TOTA
Quantas
seriam as maneiras possíveis de se fazer caridade? O ideal básico, construído
das experiências cristãs é, sem dúvidas, dar alimentos, agasalhos e um teto aos
miseráveis. A figura lembrada no imaginário global talvez seja a da benfazeja madre
Tereza de Calcutá. No Brasil, falariam por certo da humilde irmã Dulce. Sem
dúvidas, pessoas que legaram toda a vida à causa dos pobres. Não se poderá mesmo
duvidar do quase infindável número de pessoas que foram socorridas por essas
almas caridosas no momento mais tormentoso de suas vidas. É inegável que
praticaram grandes e importantes atos de caridade, o que os destaca como santos
e mártires católicos.
No nordeste brasileiro, no
tórrido chão do sertão, naquelas regiões quase esquecidas pelo poder público e
tantas vezes ignoradas pela máquina eclesiástica da igreja católica a figura
mais notória sem dúvidas será a do missionário padre Ibiapina, que abandonou as
míopes letras da magistratura e da advocacia pela peregrinação errante, terras
secas adentro, a fundar tanto quanto pode as inumeráveis casas de caridade. Eram
organizações dotadas de uma hierarquia leiga, formada por irmãs não ordenadas,
a quem incumbia o padre de organizar os serviços educacionais e caritativos da
instituição, que eram o de dar alimento e educação básica à população carente
da localidade. O Crato ganhou uma das mais afamadas Casas de Caridade do padre
Ibiapina.
Mesmo convidado o padre pela
diocese do Ceará a abandonar as terras alencarinas, seguiu funcionando por
muitos anos a Casa de Caridade do Crato, mantendo vivos os princípios e
propósitos de seu benemérito fundador, que jamais em vida voltou a visitar
nenhuma das Casas de Caridade fundadas na diocese do Ceará.
Ali, pelos idos dos anos
setenta do século passado chega uma jovem freira, de idade curta, mas de experiência
avançada nas artes da educação, a quem se entregou a administração da Casa de
Caridade do Crato. Jamais foi seu propósito, mas parece que quis o destino que
sua vocação seria o exercício da caridade através da educação. Eis que a sorte
da vida lhe legou uma turma de crianças que por falta de vagas estavam
preteridas de outras escolas da cidade. Ela, determinada freira, não poderia
deixar aquelas crianças sem as lições básicas da educação a que estava já tão
habituada como ex-diretora do centenário Colégio Santa Tereza, em Crato.
Recebeu as crianças com destemor, mesmo sem a anuência do bispo. Ao termo de seis
meses, aquele minguado punhado de crianças já era em número de cinquenta. Com
menos de um ano era imperioso fundar nas dependências da Casa de Caridade de
Crato uma nova escola, porque era cada vez mais numerosa a procura da nova
clientela. Foi inevitável aquilo tudo, dado o magnético carisma da jovem madre
Feitosa, primeira e até hoje única diretora do Colégio Pequeno Príncipe, atualmente
um dos mais renomados do Cariri.
Mesmo dividindo as
dependências da antiga construção tomada a efeito pelo padre Ibiapina com a
nova escola, continuaram por longos anos sendo assistidos os miseráveis que
procuravam madre Feitosa. Nunca lhes faltou o de comer, como também jamais lhes
foi negado abrigo, afeto e orações. A expressão madre vem do latim mater e significa mãe. Pois poucas
mulheres mereceriam esse substantivo mais que aquela freira, que mesmo sem jamais
parir foi mãe de dezenas, quiçá centenas de almas desvalidas, a grande maioria
delas pobres que encontrou no transcurso de sua missão à frente da Casa de Caridade.
Tota, era como aqueles seus filhos postiços tratavam a caridosa mãe com a qual
Deus lhes havia acudido na sofrida vida.
Porém, ela não foi somente a
mãe dos pobres, pois entre os melhores validos também encontrou o sofrimento e
a penúria do desamor, do abandono e de diversas outras formas de desespero. Ela
não olhou a quem, tendo servido indistintamente a todos que lhe pediram
socorro. Compreendeu como poucos que talvez a mais hábil das caridades que se
pode fazer a outro é a de lhe alimentar o espírito pelos frutos do conhecimento
e pelos caminhos iluminados da educação. Pois também se conta às centenas o
número de pobres que tiveram a possibilidade de estudar no colégio da madre
Feitosa. Sem custos, mas com os mesmos direitos dos que tinham a possibilidade
de pagar. Talvez tenha sido esse o maior mérito do Colégio Pequeno Príncipe nos
seus primeiros anos de existência.
Orginalmente eram os mesmos
os corredores do colégio e da Casa de Caridade, de paredes largas, ares meio
sombrios e muitas histórias de sofrimento impregnadas na energia daquela antiga
construção. Era a mesma a capela em que as turmas de crianças eram educadas no
catecismo e que, décadas antes, fora aprisionada e interrogada a beata Maria de
Araújo no famoso processo eclesiástico que apurou o milagre de Juazeiro. Foi
ali mesmo que a beata disse ao inquisidor, humilde, mas com firmeza, que o padre
Alexandrino, presidente do processo, não estava em estado de graça, o que a
impedia de operar o milagre em sua presença. A primeira geração de alunos do
Colégio Pequeno Príncipe viveu ali, impregnada da história mais viva e
contundente do Cariri cearense. Testemunhando sem saber os mais decisivos
conflitos acontecidos que tinha havido entre a hierarquia eclesiástica de Roma
e os santos consagrados pelo povo. Primeiro o padre Ibiapina, depois o padre Cícero,
seu legítimo sucessor.
Madre Feitosa sempre foi
alheia a tudo isso. Soube respeitar a visão dos historiadores, dos teólogos e
da tradição popular. O que de fato sempre importou a ela foi a realização da
caridade. Todos os pobres que a procuravam estariam alimentados e acolhidos?
Todas as crianças que recebia diariamente estavam felizes e devidamente instruídas?
Que bons conselhos poderia dar a uns e outros? Como poucos, soube a freira se apropriar
do sentido de amor encontrado na clássica obra que deu nome a seu colégio. Eres responsável por aquele a quem cativa.
Tudo deveria ser simples assim, sem debates ideológicos ou julgamentos
históricos. O que o Cristo prega é o amor. Pois é dever de cada cristão
praticá-lo com intensidade e destemor. Foi o que ela fez e continua fazendo
mesmo superadas mais de nove décadas de vida terrena.
E assim, ao longo de décadas
de simplicidade abnegada legou pelo seu exemplo a seguidas gerações as lições
do Cristo, que é amor, acolhimento, respeito e dedicação.
Merecido o reconhecimento
popular dela como uma santa encarnada.
Jorge Emicles