práticas corruptivas, não seus índices efetivos. Ainda assim, o maior erro daqueles três governos e meio foi haver se permitido às mesmas práticas dos que os antecederam. O operário bem sabia que a história não lhe permitiria cometer erro crasso assim, pois o seu papel seria o de modificar os paradigmas, não o de mantê-los.
                   O segundo pior erro foi o de não ter propiciado os verdadeiros instrumentos de emancipação à população inicialmente beneficiada pelos programas sociais. Na mesma medida em que é imperioso alimentar o faminto, não se pode viciá-lo pelos favores governamentais. Essa prática igualmente é uma forma de corromper o espírito do assistido, pois lhe enfraquece as condições de reagir diante das inevitáveis vicissitudes da vida. Criar oportunidades é tão importante quanto prestar auxílio direto. Mas não ao custo de formar novos injustiçados sociais. Esse é o problema de todas as políticas públicas de assistência, atreladas aos direitos fundamentais chamados de segunda geração. Não se sabe ao certo se são bons ou ruins aos cidadãos, porque ao mesmo tempo em que auxiliam, corrompem. Esse fenômeno é objeto de diversos estudos, na Europa inclusive. Longe está de ser criação nossa.
                   Pelo menos na história recente da nação certamente, enquanto povo, não tivemos decepção maior. Cansados do modelo em que a elite política domina e corrompe, alçamos ao poder um novo pensamento, galgado na ética e na efetivação dos direitos fundamentais, que ao termo e ao cabo demonstrou-se tão corrupto e maldoso quanto o anterior. Era urgente o soerguimento do novo. Assim pelo menos nos gritava a imprensa em todos os níveis, reverberada que foi pelas mídias sociais, cujos instrumentos de controle dos logaritmos se mostram bem mais eficientes que qualquer outra forma de censura.
                   Contudo, nada haveria mais velho que aquele novo. A violência histórica e crescente deveria ser enfrentada com a violência estatal e endurecimento das leis penais, como se o Brasil já não viesse fazendo isso pelo menos desde a década de noventa do século passado e como se não fossem plenamente visíveis os resultados dessas políticas. A história demonstra. Isso não é nenhuma tese de doutoramento acadêmico. É fato. O encrudelecimento da violência estatal no combate aos pequenos delitos, a desumanização das prisões, a criação da lei dos crimes hediondos, que proibia a progressão da pena em determinados crimes, redundou na criação do PCC – Primeiro Comando da Capital – dentro das prisões paulistas, na expansão dessa e de outas organizações criminosas de igual origem por todos os estados da federação e na perda total do controle do sistema prisional pelo próprio Estado. Aumentar a violência estatal é aumentar a organização do crime.
                   Ampliar o bolo da economia através da aplicação dos valores do liberalismo somente conduz ao aumento das já gritantes diferenças sociais entre ricos e pobres. Quando as partes são desiguais não existe liberdade possível. Nesse ambiente a chamada pacta sun servanda (a liberdade de contratar dos antigos romanos) é um instrumento de opressão, jamais de isonomia. A xenofobia assim como todas as expressões das fobias sociais, às mulheres, negros, índios, homossexuais etc., todas elas conduzem ao encrudelecimento dos conflitos sociais e deles ao aumento da violência.
                   A verdadeira liberdade que sempre foi reclamada em todos os tempos, durante todos os governos, dessa ninguém se propõe a projetar e efetivar. Não se liberta senão pela educação, no que pese que poucas sejam as formas de educação libertadora. Professores, não aparelhos televisivos são necessários. Porém não quaisquer professores. São de professores livres, conscientes de seu papel na sociedade e que defendam pontos de vista humanistas; são esses os únicos capazes de libertar um povo. Quando dizem escola sem partido, estão na sutileza do não dito propugnando um partido único a disseminar seus valores em todo o sistema educacional. Nada é mais opressor que esse ideário, pois quando o professor não puder ter partido será o partido do opressor que exercerá sem quaisquer temores ou resistências o domínio total e absoluto. Lembremos que todo o sistema educacional possui sim uma política pedagógica, instituída por lei. A lei do partido que estiver no poder. Como então uma escola não ter partido?
                   Mas em que isso será novidade? Já esquecemos os métodos dos nazistas e fascista na Alemanha e na Itália? Não vale mais a opressão do partido único da União Soviética? Todos proibiram a liberdade acadêmica do professor. Todos encrudesceram a legislação penal. Todos ampliaram os instrumentos de opressão bélica do Estado. Será mesmo que desconhecemos em que tudo isso desaguará?
                   Trinta anos já se passaram desde aquela primeira eleição da redemocratização. Por trinta longos e penosos anos o ingênuo povo pôde amadurecer seu discernimento, a ponto de ser capaz de extirpar de pronto qualquer tentativa aventureira de se alçar ao poder. O povo, soberano absoluto da nação, tem o dever de discernimento fazendo chegar ao poder projetos, não fenômenos. É esta a grande falácia da democracia. Aristóteles já denunciava que ela se corrompe, abrindo seus flancos ao melodioso discurso da demagogia. E é assim mesmo, pelo exercício do voto que o povo serenamente entrega sua soberania ao melhor dos sofistas. Sem resistências se deixa dominar, porque no fundo mesmo a verdade é que lhe falta vontade de vir a ser propriamente livre. Ninguém deveria ser livre para se escravizar, nem para renunciar a seu dever de ação diante do mundo. O livre arbítrio talvez mesmo não seja uma liberdade tão ampla assim. Quiçá os cabalistas estejam certos a esse propósito.
                   Se mais trinta anos de exercício democrático vierem a ser oportunizados ao povo, lá naquele longínquo e incerto futuro é certeza que outra vez entregará suas esperanças e as possibilidades de porvir venturoso a um próximo aventureiro que prometa a repetida fórmula da violência para controlar a violência; da opressão como meio de rechaçar os excessos; do silêncio forçado como a cura do malogro.
                   A maturidade torna tão óbvia esse vislumbre da próxima era da história. Tudo é um eterno retorno, quase uma metempsicose. A história se repete e se repetirá ainda por milênios. Nada há de novo sob o sol, já ensinava Salomão muito antes da história existir.

Jorge Emicles